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Parte I – Relação, Comunicação e Consulta
1.2. A consulta
11. Motivos de consulta e sua interpretação
João Gabriel Rodrigues
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Sousa, Jaime C.


Motivos de consulta (MC) são as razões expressas pelo paciente para justificar a procura de cuidados médicos. Podem ser um sintoma, uma queixa, um pedido de renovação de prescrição de medicamentos ou de exames auxiliares de diagnóstico, um atestado médico, um procedimento administrativo, um problema social ou laboral. Ou então a verdadeira razão da consulta é um problema oculto, de ordem psicossocial, verbalizado sob a forma de motivos somáticos.

Estes motivos ou razões para o encontro dependem da percepção que o paciente tem da sua necessidade de auxílio e traduzem a sua perspectiva em relação ao seu estado de saúde bem como as expectativas que ele tem sobre a actuação do seu médico de família. O paciente pode eventualmente não regressar se o motivo diminuir ou desaparecer antes do diagnóstico ter sido alcançado. Por outro lado, o pedido pode implicar uma actuação preventiva ou o problema presente não significar necessariamente a existência de doença.

O prestador de cuidados de saúde deve aceitar o motivo de consulta tal como foi expresso pelo doente, sem fazer quaisquer juízos de valor relativamente à sua correcção e exactidão. É importante também a identificação dos motivos ocultos da procura que, embora não sendo verbalizados pelos utentes, podem constituir a verdadeira razão da consulta.

Os motivos de consulta são a senha para o acesso aos cuidados de saúde e da interpretação que o utente e o médico de família deles fazem, resulta todo o processo subsequente da prestação desses cuidados.

O motivo de consulta é reconhecido como uma fonte prática de informação sobre o doente, com um papel igualmente significativo na investigação e formação. A classificação dos motivos de consulta permite a compreensão epidemiológica da morbilidade em medicina geral e familiar (MGF). A identificação dos padrões de procura de consultas nesta especialidade é um instrumento de valor na definição da procura de serviços no sistema de saúde. Os dados resultantes também serão úteis para o planeamento da promoção da saúde, prevenção de doenças e no estabelecimento de um programa de garantia de qualidade em MGF.

Nos estudos de caracterização da prática da MGF, com especial incidência nos motivos de consulta, que no Reino Unido, Irlanda, Holanda, Austrália e também em Portugal, têm sido utilizados como estratégia para o desenvolvimento da especialidade foi usada a Classificação Internacional em Cuidados Primários (ICPC).

A publicação em 1993 do livro «The Internacional Classification of Primary Care in the European Community with a multi-language layer» (H. Lamberts e colaboradores) constituiu uma referência obrigatória para a utilização da ICPC na codificação dos motivos de consulta, diagnósticos e procedimentos e consequente caracterização dos encontros.

A ICPC é uma classificação com uma linguagem universal em Cuidados de Saúde Primários e na investigação em Medicina Geral e Familiar. Fornece uma estrutura de base simples e homogénea que satisfaz as principais necessidades de classificação para os prestadores de cuidados primários. 

A simplicidade da ICPC deve-se à sua estrutura bi-axial (Quadro I): 17 capítulos num eixo, cada um com um código alfa e, como segundo eixo, sete componentes com rubricas com um código numérico de dois dígitos. A nomenclatura da ICPC forma uma ponte entre os sistemas de informação mais ou menos especializados derivados da ICD-10 por um lado e a terminologia dos leigos e as descrições comuns de sintomas, queixas e problemas de saúde na comunidade, por outro. Os motivos de consulta, incluindo os de ordem psicológica e social, podem ser classificados e codificados pela ICPC.
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Quadro I
Estrutura da ICPC: 17 capitulos e 7 componentes

 

Componentes

Capítulos 1.Sinais e sintomas 2.Procedi-
mentos, diagnósticos, preventicos
3.Medicações, tratamentos, procedimentos terapêuticos 4.Resul-
tados
5.Admi-
nistrativo
6.Seguimento, outros motivos de consulta 7.Diagnós-
ticos, doenças
A-Geral e Inespecífico              
B-Sangue              
D-Aparelho Digestivo              
F-Olhos              
H-Ouvidos              
K-Aparelho Circulatório              
L-Músculo- Esquelético              
N-Sistema Nervoso              
P-Psicológico              
R-Aparelho Respiratório              
S-Pele              
T-Endóc., Matab., Nutricional              
U-Aparelho Urinário              
W-Gravidez e Plan. Familiar              
X-Aparelho Genital Feminino              
Y-Aparelho Genital masculino              
Z-Problemas Sociais              


A forma com o doente exprime os seus motivos de consulta determina o capítulo e a componente a usar. Toda a classificação é aplicável visto que utente pode descrever os seus motivos para procurar os cuidados de saúde sob a forma de sintomas ou queixas, de pedidos de certos serviços ou de problemas de saúde.

A rubrica ICPC escolhida deverá ser tão próxima quanto possível das palavras originais utilizadas pelo paciente e deverá ser alterada o menos possível pelo médico. No entanto, será necessário esclarecer os MC apresentados por aquele dentro do quadro da ICPC de modo a que seja aplicada a rubrica mais apropriada na classificação.

Não se sabe ainda até que ponto os prestadores podem identificar, com validade, a procura do paciente e a sua necessidade subjectiva de cuidados. Isto porque os prestadores terão aptidões diferentes para classificar o motivo de consulta apresentado pelo paciente, o que põe em questão a validade da informação produzida.
Estudos de fiabilidade usando a avaliação de vários observadores de gravações em vídeo de consultas têm mostrado que os resultados obtidos na classificação dos motivos de consulta pelos médicos de família correspondem, em geral, à morbilidade encontrada na Medicina Geral e Familiar. Há concordância dos observadores ao nível dos capítulos e dos capítulos/componentes, mas há divergências ao nível das rubricas.
Em Portugal, o grupo de trabalho da classificação ICPC da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral realizou um estudo de âmbito nacional sobre “ Novos Episódios em Clínica Geral” (1989-1990), onde são analisados os motivos de consulta. Costa & Costa (1995) compararam os motivos de consulta, codificados pela ICPC em dois centros de saúde da região de Lisboa. Jordão (1995) fez a investigação mais extensa dos motivos de consulta em Portugal. Os resultados encontrados constituem uma fonte importante para a compreensão da prática da Medicina Geral e Familiar.

Utilizou uma amostra extraída aleatoriamente dos utilizadores de 141 centros de saúde da Zona Sul do Continente, durante o período de um ano. Foram inquiridos 18805 utentes que declararam 29896 motivos para consultarem o seu médico de família.
Rodrigues (1997-2000) registou, durante 3 anos, os motivos de consulta em todos os encontros directos, incluindo domicílios, da sua consulta, na Extensão do Estoril do Centro de Saúde de Cascais. Os utentes foram inquiridos todas as vezes que frequentaram a consulta do médico de família.

O padrão geral identificado foi semelhante ao descrito por Jordão em todos os tipos de centro de saúde em que os utentes foram inquiridos, na Zona Sul do Continente: rural, urbano em meio rural, urbano em meio industrial, grande cidade. A comparação dos resultados obtidos na sua consulta (centro de saúde em grande cidade) com os verificados nos centros de saúde atrás referidos parece fundamentar que os utentes dos médicos de família recorrem à consulta por motivos largamente coincidentes.
Os resultados parecem também confirmar a relevância do seu estudo para a compreensão e qualificação da prática da MGF. Assim, a informação obtida da sua análise global e dos padrões encontrados permite identificar necessidades de saúde nos vários grupos etários:
Na criança, as especiais necessidades que incluem essencialmente a promoção da saúde e prevenção da doença. No adulto, as actuações em saúde relacionadas com a situação laboral, a pré-reforma e com a morbilidade dos homens idosos. A identificação de actividades relacionadas com a saúde na idade fértil, com situações laborais e de pré-reforma e com a morbilidade própria das mulheres idosas e a viuvez.

O padrão geral de consulta identificado sugere uma vertente importante de multimorbilidade crónica, em especial do aparelho circulatório, sistema músculo-esquelético, sistema endócrino, metabólico e nutricional e do foro psicológico.
No que diz respeito aos Componentes, é o Componente 1 – sinais e sintomas – o mais utilizado pelos utentes. Por aparelhos e sistemas, o respiratório e ouvidos (infecções gripais!) são os mais frequentes, seguindo-se o sistema nervoso, a pele, o músculo-esquelético e os aparelhos digestivo, genital masculino e urinário. Isto sugere que os utentes visitam o seu médico de família prioritariamente por razões de doença aguda, solicitando uma intervenção curativa. O segundo lugar é ocupado pelo Componente 3, devido à renovação da prescrição de medicamentos, com maior incidência no psicológico (ansiolíticos e indutores do sono), endócrino, metabólico e nutricional (diabetes mellitus tipo 2 e dislipidemias), no geral e inespecífico e no aparelho circulatório. É uma grande carga de cronicidade e multimorbilidade a caracterizar a vertente preventiva da actividade do médico de família.
Aliás, esta actividade de promoção da saúde e prevenção da doença está também expressa no 3º componente mais registado – procedimentos diagnósticos e preventivos (Componente 2). Os dois valores mais elevados relacionam-se com a vigilância materna e com o aparelho circulatório (vigilância da pressão arterial).
Relativamente à idade identificaram-se padrões diferentes consoante os agrupamentos etários considerados. Nos mais jovens destacam-se as queixas gerais e inespecíficas e as do aparelho respiratório, nos mais idosos predominam as referentes ao aparelho circulatório e ao sistema músculo-esquelético, enquanto que nas idades intermédias sobressaem os referentes à mulher em idade fértil. Deste modo, parece haver coerência entre a progressão etária e os motivos de consulta.

Os vinte primeiros motivos de consulta (Quadro II) representam mais de metade de todos os motivos registados. Referem-se maioritariamente a pedidos de renovação de prescrição dos capítulos geral e inespecífico, circulatório, psicológico, endócrino, metabólico e nutricional, músculo-esquelético e visão. O número de avaliações parciais do aparelho circulatório resulta fundamentalmente da medição da pressão arterial.

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Quadro II

OS 20 MOTIVOS DE CONSULTA MAIS FREQUENTES (RODRIGUES 1997-2000)

  Rúbrica ICPC MOTIVOS DE CONSULTA Valor absol. % Cumul.%
1 K31 Exame médico/avaliação de saúde/parcial 579   10.48  10.48
2 A50 Renovação de prescrição 429  7.76  18.24
3 K50 Renovação de prescrição 428  7.74 25.98
4 P50 Renovação de prescrição 179  3.24  29.22
5 R05 Tosse 177  3.20 32.42
6 T50 Renovação de prescrição 167  3.02 35.44
7 A60 Resultado de análises/procedimentos 159  2.87 38.31
8 L03 Sinais/sintomas lombares sem irrad. 93  1.68 39.99
9 L50 Renovação de prescrição 81  1.46 41.45
10 F50 Renovação de prescrição 72  1.30 42.75
11 A03 Febre 71  1.28 44.03
12 L62 Procedimento administrativo 67  1.21 45.24
13 L20 Sinais/sintomas múltiplos das artic. 61  1.10 46.34
14 T60 Resultado de análises/procedimentos 59  1.06 47.40
15 R21 Sinais/sintomas da garganta 56  1.01 48.41
16 A62 Procedimento administrativo 54  0.97 49.38
17 N17 Vertigem/Tontura /Excl H82 53 0.95 50.33
18 L01 Sinais/sintomas do pescoço 47 0.85 51.18
19 P01 Sensação de ansiedade/nervosismo 32 0.57 51.75
20 P62 Procedimento administrativo 31 0.56 52.31
  Totais 2895 52.31  
    Restantes motivos 2629 47.69  

Os motivos de consulta mais frequentemente referidos são equivalentes aos de outros estudos nacionais. As características das pirâmides etárias das listas de utentes podem condicionar o tipo de utilização dos serviços de saúde (predomínio de situações agudas ou crónicas), no entanto é possível definir um padrão de consulta em Medicina Geral e Familiar com utentes activos com multimorbilidade crónica, predominantemente idosos. É uma consulta com um componente significativo de atitudes preventivas de doença e de promoção da saúde, a par das actividades relacionadas com a intervenção curativa.
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Bibliografia
APMCG Grupo de Trabalho da Classificação ICPC. Novos Episódios em Clinica Geral 1989-1990. Rev Port Clin Geral 1992; 9: 98-102

Britt H, Angelis M, Harris E. The reliability and validity of doctor-recorded morbidity data in active data collection systems. Scand J Prim Health Care 1997; 16: 50-55

Comissão Internacional de Classificações da WONCA. ICPC –2, Classificação Internacional de Cuidados Primários, segunda edição. Lisboa: APMCG; 1999

Costa JM, Costa AM. Motivos de consulta. Estudo comparativo. Rev Port Clin Geral 1995; 12: 267-79

Jordão JG. A Medicina Geral e Familiar. Caracterização da Prática e sua Influência no Ensino Pré-graduado (Dissertação). Lisboa: Faculdade de Medicina; 1995

Rodrigues JG. Porque consultam os utentes o seu médico de família? Rev Port Clin Geral. Em publicação 2000.

Shanahan R. Why do people visit their GPs? Fórum (Irlanda) 1998; 15: 18-21