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Parte IV – Problemas clínicos
4.10. Abordagem da mulher com problemas da mama e aparelho genital

341. Prolapso urogenital
Liana Negrão
André Catarino
Fátima Branco

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Pisco, Ana Maria

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Introdução
O prolapso urogenital define-se como o deslocamento inferior dos órgãos pélvicos da sua posição anatómica normal. Ocorre quando existe no soalho pélvico um defeito suficiente para permitir que um ou mais órgãos se exteriorizem através dele. Estas lesões, geralmente resultantes de traumatismos obstétricos, são inicialmente assintomáticas. A carência de estrogénios que se verifica após a menopausa condiciona o aparecimento de uma atrofia das mucosas, podendo conduzir a prolapso sintomático. Trata-se de um problema ginecológico comum que, ainda que não constitua qualquer ameaça vital, pode afectar de forma grave a qualidade de vida de muitas mulheres, sobretudo após a menopausa. As alterações da estática pélvica responsáveis pelo prolapso dos órgãos genitais podem contribuir também para o desenvolvimento de uma incontinência urinária e, mais raramente, de uma incontinência anal. Este facto resulta da íntima relação anatómica existente entre os órgãos genitais e os aparelhos urinário e digestivo.
Com o aumento da longevidade das mulheres, a compreensão e identificação da disfunção do soalho pélvico reveste-se da maior importância, no sentido da manutenção da normalidade da função do aparelho genito-urinário, dos hábitos intestinais e da função sexual.
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O problema na prática clínica
A maioria das mulheres que tiveram partos apresenta algum grau de relaxamento do soalho pélvico, sendo por isso relativamente comum a existência de prolapso urogenital assintomático. A prevalência estimada de qualquer grau de prolapso em mulheres com filhos é de 50%, 10-20% das quais são sintomáticos. O prolapso urogenital é raro em mulheres nulíparas, referindo-se que apenas 2% dos prolapsos sintomáticos ocorrem em mulheres que nunca tiveram filhos. Nestes casos o prolapso é quase sempre devido a uma fraqueza congénita das estruturas de suporte. Ainda que algum grau de prolapso da cúpula vaginal seja comum após uma histerectomia, um prolapso da cúpula vaginal grave e sintomático, requerendo intervenção cirúrgica, ocorre em menos de 0,5% das mulheres submetidas a histerectomia. O sintoma dominante é de sensação de corpo estranho aflorando à vulva. As mulheres descrevem geralmente a presença de uma massa vaginal, que se agrava quase sempre ao longo do dia, sendo aliviada com o decúbito e podendo ser totalmente assintomática quando se levantam de manhã. Os sintomas adicionais vão depender dos órgãos prolapsados na vagina.
No caso de um prolapso urogenital total, uma sensação de pressão está quase sempre presente, podendo uma hemorragia ou corrimento vaginal ser uma complicação secundária, por ulceração ou infecção do prolapso.
Um colpocelo anterior com cistocelo apresenta-se frequentemente com sintomas urinários. Embora a incontinência urinária de esforço possa ocorrer, não é uma queixa universal em mulheres com cistocelo, sendo muito mais frequentes as queixas de dificuldades de esvaziamento vesical, não sendo rara a retenção urinária, condicionando nos casos mais graves o desenvolvimento de hidronefrose. Algumas mulheres referem a necessidade de reduzir o prolapso digitalmente, com o objectivo de permitir o esvaziamento vesical. Um cistocelo volumoso pode associar-se a polaquiúria devido a um resíduo vesical persistente ou a infecções urinárias de repetição.
Um rectocelo pode ser assintomático, mesmo quando volumoso. Quando ocorrem sintomas, estes tendem a relacionar-se com dificuldades na defecação, tenesmo ou desconforto coital.
Existem no entanto mulheres sem qualquer das queixas referidas, apresentando ao exame ginecológico graus variáveis de prolapso urogenital.
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Avaliação diagnóstica
O diagnóstico deste tipo de patologia resulta de uma abordagem clínica metódica e sistematizada. O interrogatório deve ser orientado para a identificação de factores de risco (Quadro I) e caracterização dos sintomas (Quadro II).

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Quadro I

Factores de risco

- Idade de inicio dos sintomas e sua evolução;
- Antecedentes obstétricos e ginecológicos (incluindo cirurgia pélvica);
- Obstipação crónica.

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Quadro II

Sintomatologia

- Sensação de corpo estranho vulvar;
- Hemorragia e/ou corrimento vaginal;
- Incontinência urinária e outros sintomas urinários;
- Incontinência anal;
- Sensação de corpo estranho vulvar;
- Hemorragia e/ou corrimento vaginal;
- Incontinência urinária e outros sintomas urinários;
- Incontinência anal;
- Repercussão da sintomatologia no dia-a-dia da mulher;
- Repercussão da sintomatologia na vida sexual.

O exame clínico permite estabelecer o diagnóstico definitivo de prolapso urogenital, sendo o seu objectivo principal a objectivação das lesões existentes (Quadro III).

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Quadro III

Exame clínico

Objectivação do elementos prolapsados e sua classificação
Avaliação da troficidade vulvo-vaginal:
- atrofia
- hiperqueratose
- edema
- ulceração
Avaliação de sintomas urinários:
- objectivação de fugas urinárias
- avaliação do resíduo vesical após uma micção espontânea
Objectivação de sintomas digestivos
- fugas de gases ou fezes
- fecaloma

O prolapso pode ser visualizado com a mulher em repouso ou após esforço com aumento da pressão intra-abdominal. Em algumas situações é necessário o recurso à tracção uterina, mediante o uso de uma pinça de Pozzi. Um espéculo ginecológico é útil para identificar qual o órgão prolapsado, bem como para avaliar a gravidade do problema. Nesta avaliação a escolha do espéculo deve recair sobre um de valvas desarticuláveis, já que o recurso à introdução de uma valva isolada constituiu o único meio de caracterizar correctamente os diversos elementos do prolapso.
Os prolapsos urogenitais são geralmente multi-elementares e podem interessar a parede anterior da vagina, o útero ou cúpula vaginal e a parede posterior da vagina. O prolapso é frequentemente incompleto e o exame clínico não deve omitir nenhuma das lesões elementares já que algumas podem estar mascaradas pela importância de outras. A caracterização de um prolapso urogenital deve obedecer a uma terminologia uniformizada, identificando os diversos elementos presentes (Quadro IV).

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Quadro IV

Caracterização

Colpocelo anterior
- deslocamento da parede anterior da vagina, geralmente associada à descida da bexiga (cistocelo)
Histerocelo
- deslocamento do útero
Colpocelo posterior
-deslocamento da parede posterior da vagina, podendo associar-se à descida do recto (rectocelo)

Um sistema de classificação deve ser usado na definição de qualquer dos elementos prolapsados. De entre os diversos sistemas existentes, o mais generalizado é o que define o prolapso consoante o grau de descida do órgão prolapsado em relação ao intróito vaginal (Quadro V).

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Quadro V

Classificação

1º grau - até metade da distância do intróito vaginal
2º grau - atingindo o intróito vaginal
3º grau - ultrapassando o intróito vaginal

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Possibilidades de intervenção em medicina geral e familiar

Medidas preventivas
O prolapso urogenital resulta de uma disfunção do soalho pélvico, de etiologia multifactorial complexa. A prevenção dos factores etiológicos do relaxamento do soalho pélvico é portanto difícil, sendo ainda controversos os argumentos científicos que suportam algumas das condutas existentes com este objectivo. Apesar de tudo, há algumas medidas que devem ser consideradas na prática clínica, com o objectivo de minimizar a prevalência e a gravidade das disfunções do soalho pélvico:

1. Prevenção da macrossomia fetal na vigilância pré-natal de grávidas.
2. Prevenção do traumatismo obstétrico, que não depende da vigilância pré-natal, estando relacionada com uma mudança de atitudes na prática obstétrica.
3. Detecção precoce, na consulta de controlo pós-natal, de lesões do soalho pélvico. Em algumas situações pode estar indicada algum tipo de fisioterapia perineal, nomeadamente na presença de uma fraqueza do soalho pélvico, de uma incontinência urinária e/ou anal ou de uma disfunção sexual.
4. Instituição sistemática de uma terapêutica com estrogénios tópicos nas mulheres pós-menopáusicas.
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Intervenção terapêutica
1. A existência de uma atrofia vulvo-vaginal impõe a instituição de tratamento sistemático com estrogénios tópicos (estriol, estradiol ou promestrieno em óvulos, comprimidos ou cremes vaginais, em aplicação diária ou trissemanal). Nas mulheres pós-menopáusicas, a estrogenoterapia tópica é suficiente para reduzir a sintomatologia nos casos ligeiros a moderados.
2. O reforço da musculatura do soalho pélvico pode ser útil nos casos menos graves, sobretudo em mulheres mais jovens (Ex: exercícios de Kegel, estimulação eléctrica funcional e técnicas de «biofeedback»).
3. As alterações distróficas dos elementos prolapsados devem ser tratados através da utilização de agentes tópicos anti-infecciosos e re-epitelizantes (de que fazem parte os estrogénios tópicos) e da adopção de algumas medidas higiénicas, como a lavagem e desinfecção frequentes. Para melhorar a eficácia, em alguns casos é necessária a introdução de uma compressa vaginal embebida nas substâncias referidas, que assegura a redução temporária do prolapso.
4. As mulheres com prolapso urogenital sintomático, interferindo na sua qualidade de vida, devem ser referenciadas para uma consulta de ginecologia, para avaliação da possibilidade de terapêutica cirúrgica (Quadro VI).
5. A terapêutica cirúrgica consiste geralmente na realização de uma histerectomia vaginal ou abdominal, associada a outros gestos cirúrgicos para correcção dos elementos prolapsados. 
6. Nas situações em que existem contra-indicações para a cirurgia convencional de correcção do prolapso, podem adoptar-se medidas paliativas mais ou menos radicais, incluindo a utilização de um pessário vaginal e a cirurgia de encerramento vaginal (colpocleisis).

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Quadro VI

Aspectos clínicos que devem implicar a referenciação de uma doente a uma consulta de ginecologia

- Prolapso urogenital total
- Prolapso urogenital interferindo de forma significativa na qualidade de vida da doente
- Prolapso urogenital associado a incontinência urinária e/ou de fezes
- Esvaziamento vesical incompleto ou retenção urinária
- Infecções urinárias de repetição

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Erros e limitações
O diagnóstico clínico de um prolapso urogenital é fácil, podendo existir dois tipos de dificuldades:

1. Na acuidade do reconhecimento dos elementos prolapsados através do intróito vulvar 
A identificação precisa do colo uterino, os toques pélvicos, a utilização do espéculo ginecológico e a sondagem vesical permitem geralmente ultrapassar esta dificuldade.

2. Na detecção de elementos mascarados ou atenuados pelo prolapso (incontinência urinária) 
Esta questão contorna-se mediante a realização do exame ginecológico com manobras redutivas do prolapso (através do toque vaginal e utilização das valvas do espéculo ou da utilização temporária de um pessário vaginal)

O diagnóstico diferencial faz-se basicamente com duas entidades clínicas:
1. Quisto vaginal volumoso
2. Pólipo uterino fibroso volumoso, liso e regular, exteriorizado através do colo e orifício vulvar ou mesmo um fibromioma do colo.
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Pontos práticos a reter
1.O prolapso urogenital é um problema ginecológico comum que, ainda que não constitua qualquer ameaça vital, pode afectar de forma grave a qualidade de vida de muitas mulheres, sobretudo após a menopausa.
2. O prolapso urogenital deve merecer sempre uma avaliação clínica sistematizada no sentido de identificar os casos passíveis de um tratamento cirúrgico definitivo.
3. O tratamento médico da atrofia vulvo-vaginal e de lesões distróficas deve preceder qualquer outro tipo de abordagem terapêutica.
4. A associação frequente de incontinência urinária e/ou de fezes implica a pesquisa sistemática destas alterações.
5. Alguns prolapsos devem ser referenciados para uma consulta de especialidade ginecológica.
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Bibliografia

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Villet,R,Buzelin, J-M; Lazorthes, F: les Prolapsus Génitaux. In Les troubles de la Statique Pelvi-Périnéale de la Femme; Paris Vigot 1995: 119-140.