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Parte IV – Problemas clínicos
4.13. Abordagem do paciente com problemas de saúde mental
402. Demências
Rui Pereira Alves
Carlos Garcia
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Silva, Pedro Ribeiro

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Definição

Com base no Diagnostic and Stastical Manual of Mental Disorders, 4ª edição (DSM IV), podemos definir demência como um sindroma que se caracteriza pela ocorrência de múltiplos defeitos cognitivos (amnésia, afasia, apraxia, agnosia) ou perturbação do funcionamento executivo (incapacidade de pensar abstractamente e de organizar os diversos passos necessários à concretização de qualquer iniciativa).
A perturbação deve ser suficientemente severa para determinar compromisso do desempenho profissional ou social da pessoa e deve representar um declínio de um nível prévio de funcionamento.
Não se deve fazer o diagnóstico de demência se os sintomas ocorrem exclusivamente no contexto de um estado confusional; contudo um estado confusional pode sobrepor-se a uma demência pré existente, caso em que ambos os diagnósticos devem ser feitos.
A demência pode ocorrer em qualquer idade, embora seja difícil identifica-la em crianças muito novas (antes dos 5 anos).
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Epidemiologia
Em 1991 o grupo europeu de estudos da epidemiologia da demência (EURODEM) publicou os resultados de uma reanálise baseada em 12 estudos de prevalência da demência, realizados em 8 países europeus (da Espanha à Finlândia). Desta reanálise resultaram coeficientes de prevalência da demência, por sexo e por escalão etário.
Estes coeficientes foram considerados pelos autores como aplicáveis a outras populações europeias que não as incluídas nos estudos em que assentou a reanálise. Com base neste pressuposto, Garcia C et al, publicaram em 1994 uma estimativa de prevalência da demência para Portugal, assente na aplicação dos coeficientes determinados pelo EURODEM à população definida pelo censo de 1991. De acordo com esta projecção haveria em Portugal 92.470 pessoas a sofrerem de demência.
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Causas

A demência como sindroma que é tem múltiplas causas, umas conhecidas – demências secundárias, e outras desconhecidas – demências primárias. Nas primeiras incluem-se as situações vasculares cerebrais, os traumatismos cranio-encefálicos, os tumores cerebrais, doenças metabólicas inatas ou adquiridas, perturbações endócrinas, infecções ou intoxicações do sistema nervoso, situações carenciais, doenças psicológicas.
As demências de causa desconhecida pertencem ao capítulo das doenças degenerativas do sistema nervoso. Este grupo inclui a Doença de Alzheimer e as demências fronto-temporais (Doença de Pick e Demência Frontal não Pick), a Doença de Corpos de Lewy, a demência da doença de Parkinson, a Coreia de Huntington e algumas outras mais raras.
A demência afecta sobretudo pessoas de mais idade, sendo de longe a Doença de Alzheimer a situação mais frequente, seguida das demências frontotemporais e da demência com corpos de Lewy e da demência de causas vasculares, estas três em proporções aproximadamente idênticas sobrando uma pequena percentagem para as restantes formas de demência.
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Quadro clínico

O quadro clínico da demência, sendo esta um sindroma, tem um núcleo de manifestações comuns, qualquer que seja a causa ou natureza, que são as já referidas na definição de demência e tem, além dessas, manifestações próprias de cada uma das etiologias. Poderão então encontra-se manifestações neurológicas como, por exemplo, parkinsonismo (na Demêcia com corpos de Lewy ou na demência da Doença de Parkinson), movimentos coreicos (na Doença de Huntington), manifestações próprias de doenças gerais (p. ex. hipotiroidismo) ou manifestações comportamentais/psicológicas – alteração da personalidade, ansiedade, depressão, psicose, agitação, agressividade, confusão nocturna (presentes em graus diferentes nas várias formas de demência). 
É importante salientar que, quanto à evolução, a demência pode ser reversível, estável ou progressiva.
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Doença de Alzheimer
Quadro clínico – A doença de Alzheimer instala-se de modo insidioso, progredindo lentamente, às vezes com períodos estacionários e até com aparentes mas fugazes remissões. O número de fases em que pode ser dividida a sua evolução varia consoante os autores, já que é uma doença que progride sem marcos nítidos. Numa primeira fase, quase só os doentes notam as suas falhas. Sentem que a memória não corresponde como antes, que se esquecem de dados do dia-a-dia, que não dominam os assuntos. Passam a socorrer-se de apontamentos e de agendas. É provável que tanto subjectiva como objectivamente, a situada seja mais evidente quanto mais diferenciada ou mais intelectual for a actividade dos doentes. Entretanto o tempo vai passando, a situação agrava-se, os erros dos doentes tornam-se manifestos, as falhas de memória são agora evidentes. Os doentes são aconselhados a afastar-se do seu trabalho, ficam ansiosos e deprimidos e os familiares tornam-se apreensivos. A doença progride, os doentes fazem disparates flagrantes e, muito desorientados, perdem-se com facilidade. Muitos doentes, levados ao médico por familiares, negam queixas e tomam uma atitude de quem não sabe bem porque está ali. A personalidade dos doentes, atingido este período, está francamente deteriorada; deixam de reconhecer familiares e amigos e de identificar os ambientes, o débito do discurso é com frequência pobre, perseverante, ecolálico e com parafasias. Não se vestem sozinhos, perdem os modos de comer que tinham, passando a comer só com a colher ou com a mão e, acidentalmente, têm incontinência dos esfíncteres. Uns mantêm-se calmos, dóceis, outros tornam-se muito irrequietos, mesmo agitados. Muitas vezes, os doentes calmos, embora tenham um «fácies» e um discurso vazios, sem vida, mantêm as práticas sociais, saúdam os circundantes correctamente, usando as fórmulas convencionais. Os doentes irrequietos têm uma hiperactividade sem finalidade, perseverante, chegando a necessitar que aqueles que tomam conta deles os estejam constantemente a conter. Por vezes têm alucinações e ideias paranóides e chegam a ser agressivos. Em muitos, o sono é intercortado por episódios confusionais. Neste período da doença alguns doentes têm ataques epilépticos. Na última fase da doença, os doentes confinados à cama, em mutismo, acabam por adoptar uma postura em flexão pelvi-crural. Necessitam de intubação nasogástrica ou soros para serem alimentados e estão incontinentes. Uma intercorrência, em regra uma infecção respiratória, dá-lhes a morte.
Após as primeiras manifestações, a doença dura, em média, 7 anos, podendo em alguns doentes durar muito menos, chegando em alguns a durar 20 anos.

Epidemiologia – A doença de Alzheimer afecta sobretudo pessoas acima dos 50 anos de idade.
O já citado EURODEM publicou também uma reanálise de estudos europeus da prevalência da Doença de Alzheimer, que esteve na origem de uma estimativa para Portugal, que, com base no censo de 1991, dava conta de haver no nosso país cerca de 50.000 casos da doença.
Recentemente, Ferreira J et al actualizaram este número para a população portuguesa de 2010 de acordo com a projecção do INE. Haverá então cerca de 76 mil casos da doença. 
Consideram-se factores de risco da doença, a idade avançada, ser mulher, baixa escolaridade e o uso de tabaco. 

Etiologia – Nos últimos anos foram identificados alguns genes responsáveis por um pequeno número de casos familiares de Doença de Alzheimer de instalação precoce. Admite-se contudo, que a maioria dos casos da doença resultem da conjugação de factores hereditários e ambientais.

Anatomia patológica – Em termos macroscópicos destaca-se a atrofia cerebral, que vai mais ou menos em paralelo com a severidade da demência. Do ponto de vista microscópico salientam-se vários aspectos: a perda de neurónios, os novelos ou tranças neurofibrilhares, as placas senis e a angiopatia amilóide. Estas alterações localizam-se predominantemente nas áreas associativas dos lobos parietais e temporais. Note-se que as alterações descritas na Doença de Alzheimer são as mesmas que se encontram no cérebro de pessoas idosas sem demência e também no Sindroma de Down (mongolismo).

Bioquímica – Vários defeitos a nível bioquímico e molecular têm sido identificados na Doença de Alzheimer. Dos primeiros a serem identificados, o defeito de acetilcolina tem sido dos mais referidos. Ultimamente tem-se dado muita importância a dois aspectos: a proteína tau, componente dos novelos ou trancas neurofibrilhares, estruturas que aparecem dentro dos neurónios e ao amilóide, ingrediente das placas senis, formações que se desenvolvem nos espaços intercelulares e nas paredes de algumas artérias cerebrais a mencionada angiopatia amilóide.

Tratamento
– As manifestações da Doença de Alzheimer dividem-se em dois grupos: cognitivas (particularmente o defeito de memória) e comportamentais/ psicológicas (depressão, agitação, manifestações psicóticas, insónia). Para estas últimas usam-se antidepressivos, ansiolíticos, neurolépticos e hipnóticos. Para as primeiras apareceram recentemente alguns fármacos que conduzem a um melhor aproveitamento da acetilcolina disponível no cérebro. São eles a tacrina (“Cognex”), o donepesil (“Aricept”) e a rivastigmina (“Exelon”, “Prometax”). Estes medicamentos proporcionam uma melhoria modesta em alguns doentes, no início da doença, não obstam à progressão da doença e têm um preço elevado. A tacrina caiu em desuso por ter alguma toxicidade hepática.
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Demências frontotemporais
São fundamentalmente duas entidades com anatomia patológica distinta mas idêntico quadro clínico: a Doença de Pick e a Demência frontotemporal não Pick. Como o nome indica as lesões cerebrais localizam-se aos lobos frontais e temporais. 
Enquanto na Doença de Alzheimer a perturbação mental se manifesta, particularmente nas primeiras fases da doença, por efeito cognitivo ou intelectual (amnésia, afasia, apraxia, agnosia), nas Demências frontotemporais o defeito, nas primeiras fases, é fundamentalmente comportamental. As primeiras manifestações são de carácter psiquiátrico com perda de motivação e desinteresse que leva a doença a ser encarada como depressão. São frequentes a desinibição, comportamentos sociopáticos, euforia ou apatia, irritabilidade e jocosidade inapropriada. A bolímia é também frequente. Os doente passam a ter dificuldade em desempenhar tarefas que realizavam previamente com facilidade e tornam-se progressivamente mais dependentes.
A instalação destas doenças ocorre entre os 50 e os 65 anos e a maioria dos doentes sobrevivem 6 a 12 anos. 
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Demência com corpos de Lewy
Corpos de Lewy são pequenas formações histológicas que desde inicio até finais do século XX se pensava só existirem em células duma estrutura cerebral profunda (a substância negra) na Doença de Parkinson. Recentemente verificou-se que podem encontrar-se dispersos por todo o córtex cerebral na Demência de corpos de Lewy que é outra forma de demência degenerativa de pessoas idosas que disputa com as Demências frontotemporais o segundo lugar em frequência logo a seguir à Doença de Alzheimer. No inicio o quadro é mais de carácter psiquiátrico como acontece nas Demências frontotemporais. Pode não ocorrer defeito de memória notando-se, sobretudo, desinibição, apatia, falta de consciência das próprias dificuldades, defeito de atenção e perda das capacidades visuoespaciais. Aparecem também dificuldades de linguagem que progridem para franca afasia. Muito típico desta forma de demência é o carácter flutuante das manifestações já que os doentes exibem períodos de perturbação cognitiva alternando com períodos de normalidade. Outros aspectos muito característicos desta doença são a ocorrência de alucinações (mais vezes visuais que auditivas), de sinais de parkinsonismo e uma grande sensibilidade aos neurolépticos que podem provocar nestes doentes manifestações extrapiramidais muito marcadas. 
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Demência Vascular
Quadro clínico – O quadro clínico de demência vascular, podendo ser determinado por diferentes tipos de lesões – enfartes cerebrais grandes ou pequenos ou hemorragias – com variáveis localizações, é muito mais heterogéneo que o quadro clínico da Doença de Alzheimer. Por outro lado, podendo o quadro de demência resultar de um ou mais acidentes vasculares cerebrais, compreende-se que a sua evolução decorra ao sabor da cronologia destes acidentes. Em geral os doentes apresentam-se um pouco apáticos, com variados defeitos cognitivos e com diversos sinais motores conforme a topografia das lesões. Muito característico da demência vascular é o quadro que se costuma designar por pseudo-bolbar. Superficialmente os doentes com esta situação assemelham-se ao doente de Parkinson, arrastam os pés, têm movimentos lentos, voz nasalada, dificuldade para engolir e choram ou riem de modo incontido.

Epidemiologia / Etiologia – A demência vascular afecta mais homens que mulheres e a sua prevalência acompanhará a prevalência de factores de risco de doença cerebrovascular. São muito mais frequentes os casos de demência vascular devidos a enfartes do que a hemorragias, resultando em geral de ocorrência de vários enfartes grandes ou pequenos. Os enfartes grandes são determinados por embolias cardíacas, embolias com origem nas grandes artérias do pescoço ou trombose das artérias cerebrais. Os enfartes pequenos (lacunas) ocorrem nas regiões centrais do cérebro, resultado da oclusão das finas artérias penetrantes ou perfurantes, em consequência da hipertensão e/ou diabetes.

Tratamento – Correcção dos factores de risco de doença cerebrovascular e antiagregação.
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Clínica da demência

O diagnóstico de demência assenta na entrevista com o doente e no resultado dos testes neuropsicológicos. Estes devem ser realizados por um técnico com experiência em situações demenciais. Se o médico acha que o doente está demente pode ser que a natureza da demência seja óbvia. É o caso, por exemplo, do doente que sofreu um traumatismo craniano grave. Não sendo assim, poderão a história, o exame geral e o exame neurológico fornecer as pistas que vão orientar o médico para determinados exames complementares de diagnóstico, por exemplo, a investigação de um hipotiroidismo, a realização de punção lombar, electroencefalograma ou provas para a síndroma de imunodeficiência adquirida. Na falta de uma pista definida, o seguinte conjunto de exames complementares deve ser requisitado: tomografia axial computorizada (TAC) cranioencefálica, hemograma, velocidade de sedimentação, doseamento de glicose, ureia, creatinina, cálcio, vitamina B12 e folatos, ionograma, análises para sífilis, provas hepáticas, provas tiroideias, urina, electrocardiograma e radiografia do tórax. 

Diagnostico diferencial - Na clínica da demência dos idosos há algumas situações de diagnóstico diferencial difícil:
1. entre demência incipiente e normalidade
2. entre demência e depressão
3. entre Doença de Alzheimer e Demências frontotemporais

No primeiro caso e tratando-se de uma pessoa em que a expectativa é duma demência que terá um agravamento progressivo, é razoável adiar o diagnóstico por uns seis meses. A passagem do tempo ajudara a esclarecer o diagnóstico.
O médico confrontado com o segundo problema diagnóstico poderá optar por instituir um tratamento antidepressivo. Tratando-se de uma depressão o doente melhorará o que não acontecerá no caso de sofrer de Doença de Alzheimer. O diagnóstico diferencial entre Doença de Alzheimer e Demências frontotemporais não é fácil nomeadamente porque, tal como no caso anterior, nem uma nem outras se acompanham de sinais neurológicos distintivos, não existe uma marcador biológico para qualquer delas e os testes neuropsicológicos não são definitivos para a distinção. 
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Repercussão na família e na sociedade

Todos os doentes dementes têm maior ou menor grau de dependência. No caso dos doentes de Alzheimer, logo a partir de muito cedo, começam a necessitar de vigilância e apoio constante.
A Doença de Alzheimer representa um enorme fardo para as famílias dos doentes, quer no aspecto económico, quer no aspecto emocional e físico. A Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer proporciona apoio de diversos tipos, bastando para tal um contacto telefónico (Tel.: 218 465 665)
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Bibliografia
DMS IV – Diagnostic and Statistical Manual. Ed Ass Americana de Psiquiatria. 4 ed. 1994.

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