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Parte IV – Problemas clínicos
4.19. Cuidados ao paciente com cancro
496. Registos Oncológicos
João Amado
Joaquim Barbosa Ferreira
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Pombal, Rui

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Introdução
A patologia neoplásica tem vindo, progressivamente, a ocupar em todo o mundo, e igualmente entre nós, um lugar de destaque entre os principais problemas de saúde e os seus padrões, em muitas populações através do mundo, são ainda desconhecidos, sendo provável que diferenças da maior relevância possam vir ainda a ser descobertas.

O cancro como doença orgânica complexa, de etiologia múltipla e com amplo conjunto de manifestações, representa em termos de causalidade e em plano de intervenção, um desafio à investigação epidemiológica. Foi deste mesmo incentivo, através da colheita e análise dos dados da doença e partindo muitas vezes da simples suspeita de que algo de anormal poderia estar a acontecer, que a epidemiologia possibilitou o desenho de mapas da distribuição geográfica e/ou temporal do cancro, tornando-se possível demonstrar variações na incidência, não só entre países e/ou regiões, como também entre diferentes tipos e/ou localizações de cancro. 

Na verdade, muito antes que outros novos progressos técnico-laboratoriais ou de imagem tivessem sido introduzidos na moderna medicina, a epidemiologia com o método próprio de que dispõe, complementado a maioria das vezes com a subjacente análise estatística, conseguiu não só desenhar mapas de distribuição espaço-temporal da doença como também estabelecer relações para determinação de riscos numa dada população e para dado factor. Assim, pôde prever-se, com vinte anos de antecedência, o declínio global da incidência do cancro do estômago no Japão, pela incidência nos grupos etários mais jovens, e pôde igualmente detectar-se um surto "epidémico" de cancro do colo do útero na Califórnia, na sequência do uso generalizado de estrógenos no período da menopausa baixando logo que a prescrição foi reduzida. O mesmo sucedeu, também, nas mulheres canadianas que tinham ingerido, durante a gravidez, o dietilstilbestrol e a sua relação com o cancro da vagina das suas filhas. E ainda se podem aduzir como exemplo os alcançados por Torres (a alta incidência do cancro do fígado nos negros de Moçambique); Wronkowsky (a variação da incidência do cancro gástrico entre os havaianos e diferentes grupos de emigrantes); R.Doll (fumo do tabaco e cancro do pulmão nos médicos britânicos); Amstrong & Doll (consumo de gordura e cancros da mama e colon) e Linsell (aflotoxinas e carcinoma hepato﷓celular; infecções e leucemia; radiações e cancro).

Hoje, diversas fases percorridas, a investigação epidemiológica tem sido especialmente chamada à monitorização de programas de prevenção e à quantificação de riscos os quais, porque na maioria circunstanciais, podem ser em grande parte evitados. 
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Os indicadores de saúde e o cancro

As estatísticas de mortalidade continuam largamente utilizadas como importante indicador de saúde das populações. Contudo, possuem um grau de fiabilidade que varia não só entre os países como também dentro das suas próprias regiões e ao longo dos anos. Estudos sobre a avaliação da qualidade dos certificados de óbito têm demonstrado limitação dos seus dados, revelando grande variabilidade nos diagnósticos, nomeadamente no que se refere à causa principal. 

Face às limitações referidas e nomeadamente para o cancro, seria preferível utilizar estatísticas de morbilidade. Estas são, porém, no geral, de obtenção difícil porque, em regra, após um período de entusiasmo inicial na sua recolha, há uma progressiva desmotivação dos técnicos respectivos - suporte essencial - e porque, para a maioria da população, se torna pouco evidente o benefício daí decorrente. A retro informação, a qual deve ser o mais ampla e completa possível, atingindo prioritariamente os agentes fornecedores dos dados, poderá tornar-se um reforço à sua, por natureza, precária motivação para o envio dos mesmos e um estímulo à sua qualidade.

Especificamente, no que ao cancro diz respeito podemos afirmar que estas condicionantes não são tão restritivas pois trata-se de uma patologia frequente, responsável pelo maior número de mortes de pessoas em idade activa e que marca no seu espectro ou realidade, mental ou fisicamente, a população que é atingida, motivando positivamente o próprio notificador. O elevado número de anos de vida perdidos, juntamente com os complementares de mortalidade e morbilidade, complementarão a avaliação global deste problema de Saúde Pública. 
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Registos de cancro

Do sentir à sua necessidade. É neste contexto que, de entre as doenças ditas da civilização, o cancro foi exigindo e merecendo, pelas suas características, um registo específico que permita o conhecimento actualizado, permanente e comparável dos casos, com vista à definição de estratégias para o combater. 

Os registos de cancro como base estruturada são relativamente recentes. A expressão que a doença neoplásica assume na população em geral e no indivíduo em particular (a nível físico, mental, de grupo etário, sexo ou raça), faz com que ela se tenha tornado um campo prioritário da investigação epidemiológica. 

Definição. Os registos oncológicos ou de cancro são sistemas de informação sobre os novos casos de cancro que surgem numa determinada população e área geográfica num dado período de tempo. A sua actividade comporta a recolha de dados dum modo contínuo (permanência do registo) e sistemático (cobertura completa das diferentes fontes e casos) sobre a ocorrência da doença, seu tratamento e respectiva análise utilizando uma estrutura passível de estabelecer comparações entre diferentes áreas ou países. Dentro desta perspectiva, realçando a sua importância, surgiu em 1991 como resultado da cooperação entre a “International Agency for Research on Cancer” e a “International Agency of Cancer Registries”, o livro “Cancer Registration, Principles and Methods” (actualização do “Cancer Registration and its Techniques “).

Objectivos. Globalmente, o objectivo de um registo de cancro é contribuir para a avaliação e controlo das neoplasias numa dada comunidade. Um registo de cancro pode cumprir diferentes objectivos:
- avaliação da incidência do cancro;
- centralização do registo de doentes; 
- colheita sistemática de dados clínicos;
- avaliação das necessidades actuais e futuras.

Tipos de registos. É habitual considerar dois tipos fundamentais de registos: os de base populacional e os de base hospitalar. A qualquer deles se têm vindo a juntar os registos específicos para determinado grupo etário, patologia ou ocupação. Pela sua importância e características, explanaremos apenas o que aos registos de base populacional diz respeito.
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Registos de cancro de base populacional

O registo de cancro de base populacional, de âmbito mais lato que o hospitalar, tem como finalidade identificar todos os novos casos de cancro surgidos numa dada população em área geográfica bem definida, em determinado período de tempo, permitindo, assim, o cálculo de incidências. Habitualmente colige, também, um conjunto de informação pré-fixada, fonte importante para posteriores estudos epidemiológicos. A informação recolhida, para além dos estudos específicos na área abrangida, pode e deve ser utilizada, principalmente no planeamento e avaliação dos programas de controlo do cancro. Estes registos proporcionam aos serviços de saúde, um instrumento ímpar de aproveitamento das estatísticas de morbilidade: permitem não só a determinação do peso da patologia e as variações que vai sofrendo, como também a planificação das medidas preventivas ou de controlo necessárias; possibilitam, ainda, a necessária avaliação e eventual reformulação dos planos daí decorrentes. A informação que diz respeito à incidência do cancro por localização, sexo, idade e região permitem igualmente, a planificação das disponibilidades de diagnóstico e tratamento. Atestando esta importância estão os 163 registos, distribuídos por 50 países -- incluído o Registo de Cancro do Concelho de Vila Nova de Gaia (ROG)—cujos dados se concentram no “Cancer Incidence in Five Continents”. Importante será referir que estas bases não deverão ser arquivos criados e mantidos como luxuosas colecções de dados: deverão ser utilizadas sobretudo pelos médicos de família nas sua unidades ou centros como fonte de estudos específicos e planeamento. Poderíamos dizer a este respeito que a epidemiologia não é uma ciência narcísica com fim meramente questionante de "diagnósticos": vale pelo que vale a acuidade do seu juízo sobre a realidade em si (nos processos de diagnóstico ou nos de avaliação) e sobre as premissas obtidas para a definição do planeamento dos serviços de saúde (problemas, prioridades e estratégia aí inseridos). No que ao cancro se refere, a epidemologia tem como horizonte as acções destinadas ao controlo do cancro: foi mesmo com este objectivo que se criaram e desenvolveram os registos de cancro. 
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Os registos de cancro na informação e planeamento em saúde

Através de métodos epidemiológicos apropriados, os registos de cancro estabelecidos, permitem a pesquisa, explicitação e eventual monitorização de factores carcinogénicos ou protectores em determinados meios.

Pela identificação dos doentes, o registo de cancro pode ainda fornecer aos diversos serviços, incluindo os de segurança social, dados precisos para um atendimento e seguimento mais apropriado das pessoas das classes sociais mais desfavorecidas nas quais o risco de cancro aumenta ou das socialmente incapacitadas e a necessitar da sua intervenção. 

A nível ocupacional os registos permitem uma abordagem analítica quer através dos estudos caso-controlo quer sobretudo de «coorte», os quais são instrumentos extremamente poderosos para detecção de riscos e/ou confirmação de hipóteses. Nesta área podemos apontar, como exemplos mais relevantes, o adenocarcinoma nasal nos trabalhadores da madeira, o mesotelioma da pleura, o hemangiosarcoma do fígado relacionados, respectivamente, com os asbestos e o cloreto de vinilo e os do cólon, mama, endométrio e ovário nos grandes consumidores de gordura animal. 
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Pontos práticos a reter

Através de estudos do tipo descritivo, a epidemiologia pelos registos de cancro possibilitou o desenho de mapas de distribuição geográfica do cancro, das variações na sua frequência e das características específicas da população afectada.

“O registo de cancro, segundo Jensen, faz hoje parte de um moderno sistema de informação em saúde. Uma cuidada avaliação da dimensão do cancro, porém, depende da criação de um registo de cancro de base populacional".

Os registos de cancro têm, pois, um papel charneira no controlo do cancro e, pelos dados que dos mesmos se tornam disponíveis, pode a Epidemiologia empreender estudos especiais do tipo analítico, nomeadamente caso-controlo e «coorte», essenciais à colocação de hipóteses etiológicas e à detecção de novos riscos. 

São os registos adequadamente conduzidos que permitem, ainda, avaliar alterações, nomeadamente nas taxas de incidência, seja na dependência de programas de rastreio e prevenção, seja por alterações ocorridas no meio ambiente. É este, com efeito, um dos seus inegáveis e insubstituíveis contributos. Como afirmam Teppo e colaboradores (1985) "não é fácil construir um sistema de monitorização eficaz da patologia oncológica sem um registo de cancro". 

Concluindo, os registos de cancro retribuem à epidemiologia o que ela lhes possibilita, nomeadamente na qualidade dos seus dados; a Epidemiologia entrega à saúde, pelos registos, a garantia de uma adequação inovadora e contínua à realidade vivida das comunidades. 
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