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Parte IV – Problemas clínicos
4.20. O paciente com patologia múltipla

498. Síndrome plurimetabólico
Rosa Gallego

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Ramos, Vitor

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Introdução
Pouco tempo após a purificação e utilização da insulina em 1922, por Banting e Best, começaram a surgir descrições da resistência à sua acção na prática clínica, definida tradicionalmente pelo necessidade de mais de 100 UI por dia para conseguir compensar os valores da glicemia.

Este conceito, que apenas abrangia os diabéticos insulinodependentes (tipo 1), veio a ser alargado àqueles cuja produção endógena se encontra diminuida. Esta associação da insulino-resistência, com o que veio a designar-se diabetes tipo 2, e com uma elevada incidência de alterações vasculares, que ocorrem com maior frequência nos obesos, associadas à insulinoresistência e hipertensão, é mais frequentemente observada nos que apresentam obesidade visceral (tipo andróide), tal como Vague descreve nos anos 50.

Iniciou-se então um longo debate e pesquisa científica que levaram à apresentação, em 1988 por G. Reaven, de um sindrome que associava factores de risco cardiovasculares, como a dislipidemia (aumento dos triglicerideos e colesterol das HDL baixas), a alterações do metabolismo glucídico, ao hiperinsulinismo e a hipertensão sistólica em presença de insulinoresistência, e que foi denominado Sindrome Plurimetabólico (Sind X ou de Reaven).

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Quadro I

Síndrome de Reaven

1. Intolerância à glucose oral ou diabetes tipo 2
2. Aumento dos triglicéridos
3. Diminuição das HDL do colesterol
4. Aumento da tensão arterial sistólica
5. Insulinoresistência
6. Hiperuricemia
7. Microalbuminúria



A hipótese de Reaven, salientando a resistência dos tecidos ao efeito da insulina como factor de ligação entre várias alterações metabólicas e de doença cardíaca coronária, motivou inúmeros estudos clínicos e observações epidemiológicas nas últimas décadas, tendo vindo a tornar-se evidente, nos últimos anos, que a hiperuricémia, a microalbuminúria e a personalidade de tipo A são mais comuns neste síndrome, sendo sugerido que as duas primeiras manifestações possam depender da retenção anormal de insulina no rim.

A utilização de técnicas sofisticadas de "clamp de insulina euglicémico"*, permitiu confirmar a evidência da implicação da insulinoresistência como o factor comum neste sindrome, assim como os mecanismos envolvidos forneceram o fundamento para as alterações vasculares encontradas, quer nos diabéticos, quer nos não diabéticos.

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Quadro II

"clamp de insulina euglicémico"

A sensibilidade à insulina pode ser medida, para fins de investigação, utilizando técnicas pela qual se induzem níveis elevados ou suprafisiológicos de insulina, por meio da sua infusão intravenosa, e se medem as concentrações de glicemia a intervalos curtos. De acordo com os valores obtidos efectua-se a infusão de glucose de modo a manter a concentração da glicemia. Após 1 a 2 horas alcança-se o nível constante de quantidade de glucose necessária para estabilizar a glicemia. Neste momento, aquela corresponde à quantidade de glucose utilizada pelo organismo, sob os níveis artificialmente elevados de insulina. Esta "taxa de consumo de glucose" é um índice da sensibilidade à insulina do individúo submetido ao teste. Se for inferior a 6 mg/kg peso/min com concentrações de insulina de 80mU/ml o indivíduo apresenta resistência à insulina.

Enquanto não se consegue diferenciar os efeitos do hiperinsulinismo dos da insulinoresistência subjacente, mais estudos têm vindo a comprovar que, quer em populações de individúos "normais", quer com intolerância à glucose oral, quer em diabéticos tipo 2, os factores de risco de aterosclerose parecem ocorrer sempre em relação com a insulinoresistência, irrespectivamente do grau de intolerância à glucose. 

A hipótese do desenvolvimento da aterosclerose ser um fenómeno post-prandial sustentada pelas alterações encontradas nos valores postprandiais da glicemia e dos lípidos, sobretudo em individúos com obesidade visceral, levanta a hipótese de que as alterações lipídicas encontradas sejam mais consequência da insulinoresistência do que causa desta.

Enquanto se chega a relacionar, em mulheres post-menopausicas, o baixo peso à nascença e obesidade na idade adulta, como factor determinante de sindrome plurimetabólico, outros questionam-se sobre a evidência da associação entre os elementos do síndrome, o que nos demonstra que ainda está por percorrer um longo caminho até ao seu esclarecimento total.

A evidência epidemiológica da associação entre a diabetes tipo 2 e o conjunto de alterações integradas no Síndrome Plurimetabólico parece, no entanto inquestionável. A prevalência crescente da diabetes tipo 2, seguida predominantemente nos cuidados de saúde primários, levanta questões práticas do tratamento desta situação que importa considerar:

1. O UKPDS veio demonstrar que o tratamento correcto da diabetes tipo 2 passa por corrigir, não só a glicemia, mas também a pressão arterial elevada causas subjacentes da elevada morbimortalidade cardiovascular nestes doentes. A diabetes per se, no entanto duplica o seu risco cardiovascular, mesmo quando controlados os demais factores, incluíndo o tabaco.

2. Sabendo-se que a maioria dos doentes neste síndrome têm como factor subjacente a insulinoresistência, sobretudo a nível do músculo, fígado e tecido adiposo (sobretudo o visceral), a promoção do exercício físico adaptado à idade e estado clínico e uma alimentação equilibrada e pobre em gorduras monossaturadas é evidente, sendo a dieta mediterrânica considerada o exemplo a prescrever.

3. A prescrição do tratamento, nestes doentes, exige uma análise cuidada do seu perfil de risco e a seleção de terapêutica farmacológica, que actue sem agravar nenhumas das outras situações coexistentes.

4. Todos os estudos clínicos prospectivos demonstraram ser a definição individual do perfil de risco a melhor e mais adequada forma de tratar esta situação tendo como objectivos de tratamento valores cada vez mais baixos quer nos níveis tensionais quer nos valores de glicemia, e/ou lipidos, que importa saber discutir e propôr ao doente.

5. A definição de um plano terapêutico a curto, médio e longo prazo para a maioria destes doentes exige a intervenção de equipa multidisciplinar e a coordenação das acções desta pelo médico de família.

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Quadro III

Terapêutica farmacológica:

1. Na intolerância à glucose e/ou diabetes considerar os fármacos com possível acção na insulinoresistência, comprovada eficácia no controlo da diabetes no obeso (acarbose, metformina e tioglitazolidionas – estas ainda não disponíveis no mercado), sobretudo na presença de obesidade e desde que não haja contra-indicação para o seu uso.
2. Na hipertensão arterial considerar sobretudo os grupos terapêuticos com acção protectora renal, com pouca ou nenhuma interferência com o metabolismo glucídico e lipídico (inibidores do enzima de conversão, antagonistas do cálcio e os alfabloquedores)
3. Nas alterações lipícas, se não corrigidas após correcção dos valores de glicemia, utilizar de preferência os fibratos para a hipertrigliceridemia e as estatinas para a hipercolesterolemia e dislipidemias mistas.
4. Considerar a terapêutica antitrombótica com àcido acetisalicilico em doses baixas de 100 -150mg/dia

Não existe, no entanto, evidência de que qualquer grupo terapêutico seja mais eficaz do que outro, mas sim de que a morbimortalidade cardiovascular nestes doentes diminui com a redução dos valores da tensão arterial, de glicemia e dos lipidos, o que torna ainda mais manifesta a importância da avaliação individual do perfil de risco de cada doente, para a definição de objectivos que se pretendem o mais exigentes possível.
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