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Parte IV – Problemas clínicos
4.20. O paciente com patologia múltipla

501. Polifarmácia e seus riscos
Licínio Laborinho Fialho
Rui Manuel Cabral Susano

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Ramos, Vitor


O paciente com patologia múltipla, e muitas vezes crónica, caracteriza-se pela dependência de recursos, técnicos e humanos, mesmo na presença de problemas mínimos. O aumento da longevidade e o consequente acréscimo da prevalência de doenças crónicas tem determinado um maior consumo de cuidados, de médico e de medicamentos. A polifarmácia daí decorrente é necessariamente longa, contínua e as mais das vezes vasta. 

Em 1995 existiam, no nosso país, 21,7 adultos com 65 ou mais anos por cada 100 adultos em idade activa. As consultas em Cuidados de Saúde Primários totalizaram 80.5% das consultas efectuadas em Portugal. Sendo a prescrição farmacológica usual e necessária a nível dos cuidados ambulatórios o médico de família arroga-se como o principal gerador de dependência de fármacos defrontando um duplo desafio: controlar as várias patologias e, ao mesmo tempo, os efeitos secundários e interacções medicamentosas decorrentes dessa luta.

Embora em Portugal não tenham sido efectuados estudos para determinar os hábitos de prescrição da classe médica ou os hábitos de auto medicação pensa-se que a realidade portuguesa não andará muito longe do que acontece noutros países: os fármacos são consumidos principalmente pela população idosa, a maior parte das vezes, com vários medicamentos em simultâneo, muitos deles com total desconhecimento do médico assistente. Por isso a polifarmácia é mais prevalente entre os idosos.
O consumo simultâneo de vários fármacos determina a frequência de interacções medicamentosas e susceptibiliza o aparecimento de reacções adversas medicamentosas sendo estas tanto mais frequentes quanto maior é a idade do paciente e o número de fármacos utilizados, aspectos que se associam a uma elevada morbilidade e mortalidade.
Entre os fármacos mais frequentemente envolvidos no aparecimento de reacções adversas medicamentosas incluem-se os anti-hipertensores, os antiasmáticos, a digoxina, os psicotrópicos e os hipnóticos, os analgésicos e os AINEs e os hipoglicemiantes orais.

As reacções adversas medicamentosas podem resultar, em relação à farmacocinética, de alterações na absorção, na distribuição, no metabolismo ou na excreção e, em relação à farmacodinâmica, da perda ou de alterações da sensibilidade para os receptores. Nos idosos a juntar a estes factores acrescentam-se as alterações corporais: diminuição da água corporal e da massa muscular, aumento da gordura o que se traduz por alterações na semi-vida dos fármacos bem como alterações nas funções hepática (diminuição do fluxo sanguíneo hepático e da actividade hepato-celular intrínseca) e renal (diminuição da velocidade de filtração glomerular, da secreção tubular e do fluxo sanguíneo renal).

Ainda não está estabelecida a etiologia da polifarmácia embora várias razões sejam apontadas:
1. Existência simultânea de várias patologias;
2. Tendência para a procura de vários médicos, cada um deles com a sua prescrição (multiplicidade de prescritores);
3. Tendência para a manutenção das terapêuticas apesar da indicação em contrário;
4. Fraca revisão terapêutica durante a consulta médica;
5. Tendência para a auto medicação;
6. Tendência para a prescrição, algumas vezes sendo desnecessária, quer por pressão terapêutica ou por simples conveniência clínica.

Como factores preditivos incluem-se a hospitalização recente, o envelhecimento, a condição feminina e o agravamento de uma síndrome depressiva.
Pelo facto da maioria dos estudos de fármaco-vigilância serem efectuados em doentes com patologias únicas é de admitir a hipótese altamente provável de uma amálgama de efeitos quando se está na presença de vários fármacos a interagir simultaneamente e, no paciente com patologia múltipla, eventualmente perante a falência ou desequilíbrio de vários sistemas orgânicos sobretudo das suas funções hepática e renal dado serem estas as principais vias de eliminação dos fármacos.

Desta forma a polifarmácia é um problema de saúde que por todos deve ser considerado sobretudo quando estamos na presença de doentes com multipatologia, com patologias graves e sobretudo se se tratam de idosos. Nos idosos as intercorrências farmacológicas (iatrogenia e iatropatologia) são mais frequentes, mais graves e mais atípicas por isso nem sempre de fácil detecção pois muitas vezes confundem-se com a patologia já existente. Daí ter de haver um enorme bom senso no hábito de prescrever sendo por demais conhecida a bizarra situação de se prescrever para combater sintomas os quais não são senão efeitos adversos dos fármacos, ou seja, a sensata suspensão de um (ou mais) fármaco(s) é substituída pela junção de um outro. Aliás, perante um idoso poli medicado e com sintomas não habituais, é correcto pensar-se em iatropatologia.

De entre os principais sintomas suspeitos de iatrogenia incluem-se as náuseas, vómitos, anorexia, hipotensão postural, sonolência, mal-estar ou queda, incontinência urinária, síndrome confusional ou alterações psíquicas.
Com uma margem de actuação terapêutica bastante curta impõem-se algumas regras de modo a reduzir a iatrogenia e optimizar a sua eficácia:

Prescrever apenas se:
1. Conhecer bem os fármacos que vai prescrever;
2. Conhecer os seus efeitos acessórios;
3. Conhecer as interacções entre os fármacos a utilizar;
4. Conhecer a fisio(pato)logia do doente a medicar;
5. Conhecer a história medicamentosa anterior (incluindo medicamentos de venda livre);
6. Inquirir rigorosamente sobre o número exacto de fármacos em consumo;
7. Suspender os que aparentemente não são necessários;
8. Prescrever o menor número de medicamentos possível, estabelecendo uma ordem de prioridades (não mais de cinco em idosos tratando essencialmente as patologias mais dolorosas e incapacitantes);
9. Em idosos utilizá-los na mais baixa mas eficaz dose possível (um terço ou metade da dose normalmente utilizada em adultos mais jovens), aumentando-as cuidadosamente;
10. Evitar a prescrição de fármacos sobre os quais ainda há pouco conhecimento (por questões éticas os ensaios das Fases I, II e III de fármaco-vigilância não incluem idosos);
11. Rever com regularidade os planos terapêuticos (eficácia, indicação, relação risco-benefício e custo-benefício).

Ao doente:
1. Explicar, pelo facto de se estar em presença de um doente poli medicado com o consequente risco de iatrogenia, se prescreve apenas os medicamentos considerados fundamentais mas suficientes para o alívio da sintomatologia;
2. Explicar que, em determinadas patologias, a terapêutica não farmacológica – mudança de estilos de vida, hábitos higieno-dietéticos, exercício físico – pode ser tão eficaz quanto a administração de fármacos;
3. Engendrar esquemas terapêuticos os mais simples possíveis e explicá-los de forma clara e sucinta;
4. Procurar confirmar que o doente (ou os seus familiares) percebeu todas as instruções;
5. Verificar que os medicamentos devem estão facilmente identificados (etiquetagem) e são facilmente manuseados (recipientes acessíveis);
6. Conseguir, sempre que possível, no caso de idosos ou incapacitados, que um familiar vigie a administração dos fármacos;
7. Recomendação de, na consulta seguinte, trazer todos os medicamentos, sem excepção, que utiliza no momento.

Embora em muitas intervenções terapêuticas, os benefícios excedam largamente os riscos, outras há que parecem ser desnecessárias, inadequadas ou pelo menos duvidosas. Desta forma, estas prescrições injustificadas podem associar-se a gastos não só com a própria medicação como também com a resolução das próprias reacções adversas medicamentosas e com algum prejuízo na relação médico-doente podendo dessa tensão resultar uma agressividade latente por parte do utente e um sentimento de culpa da parte médica. Parece todavia haver uma nítida tendência para tratar apenas as enfermidades de maior aparato sintomatológico o que, por sua vez, pode levar à omissão de tratamento de patologias supostamente menores com o risco inevitável de posteriores problemas médico-legais por negligência.
É dever do médico de família estar atento aos efeitos adversos dos fármacos. Estes, por vezes, diluem-se na patologia de base. Todas estas recomendações vão no sentido de se conseguir maior segurança na utilização dos fármacos não só para quem os prescreve como também mas principalmente para quem os utiliza. Ninguém duvida do valor ou da utilidade dos fármacos. Mas a iatrogenia é uma realidade, algumas vezes grave, outras fatais.
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