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Parte IV – Problemas clínicos
4.4. Abordagem do paciente com problemas digestivos
205. Prevenção da obstipação
Sebastião Baleiras
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Outeirinho, C;
Melo, Miguel

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Introdução
A obstipação é um problema comum na nossa sociedade. É uma das queixas mais comuns nas consultas de medicina geral e familiar. Afecta duas vezes mais as mulheres do que os homens, com mais incidência nas idades mais avançadas. A obstipação ou «prisão de ventre» é uma das queixas mais frequentes no Mundo desenvolvido Ocidental.
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Definição
Não existe uma definição aceite universalmente, dadas as diferenças geográficas, étnicas e rácicas nos hábitos intestinais. Para nós, consideramos que existe obstipação, quando o paciente tem menos de uma defecação em cada três dias, em que o doente se esforça frequentemente para expulsar fezes duras. O indivíduo normal tem mais de três dejecções por semana.
Devemos procurar identificar as possíveis causas de obstipação, apesar de sabermos que existe um número muito significativo de casos em que a causa é idiopática. O médico de clínica geral deve procurar identificar as causas que condicionam a obstipação, assim como proporcionar um alívio sintomático aos que não possuem lesão orgânica. O excessivo uso de laxantes e uma dieta inadequada em fibras poderão ser a causa de uma obstipação crónica.
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Fisiopatologia e apresentação clínica
O processo de eliminação dos resíduos fecais envolve dois processos: o enchimento do recto através do transporte pelo cólon e o reflexo da defecação, podendo a obstipação surgir em qualquer uma destas fases. O tempo que os alimentos levam a atingir o ânus depende da quantidade de fibra na alimentação. Os indivíduos normais com uma dieta de 15 gramas de fibra por dia, têm duas vezes mais dejecções que aqueles que ingerem pequenas quantidades. Os pacientes com obstipação devida à falta de ingestão de fibra, resolvem plenamente o problema com a alteração dietética.
O exercício tem um efeito importante na propulsão do conteúdo fecal. Tem-se verificado que o trânsito do cólon é significativamente maior nos indivíduos fisicamente activos em relação àqueles com pouca actividade. Poderão ser obstipados, tanto os indivíduos com estilo de vida sedentário como os que tinham uma vida activa e se tornaram inactivos.
As perturbações endócrinas e metabólicas podem retardar o trânsito intestinal, sendo as mais importantes a hipocaliemia, a hipercalcemia, o hipotiroidismo e a diabetes. A hipocaliemia poderá ser devida ao uso de diuréticos, ao abuso crónico de laxantes, à indução do vómito pelo desejo patológico de perder peso e perturbações da personalidade. Quando a obstipação é por hipotiroidismo, estão geralmente presentes outras manifestações desta patologia, embora a presença de dejecções pouco frequentes possa ser o sintoma de apresentação. Nos diabéticos, a obstipação é uma queixa muito frequente, quer pela neuropatia, ou pela hipercalcemia que pode lentificar a motilidade intestinal.
As obstruções mecânicas devidas a tumores, estenoses ou volvos podem ser responsáveis pela presença de obstipação. É característica a ocorrência de cólicas e distensão abdominal em conjunto com uma alteração marcada dos hábitos intestinais. Mais de 50% dos pacientes com neoplasias colo-rectais têm obstipação, que geralmente aparece em fases avançadas da doença mas que também pode estar presente no seu início. Na apresentação da doença de Crohn a obstipação surge mais frequentemente do que a diarreia, devido ao envolvimento transmural que predispõe às cicatrizes e oclusão.
O uso de fármacos pode condicionar um quadro de obstipação. Os opiáceos e os agentes com actividade anticolinérgica como os antidepressivos estão frequentemente implicados. Os bloqueadores dos canais de cálcio podem lentificar a motilidade intestinal, e a colestiramina pode induzir obstipação através da ligação aos sais biliares. O hidróxido de alumínio e o carbonato de cálcio são antiácidos que também são obstipantes. A utilização habitual de laxantes está associada a alterações da actividade motora. 
Na depressão, encontra-se muitas vezes obstipação associada a muitas outras queixas somáticas. Na síndroma do cólon irritável, existe um aumento da prevalência de somatizações, ansiedade e fobias que têm sido ligadas ao desencadear de perturbações da função intestinal.
A obstipação pode ser o sintoma de apresentação de alterações neurológicas, nomeadamente lesões da coluna vertebral, esclerose múltipla e esclerodermia.
Uma ingestão inadequada de fluidos pode desempenhar um papel importante na obstipação, já que uma quantidade significativa das fezes é água proveniente da ingestão.
Um erro grave consiste no adiamento habitual da resposta defecatória, causando progressivamente uma sensibilização do recto, que passa a responde apenas a estímulos cada vez mais intensos, logo, só possíveis com uma distensão rectal muito marcada 
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Causas de obstipação:
Para comodidade de estudo, podemos sistematizar as causas da obstipação em grandes grupos, sem que percamos a noção da frequência das diferentes condicionantes que nos surgem no nosso dia-a-dia.

Causas locais – diverticulose, tumores, colite ulcerosa, estenoses, doença de Crohn, endometriose, fissura anal, hemorróidas, cólon irritável, gravidez, abuso de laxantes, síndrome do cólon irritável, inadequada quantidade de fibra na dieta, esclerodermia.

Psiquiátricas – depressão, retenção de fezes, fobias, somatização.

Neurológicas – Doença de Parkinson, ictus, esclerose múltipla, lesões medulares, doença de Hirschprung.

Metabólicas/Endócrinas – Uremia, hipocaliemia, diabetes, hipotiroidismo, hipercalcemia.

Iatrogénicas - Analgésicos, ferro, antiácidos contendo alumínio e cálcio, sucralfato , antiparkinsónicos, diuréticos, anti-hipertensores, anticolinérgicos, opiáceos, antidepressores tricíclicos, disopiramida, bloqueadores dos canais de cálcio, anti-histamínicos e, paradoxalmente, os laxantes, por causarem perturbações do equilíbrio hidroelectrolítico.

Ambientais – Debilidade, imobilidade, desidratação, inactividade.
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Epidemiologia
Na actividade diária dos médicos de família, a queixa de obstipação é das mais apresentada pelos doentes 
Apesar da variabilidade da definição, calcula-se que uma em cada dez pessoas tenha obstipação crónica. Na nossa experiência de médicos de família, verificamos que cerca de 2,5% dos nossos utentes têm este diagnóstico, confirmado como um problema crónico, sendo mais frequente no sexo feminino que no masculino (8 para 10) e, nos idosos a partir dos 75 anos. 
A existência de anorexia e a perda de peso apontam para uma possível neoplasia subjacente, enquanto que a emissão de sangue juntamente com as fezes é mais sugestiva de fissura anal ou, mais raramente de uma colite. Uma causa que pode passar desapercebida é a obstipação induzida por fármacos, em regra antidepressivos, analgésicos e preparados de ferro.
Por vezes a obstipação pode integrar o quadro de um síndrome de cólon irritável, devendo, nestes casos estar presentes três dos seguintes sintomas: - distensão abdominal evidente; - dejecções incompletas; - emissão de muco pelo recto; - fezes mais moles com início das dores; - fezes mais frequentes com o início das dores.
Geralmente o exame clínico é pouco esclarecedor, no entanto, deve-se palpar sempre o abdómen e observar o recto, em doentes com mais de 45 anos, para despiste de massas. Nos casos refractários, são úteis análises simples, como sejam a detecção de diabetes, função tiroideia, cálcio sérico, hemograma completo, ureia e electrólitos.
Perante uma suspeita de uma oclusão do cólon, é necessário pedir uma colonoscopia ou uma sigmoidoscopia. O achado de uma mucosa do cólon pigmentada é comum nos pacientes que abusam de laxantes de antraquinona, como o óleo de rícino ou o sene. A existência de sangue nas fezes, perda de peso e anemia ferropénica torna obrigatória a realização de uma colonoscopia.
Em alguns casos de obstipação a causa pode ser orgânica, como por exemplo a obstipação aguda do idoso, quando as fezes vêm misturadas com sangue, quando o doente refere perda de peso, ou quando se palpam massas abdominais.
Quando a causa da obstipação permanece obscura, é recomendável fazer uma paragem de toda a medicação não essencial, nomeadamente antitússicos, antiácidos, ferro e polivitamínicos.
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Normas de alimentação na obstipação
Uma vez estabelecido que a obstipação não tem uma causa orgânica ou medicamentosa, pode tentar-se influir sobre a mesma, aumentando o consumo de fibra vegetal. Para isso, os alimentos que devem ser administrados são os seguintes: pão integral, cereais de grão inteiro ou derivados, farelo, frutas e hortaliças (consumidas cruas) e verduras.
Algumas pessoas referem que a ingestão de certas substâncias (café, sumo de fruta) lhes provoca o reflexo gastro-cólico, seguido de defecação. Convém também recomendar a necessidade de regulação horária, de não reprimir os reflexos de defecação, de dispor de certo tempo, bem como de comodidade física, etc.
Não deve ser esquecida a ingestão abundante de água, imprescindível para a acção da fibra a nível cólico.
É importante ter presente que a ingestão de fibras, como o farelo, se não for acompanhada de bastante água pode ter um efeito contraproducente, com agravamento da obstipação. Como as fibras podem impedir a absorção de alguns medicamentos, convém administrá-los fora das refeições.
Os doentes idosos, pela redução da sensação de sede, devem ser estimulados a beber água ou outros líquidos, independentemente da sede, sendo importante medir não o volume ingerido, mas o volume de urina; caso o doente urine menos de um litro diário, tal significa que deve reforçar a ingestão, a menos que haja contra-indicações. 
Procurar reduzir ao máximo o uso e abuso de laxantes, assim como de clisteres.
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Tratamento da obstipação idiopática
Excluída uma patologia orgânica importante, deve-se tranquilizar o doente, informando-o de que não existe uma causa grave subjacente às suas queixas.
Devemos organizar um plano higieno-alimentar adequado, que inclua o aproveitamento do reflexo gastro-cólico, ou seja, o aparecimento de contracções colo-rectais em resposta à ingestão alimentar.
Educar o paciente acerca da dieta e do uso de laxantes.
Explicar cuidadosamente para assegurar ao paciente que não é necessária uma dejecção diária para estar saudável e um bom padrão de dejecções confortável está dependente de bons hábitos de vida e de alimentação. Deve ser prescrito exercício diário baseado nas capacidades físicas do paciente. Deve parar-se a toma de laxantes, clisteres e fármacos não essenciais que possam suprimir a motilidade do cólon. O conteúdo em fibra da dieta deve ser aumentado, adicionando farelo, frutas, vegetais verdes e pães de cereais integrais. Um pequeno-almoço abundante que inclua farelo, sumos, leite ou café e pão integral é recomendável. É importante informar o paciente com obstipação crónica que uma função normal pode demorar semanas a voltar a instalar-se. Muitas vezes são esperados resultados imediatos e quando não aparecem o paciente desanima, pára o programa e regressa à utilização de laxantes e clisteres. 
Alguns doentes recusam-se a ingerir farelo porque lhes provoca distensão abdominal e flatulência. Se os esforços com dieta e exercício diários falharem ou o paciente insistir em obter medicação, pode ser benéfica a utilização de laxante expansor do volume fecal, como as sementes de psílio. Este actua aumentando o volume das fezes através das suas propriedades hidrofílicas, devendo ser tomado com grande quantidade de líquidos para prevenir a formação de bolos que possam causar oclusões. É tomado geralmente três vezes por dia. Nos idosos, quando há necessidade de usar laxantes ironicamente, devem preferir-se a lactulose. Este agente induz um potente efeito osmótico, retendo fluidos no lúmen intestinal e amolecendo as fezes. 
A tentativa de estabelecer um tempo sem interrupção para a defecação em cada dia pode ser útil; 15 a 20 minutos após o pequeno-almoço é uma boa oportunidade, porque a motilidade espontânea do cólon é maior durante este período. Deve ser encorajada a manutenção desta rotina, independentemente de viagens ou situações de stress.
Estimular a prática de actividade física, com especial destaque para os exercícios que utilizam a musculatura abdominal, por exemplo a bicicleta. Para os acamados a fisioterapia pode ser muito importante no combate à obstipação.
A prevenção da obstipação durante uma doença que exija repouso no leito pode ser efectuada através da utilização de dietas com alto teor de fibra e agentes que aumentem o volume das fezes.
A utilização de tranquilizantes fracos em pacientes ansiosos tem pouco efeito sobre a obstipação. 
Todos os antidepressivos tricíclicos têm uma actividade anticolinérgica, podendo originar obstipação. Em alternativa, pode ser uma boa escolha a utilização de um antidepressivo não tricíclico como a fluoxetina.
É importante estabelecer uma boa relação médico-doente especialmente nos doentes com síndrome do cólon irritável, os quais têm uma grande probabilidade de estarem a sofrer um stress psicossocial. O médico que conseguir promover uma boa confiança no doente, tem mais hipóteses de que estes adiram aos conselhos e recomendações.
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Conselhos práticos para combater a obstipação intestinal
Poderão ser dados aos doentes os seguintes conselhos:
1. Pratique exercício físico com regularidade (bicicleta, ginástica, caminhadas).
2. Coma com abundância alimentos ricos em fibras de origem vegetal. Privilegie o consumo de vagens de feijão verde, nabiças, couves, alcachofras, favas, leguminosas secas. As frutas devem ser consumidas cruas e com pele, especialmente maçãs, peras, uvas e ameixas. Prefira o pão e as massas à base de cereais de farinhas não refinadas ou integrais.
3. Beba líquidos em grande quantidade (pelo menos 1,5 litro de água por dia).
4. Procure ter um horário habitual para defecar, de preferência depois do pequeno-almoço, dispendendo o tempo que for necessário e de forma relaxada.
5. Coma devagar, mastigando bem os alimentos.
6. Evite tomar laxantes por sua conta, pois provocam hábito e podem piorar a prisão de ventre.
7. Não tome produtos da ervanária sem o parecer de um médico, lá por serem naturais não são inócuos
A transmissão escrita destes e de outros conselhos aos doentes pode ser muito útil. A experiência mostra-nos que a entrega de impressos previamente elaborados e dirigidos a todo este tipo de doentes não atinge os resultados esperados. Os melhores objectivos conseguem-se com a elaboração de uma receita personalizada, manuscrita e curta, focando apenas os pontos essenciais. É também necessário marcar e realizar consultas, com periodicidade regular, para reavaliação e controle.
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Obstipação na criança
As fezes nas crianças obstipadas são duras, secas e de tamanho reduzido. Nos lactentes, o número de evacuações pode ser de 1 a 3 diariamente. As crianças mais velhas, muitas vezes não informam os pais acerca da evacuação e podem ter obstipações de vários dias, só sendo detectadas quando a sintomatologia se torna muito marcada.
Nos lactentes, a obstipação pode ser causada por uma baixa ingestão de hidratos de carbono ou gorduras, assim como de líquidos. Outras situações a considerar, principalmente em crianças com mais idade, são o hipotiroidismo, a anemia, o megacólon congénito, fissura anal, obstrução mecânica e qualquer outra doença que origine febre ou desidratação
O tratamento passa pela elaboração de uma história clínica e observação cuidadas, com implementação das medidas correctivas adequadas à correcção da origem do problema.
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Referenciação
O médico de família deverá referenciar ao hospital os idosos com obstipação aguda. Deverão ser referenciados para o especialista ou Centro Hospitalar os casos em que as fezes vêm misturadas com sangue, quando existe perda de peso, quando se detecta uma massa abdominal, quando a terapêutica falhou ou quando somos incapazes de minorar as preocupações do doente.
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