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Introdução
O processo de diagnóstico médico clássico consiste
numa rotina sequencial de colheita de história, exame físico,
hipóteses de diagnóstico, exames complementares e diagnóstico
final.
Esta estrutura não corresponde a prática clínica
habitual, e particularmente à entrevista em medicina geral e familiar.
Os clínicos tendem a formular hipóteses de diagnóstico
desde o início de consulta, e encaminham a entrevista de modo a
poder testar essas hipóteses, confirmando-as ou eliminando-as.
O modelo clássico é um modelo pobre, que não considera
a exploração das ideias do utente e os factores psicológicos,
sociais e ambientais que estão envolvidos na génese de muitos
dos problemas de saúde e no qual não é valorizada
a comunicação não verbal.
A consulta de medicina familiar caracteriza-se pela sua continuidade:
devemos integrar a consulta actual na sequência de consultas anteriores
e no conhecimento acumulado do doente. É também possível
planear a intervenção terapêutica nas próximas
consultas de forma faseada.
Além do problema actual o clínico deve ponderar a oportunidade
de abordar problemas crónicos do doente, factores de risco, e a
vertente preventiva e de promoção de saúde. A adesão
do doente ao tratamento proposto é maior se existir uma explicação
do médico com informação sobre a natureza do problema,
que inclua as ideias e teorias pré-existentes do doente, dando-lhes
de alguma maneira resposta; o envolvimento do doente no plano terapêutico
e a sua responsabilização como gerador da situação
de saúde melhoram a sua participação activa.
O tempo de que o clínico dispõe condiciona toda a estrutura
da consulta; pode ser necessário abordar apenas o problema mais
urgente e marcar nova entrevista. Certas decisões estão
condicionadas à acessibilidade de outros recursos, com por ex.:
a escolha de exames complementares, possíveis referencias, ou a
utilização de estruturas de apoio da própria comunidade.
Finalmente, cada consulta influencia sempre a relação médico-doente.
Devemos tomar conhecimento das emoções e da comunicação
não verbal de todos os envolvidos na consulta - nós próprios,
doente e acompanhantes. É útil apoiarmo-nos em dois tipos
de diálogo: o diálogo com o utente, que permite percorrer
as várias etapas da consulta, e um diálogo interno crítico
permanente, que permita controlar a estrutura da consulta e adapta-la
a cada situação.
Falamos em dialogar com o doente no sentido de conversa entre dois adultos,
deixando espaço a este para exprimir as suas ideias, crenças,
preocupações e expectativas e facilitando a aceitação
das opiniões, conclusões e aconselhamento médico
através da sua discussão.
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Sumário:
Para conduzirmos uma entrevista clínica com eficácia é
necessário que tenhamos objectivos claros a atingir, que deles
tenhamos consciência, e por fim, que possamos de algum modo avaliar
se foram atingidos.
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Objectivos a atingir
Exploração completa dos motivos de consulta, nas vertentes
física, psicológica e sócio - familiar, incluindo
a interpretação que o doente dá ao sintoma ou problema
de saúde.
Exploração física e raciocínio clínico
utilizados correctamente para permitir definirem um ou mais problemas
de saúde (diagnóstico ou hipóteses diagnosticas);
escolhas terapêuticas adequadas a cada situação.
Envolvimento do doente através da explicação da doença
ou problema e informação detalhada da terapêutica
proposta.
Averiguação da concordância entre o médico
e doente quanto à definição do(s) problema(s), compreensão
deste(s) e adesão à terapêutica.
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Etapas da consulta
Etapa
0 - Reconhecimento do doente
É útil folhear o processo do doente antes da consulta: rever
as últimas notas clínicas e lista dos problemas de saúde.
Procurar na agenda o tipo de marcação (ex.: dia destinado
a determinado grupo vulnerável) pode lembrar - nos que se trata
de uma marcação com pelo menos um propósito já
bem definido à partida.
Etapa
1 - Recepção ou acolhimento do doente
Deve ser personalizada, cordial e respeitosa: Utilizar obrigatoriamente
o nome, o aperto de mão ou outra saudação adequada.
Fazer o doente sentir-se à vontade (preparação prévia
do consultório segundo normas reconhecidas e aceites com esta finalidade).
Usar padrões de comportamento social (a chamada " boa educação")
adequados a qualquer encontro entre duas pessoas, no nosso tipo de cultura.
Etapa
2 - Caracterização do(s) motivo(s) de consulta e colheita
da história clínica
É útil deixar falar livremente o utente na fase inicial
da consulta, utilizando uma técnica de entrevista semi-directiva:
alternância de espaço livre para o doente com fases de discussão
perfeitamente orientadas pelo médico.
Há dois erros comuns nesta fase inicial:
1º. - Cortar prematuramente o discurso do doente, porque este já
descreveu sintomas que aparentemente justificam a vinda à consulta;
a interpretação que o doente faz dos sintomas, ou seja a
"doença" que julga ter e os receios a ela associados
podem ficar ocultos e nunca chegar a ter resposta por parte do médico.
2º. - Partir do princípio de que, porque o doente se calou
e mostra disposto a prosseguir a investigação o motivo de
consulta identificado é o único. Muitos doentes vão
expondo sucessivos motivos de consulta: após termos explorado,
diagnosticado e aconselhado a terapêutica para um primeiro motivo,
recomeçam com outro problema de saúde, tornando a entrevista
desgastante e irritante para o médico.
O doente tem normalmente bem identificados todos os motivos de consulta,
mas pode começar pelo que lhe parece mais importante e, se nota
receptividade e disponibilidade por parte do médico juntará
os motivos secundários no final.
A única forma de tentar evitar esta situação é
perguntar directamente ao doente se o motivo descrito é a única
causa da sua visita, ou se tem outros problemas de saúde no momento.
Ainda assim é possível que o doente só à saída
mencione o verdadeiro motivo que o trouxe tentando desvalorizar um sintoma
que realmente o atemoriza ou embaraça. Neste caso o médico
terá que apelar à sua tolerância e reiniciar a consulta.
A caracterização dos sintomas e colheita da história
deve ser feita de forma exaustiva. Não se pretende no entanto percorrer
todos os aparelhos e sistemas orgânicos sistematicamente em todas
as consultas de medicina geral e familiar, mas sim caracterizar por completo
o problema de saúde actual. O conhecimento do doente pode ser completado
noutro encontro.
É útil fazer perguntas abertas, ou fechadas de formulação
variada, porque nem todos os doentes, pela sua personalidade, conseguem
ser suficientemente descritivos dos seus sintomas; a linguagem não
verbal é igualmente útil e devemos usar o nosso treino médico
para despistar qualquer sinal físico não valorizado pelo
doente.
A exploração de alterações da vida familiar
e sócio - profissional é indispensável, assim como
da situação psicológica do doente.
Nesta fase podemos resumir ao doente, na sua própria linguagem,
o que apreendemos da história contada e dos seus receios; se houver
concordância podemos continuar; caso contrário o doente tem
oportunidade de colmatar as nossas falhas de informação.
Etapa
3 - A exploração física - exame do doente
O doente deve ser informado de forma simples do tipo de exploração
física que vamos efectuar e qual a finalidade desta, de forma a
obtermos a sua melhor colaboração. Em geral não é
habitual fazer um exame físico exaustivo em todas as consultas,
mas apenas explorar manifestações ou alterações
relacionadas com as hipóteses diagnosticadas que nos surgiram da
análise da história colhida. O exame físico pode
ser completado noutro encontro. Podemos aproveitar para vigiar alterações
ou parâmetros relacionados com patologias crónicas do doente.
O exame físico pode ser usado para tranquilizar o doente. Por ex.:
na avaliação de uma dor torácica com todas as características
de ter causa músculo - esquelética, mas que o doente atribui
a doença cardíaca, a auscultação pode ser
deliberadamente feita, apenas com essa finalidade.
É desejável que todo o exame físico seja feito na
mesma fase da consulta, sendo mais confortável quer para o médico
quer para o doente.
Etapa
4 - Tomada de decisões
Durante todo o tempo de consulta o médico vai construindo hipóteses,
utilizando as informações colhidas para eliminar ou validar
um diagnóstico. Há uma altura de consulta em que tem de
decidir qual o diagnóstico mais provável, se necessita de
manter outros diagnósticos como possíveis, que plano de
estudo vai escolher e se vai propor ou não uma terapêutica
ao doente.
O plano de estudo e a escolha terapêutica são decisões
do médico que podem ser condicionadas por:
1 - acesso rápido e fácil a determinados meios diagnósticos,
ou pelo contrário pela sua inexistência;
2 - pela invasão dos exames e à sua iatrogenicidade;
3 - pela gravidade de situação clínica, que pode
sobrepor-se a todos os anteriores;
4 - pela benignidade da situação clínica, que pode
permitir apenas uma observação dos sintomas no tempo;
5 - pelo conhecimento médico da personalidade do doente, que não
deve influenciar a decisão médica no sentido de evitar exames
ou terapêuticas indispensáveis pela ideia preconcebida de
que não serão aceites pelo doente;
6 - pela necessidade de tranquilizar o doente quanto aos receios detectados
ao longo da consulta.
Etapa
5 - Informação do doente e negociação do plano
terapêutico
O médico vai tentar explicar ao doente na sua própria linguagem
e evitando o "calão" técnico, a conclusão
a que chegou e o fundamento do seu raciocínio. É a altura
certa para explicar por ex.: as características de dor torácica
que permitem excluir a causa cardíaca, se é esse o principal
receio do doente. Vai propor (ou não) exames complementares explicando
a sua utilidade e em que consistem, ou porque não considera necessário
fazê-los nesse momento.
Se o doente se sentiu compreendido inicialmente terá a vontade
suficiente para interromper o médico, expor as suas dúvidas
ou discordâncias ou propor ele próprio outra actuação.
Nesta fase de negociação tentaremos avaliar até que
ponto toda a restante consulta resultou, através dos comentários,
participação activa, postura e expressões do doente
(comunicação não verbal).
A terapêutica prescrita também entra por vezes na negociação:
o doente pode preferir não fazer medicação em determinadas
circunstâncias por ex.: sintomas ligeiros, com o diagnóstico
de doença auto limitada, ou enquanto aguarda resultados de um exame;
pode não querer aderir a uma terapêutica que é essencial
numa situação de risco, ou tão-somente preferir outra
formulação do mesmo fármaco. Só propiciando
a verbalização destas posições podemos ter
uma razoável certeza da adesão do doente aos conselhos médicos.
Da informação ao doente é obrigatório constar:
- uma previsão da evolução dos sintomas no tempo;
- a existência de efeitos secundários frequentes da terapêutica;
- um plano de actuação caso os sintomas agravem e por vezes
carta de referência ao serviço de urgência hospitalar
(que pode ou não ser utilizada);
- um alerta para outro tipo de sintomas ou sinais de alarme quando o diagnóstico
não é claro e ficaram várias hipóteses de
diagnóstico em aberto;
- necessidade ou não de marcação de nova consulta.
Etapa
6 - Registo de dados no processo
Feito segundo os sistemas de anotação clínica mais
apropriados à medicina geral e familiar; não esquecer a
actualização da lista de problemas.
Pode servir para um último resumo da consulta feito em benefício
do doente, se for comentado em voz alta. Perguntar explicitamente ao doente
se não ficou nenhum assunto esquecido.
Etapa
7 - Encerramento da consulta
Fecho do processo clínico e despedida do doente. Mais uma vez a
comunicação não verbal do médico e do doente
é um bom indicador de como decorreu a consulta.
Antes de fechar o processo questione-se sobre a consulta: está
satisfeito com a sua actuação? Tudo indica que o seu doente
está também satisfeito? Pode encerrar a consulta.
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Estrutura
da consulta
A estrutura é a forma como o medico organiza no tempo as várias
etapas da consulta e como conduz a entrevista de modo a atingir os objectivos
inicialmente propostos.
A gestão do tempo é uma das dificuldades; no entanto, a
percepção do tempo pelo doente é subjectiva e uma
consulta eficaz e bem conseguida dá ao doente a sensação
de que a atenção que lhe foi prestada se traduz num período
de tempo maior do que realmente decorreu.
Se houver necessidade de tratar apenas alguns dos problemas trazidos pelo
doente e adiar outros deve ser explicado porque são escolhidos
uns em detrimento dos outros, e a nova consulta ficar marcada; se o doente
piorar deve ficar sempre claro como pode procurar o médico ou o
serviço que lhe presta globalmente cuidados, no nosso caso o Centro
de Saúde / Serviço de Atendimento Permanente / Serviço
de Urgência.
Nas situações de consulta múltipla - vários
membros de família a consultarem simultaneamente, é necessária
uma actuação firme para que cada consulta seja feita individualmente
e todos os problemas de cada um tratado separadamente; os familiares podem
estar presentes e ser parte importante na consulta uns dos outros (ex.:
marido / mulher do diabético), mas é impossível fazer
três consultas ao mesmo tempo: « eu tenho tosse, o João
Pedro está cheio de febre e o meu marido deve ter a mesma tosse,
só que está pior». Explicar à família
que vamos falar dos problemas de cada um, de cada vez, é poupar
tempo.
Por último convém ter presente que investir em consultas
mais prolongadas, nos dias em que tal é possível, explorando
as noções de saúde/ doença do utente e certificando-nos
de que compreendemos a extensão dos seus problemas resulta em menos
consultas no futuro.
É o médico que tem o poder e a responsabilidade de conduzir
a consulta. Se é útil seguir as etapas mencionadas, podemos
ver-nos na necessidade de as alterar por motivos inerentes ao doente ou
ao médico, sem nunca perder de vista os objectivos iniciais. Pode
acontecer, por ex.: que só no final da consulta nos recordemos
de uma hipótese de diagnóstico que nos obrigue a alterar
o raciocínio clínico e consequentemente a tomada de decisões
e todo o plano de tratamento.
O médico deve ter a sensação de que controla de facto
a consulta e que pode utiliza-la como um instrumento, adaptado às
circunstâncias.
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Pontos práticos a reter:
- o sucesso da consulta depende da compreensão do verdadeiro motivo
da consulta e das preocupações que provoca no doente.
- o problema de saúde do seu doente pode repercutir-se na sua vida
diária, familiar e sócio profissional. Aperceba-se até
que ponto.
- assegure-se de que o doente compreendeu o seu raciocínio e aceita
o plano terapêutico.
- assegure-se de que possíveis diagnósticos alternativos,
efeitos secundários da medicação e possíveis
situações de risco são transmitidas ao doente e familiares
(para segurança do doente e sua).
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Bibliografia
Borrell
F. i Carrió. Manual de Entrevista Clínica para La Atencion
Primaria de Salud. Edyciones Doyma, S. A , Barcelona; 1989.
Goroll Allan
H., May Lauwence A, Mulley Albert G. Jr. Cuidados Primários em
Medicina. Mc Graw - Hill de Portugal, L.da. , editor; 1997.
Neighbour
Roger. The Inner Consultation; 1993.
Pendleton
David, Schofield Theo, Tate Peter, Havelok Peter. A consulta: uma abordagem
à aprendizagem e ensino. Departamento de Clínica Geral da
Faculdade de Medicina do Porto, editor; 1993.
Tate, Peter.
The Doctors Comunication Handboock; 1994.
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