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Parte II – Promoção e protecção da saúde nas diferentes fases de vida
2.1. Pessoa, família, saúde e doença
32. Aspectos éticos da intervenção familiar
José Augusto Simões
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

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O médico de medicina geral e familiar presta cuidados de saúde simultaneamente a vários elementos de uma mesma família, tal abordagem interfere inevitavelmente com a autonomia, liberdade e privacidade de algum ou alguns elementos dessa família. Esta intervenção pode mesmo levar a tomadas de decisão questionáveis do ponto de vista ético.

As abordagens e avaliações familiares só fazem sentido se orientadas para acções subsequentes de ajuda profissional ou de intervenção terapêutica. Porém, qualquer tipo de interferência profissional num sistema familiar é de uma delicadeza tal que exige muita prudência e uma preparação técnica específica. Quer seja o simples acto de transmitir informação ou o, mais complexo, aconselhamento familiar. Qualquer uma destas duas formas de intervenção deve pertencer ao arsenal terapêutico do médico de família e da equipa de cuidados de saúde primários. No entanto a avaliação sistémica da família não pode considerar-se completa sem uma avaliação global dos recursos do sistema familiar (no sentido não só da família nuclear mas também da família alargada) e da rede social onde está inserida. Muitas intervenções terapêuticas fracassam por não serem suficientemente valorizadas as possibilidades de actuação fora de uma óptica estritamente individual ou mesmo familiar.

Assim, a ética deve constituir a principal «etiqueta» de qualquer acto médico, seja numa entrevista ou numa terapia. Nessa «etiqueta» deve estar gravado: «Primum non nocere» – Primeiro não causar dano a outro ou outros.

Faz sentido falar do tema da responsabilidade do médico e da equipa de saúde, perante a família a quem presta cuidados, quando os problemas identificados requerem uma atenção permanente e o desenvolvimento de capacidades de análise critica, de debate da sua natureza, assim como das implicações à luz de quadros de referência ética gerais. Não será possível fixar regras para a resolução dos dilemas práticos identificáveis na prestação de cuidados de saúde às famílias, mas é responsabilidade dos profissionais de saúde identificar esses problemas e procurar encontrar-lhes abordagens e soluções justas.

As famílias nucleares e as de origem, no ciclo da sua existência, desenvolvem sentimentos de lealdade, apesar de prevalecerem equidades assimétricas. Ou seja, os pais têm mais responsabilidades no «dar», nos «deveres», e os filhos no «haver», no «receber». A relação do casal envolve a simetria de direitos e responsabilidades, mas também assimetrias (por ex.: diferenças entre homem/mulher, em relação à reprodução e amamentação). A negociação dos papéis, influenciados pelos efeitos prejudiciais do sexismo, impõem papéis às mulheres nas famílias mais conservadoras, ao serviço da satisfação das necessidades da família como um todo, e do machismo dos homens. A família optimiza-se pela realização dum «balanço de igualdades», através duma justa distribuição de obrigações e benefícios, incluindo a reparação de injustiças do passado. O tipo de relações existentes numa família constitui um factor, do qual depende a saúde e doença dos seus membros, uma vez que essas relações possuem um valor terapêutico ou um valor patogénico. A disfunção familiar surge quando a matriz ignora as injustiças, o que conduz a soluções inválidas, do género «é necessário que algo mude para que tudo fique na mesma».

A pertinência do tema ética e família mais se justifica quando pensamos na família como um sistema, que se tornou disfuncional e vai ser avaliado pelos seus problemas clínicos, através dum paciente identificado no contexto familiar, em interacção com um «estranho à família».
Por vezes, as famílias «testam-se» em períodos de crise, subordinando os seus recursos de «confiança» a situações de stress intra-familiar, que visa implementar interesses e cuidados mútuos e o reacender dos mitos familiares: harmonia, salvação e reparação da culpa.

A imparcialidade versus parcialidade não é intrínseca aos membros duma família. Muitos problemas de ética familiar resultam da matriz social. As famílias estão mergulhadas nas normas socioculturais, políticas, étnicas, e num determinado nível económico, que só em utopia são eticamente justos. Um dos primeiros riscos do profissional de saúde é a imposição dos seus próprios valores, sem o devido respeito ético pela maneira como a família deu significância às suas experiências, vivências e criou a sua «realidade».
O nosso modelo clínico biopsicossocial para os doentes e suas famílias deve dar sempre ênfase à relevância dos factores familiares na etiologia, prognóstico e tratamento das doenças.

A ética deve ser a pedra angular de uma intervenção profissional competente. Um facto essencial da existência humana nos macro e micro-sistemas é a confiança. Os alicerces de uma intervenção familiar são construídos pela neutralidade e circularidade, que vão facilitar a comunicação dos interesses de cada um, de modo a serem respeitados pelo resto da família. Interesses que criam obrigações mútuas, que legitimam direitos, que conferem bem-estar e segurança à família.
A confidencialidade surge do confronto do médico com a revelação de segredos como: abusos sexuais ou físicos, incesto, agressões à mulher e relações extrafamiliares. Este tipo de segredos, quando informados sem consentimento, podem provocar ou causar prejuízos dentro da família. O profissional de saúde sente-se assim perante vários dilemas, até legais, que tenta ultrapassar de acordo com a sua experiência, vivência e conhecimento científico.

Quem observa famílias em qualquer contexto está perante um grupo de pessoas que vivem debaixo do mesmo tecto, consanguíneas ou não, com hierarquias, alianças, coligações, que porventura acumulem hostilidades, culpabilidades profundas, ou conflitos, o que as pode isolar na sua própria família. Se atento à ética, o médico na sua intervenção familiar, reduz a tensão intra-familiar, e assim facilita o desenvolvimento de momentos fecundos de mutualidade, reciprocidade e complementaridade.
Deste modo, a negociação do que é consentido informar, e daquilo que não o é, será o ponto mais crucial para o profissional de saúde se colocar numa posição eticamente correcta.

O consentimento deve envolver todos, incluindo os menores. Contudo, antes da transmissão do consentimento, temos de dar muita atenção à reconciliação de posições e à exploração de divisões, num esforço de compreensão, para eventualmente ultrapassar distâncias. O paciente identificado é sempre o que tem uma posição mais incómoda e, muitas vezes, mais distante.
A informação dum consentimento insere-se num processo dinâmico envolvendo em diálogo o clínico e a família. O sentir com a família, o respeito pelo princípio da autonomia sem discriminação, salvaguardando os interesses de quem quer participar e não quer, devem ser princípios éticos omnipresentes.
Os considerados como «bode expiatório», ou «ovelha ranhosa», assim como os «ilesos» da família devem ser interpelados com dignidade, no sentido de saber como cada elemento familiar pode ajudar a ultrapassar as situações de «turbulência», muitas vezes numa atmosfera de grande desgaste emocional, que faz apelo aos impulsos altruístas de cada um.
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