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Parte III - Saúde e ambientes
3.1. Ambiente famíliar
107. Famílias reconstruídas
Teresa Laginha
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Laginha, Teresa

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Introdução
A designação famílias reconstruídas começa por si mesma por levantar algumas questões porque não é consensualmente aceite e porque as várias designações encerram, quanto a nós, as ópticas sob as quais podem ser observadas e a ideia de que do ponto de vista social é uma situação relativamente nova.
Os anglo-americanos utilizam os ternos «step families» ou «blended families». Os países de língua francesa – «familles recomposées» e os portugueses hesitam entre «novas famílias», «famílias reconstruídas» ou «famílias recompostas».
Utilizaremos o termo «famílias reconstruídas» por nos parecer que na perspectiva dos leitores deste Manual – esta designação integra dois conceitos importantes – o conceito de tempo cronológico e o conceito de tempo no sentido de disponibilidade e investimento necessários à sua constituição.
Tempo no sentido de passado – são famílias que se formam a partir da história de uma ou de outras famílias nucleares que já trazem consigo também a história das respectivas famílias de origem.
Tempo no sentido presente – são famílias que já «nascem» família – com filhos de casamentos anteriores.
E tempo futuro, pensando que dada a multiplicidade de novos laços criados pela união de duas diferentes famílias, será o tempo que permitirá a consolidação de relações e a criação de afectos.
Tempo e investimento, pois tal como situação de reorganização, a «reconstrução», mais do que numa situação de passagem de ciclo de vida familiar, implica «stress», exige esforço de adaptação. (ver fases do ciclo de vida familiar)
Habitualmente às consultas do Médico de Família não chegam os «casos» felizes. Não existe entre nós a cultura de se falar do que está bem. O pouco tempo para a consulta desmotiva os doentes de falarem do que não constitui problema e convida o médico a não arriscar «perder tempo» com perguntas sobre o que «está resolvido».
Em relação a esses casos não-problema, provavelmente, se não se utilizar o genograma (ver métodos de avaliação familiar) nem se vai saber se se trata de uma Família Reconstruída.
Assim situações mais graves, deverão ser encaminhadas, se após uma entrevista familiar e definição do problema, o M. F. não se sentir apto para intervir.
De qualquer forma parece-nos prudente que o M. F. se constitua sempre como apoio e acompanhante atento e isento nestas situações tal como quando se trata de pedir parecer de especialista em relação a outro tipo de doença, de modo a poder preservar a relação que estabeleceu com os vários elementos da família.
Abordaremos assim os aspectos que poderão ser objectos de atitudes de prevenção e aconselhamento em relação às F. R, partindo sempre do princípio que o M. F. deverá actuar em «terrenos» em que se sinta seguro e claro em relação aos seus próprios conceitos, capaz de analisar sem impor os seus próprios modelos.
Parece-nos útil que ao abordar numa perspectiva terapêutica este tipo de Famílias que questões como:
- O facto de não existir casamento oficial diminui a importância da relação aos meus olhos?
- Famílias reconstruídas para mim são um problema? ou são simplesmente uma família nova na minha lista?
- Quem devo respeitar? O «novo» casal que tenho perante mim ou sou tentado a deixar-me contaminar por sentimentos de protecção em relação aos ex-cônjuges?
- De quem devo defender os interesses: das crianças? Ou dos adultos?
sejam objecto da nossa própria reflexão e que ao perceber qual é a nossa posição pessoal e o que queremos para nós próprios, nos possamos proteger de o impor aos outros.
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(O Problema) na Prática Clínica
Desde há cerca de vinte e cinco anos que o número de divórcios aumenta.
Em 1997, por exemplo, registaram-se em Portugal cerca de 14.000 divórcios.
Dos cerca de 66.000 casamentos que aconteceram nesse ano, 5.000 foram com homens divorciados e cerca de 4.000 com mulheres também com divórcio anterior. Cerca de 65% já tinham filhos de uniões anteriores*. 
O M. F., dada a sua posição de prestador de cuidados com continuidade aos indivíduos e às famílias constitui-se um elemento privilegiado para intervir nas situações que se colocam às F. Reconstruídas e a inscrição na sua lista será porventura o primeiro “acto oficial” da nova família.
Da forma como for feito o «acolhimento» aos novos elementos da sua lista, à facilitação da sua inclusão, assim passará a imagem da aceitação ou não da nova família por parte do M. F. e da própria instituição.
A decisão da constituição de uma nova família é uma decisão de dois adultos. Que vão ter que compor a sua nova família sobre o que ficou, as cinzas das suas famílias anteriores, sobre as falhas passadas e as expectativas futuras. Vão ter que integrar diferentes necessidades, renegociar regras, criar novos espaços e redefinir relações.
De uma primeira fase de desorganização até a família atingir a fase de coesão e a sua própria identidade existe todo um trabalho de negociação entre os vários elementos da família. A noção de que o tempo diminui a intensidade e a frequência dos conflitos, de que pequenas mudanças são suficientes para diminuir grandes dificuldades e de que a constituição de uma família nestas condições requer uma energia e um investimento consideráveis por parte de todos, são ideias que ao serem transmitidas pelo M. F. funcionam como serenizantes.
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Para as crianças:
A decisão da constituição de uma nova família, tal como o divórcio, é uma decisão de adultos. Este é o aspecto que coloca adultos e crianças em posições opostas e que condiciona as dificuldades e os comportamentos mais habituais nestas situações. Os adultos começam este projecto apaixonados, convencidos que é a melhor solução para a relação que estão a viver, com o companheiro que escolheram. As crianças, que têm que viver a separação do pai ou da mão com quem não coabitam, não escolheram ninguém, nem o substituto do pai ou mãe que lhes falta, nem os novos irmãos. Deixam também frequentemente de ser o centro das atenções para serem simplesmente um dos elementos da nova família.
Para a criança, após a separação dos pais inicia-se um lento caminho para a aceitação da situação. O sonho de que os pais se vão reconciliar mantém-se muitas vezes durante muito tempo.
Esta ideia pode ser uma dificuldade à integração na nova família. Mesmo quando as «coisas correm bem», não é de esperar que o padrasto ou a madrasta sejam desde o início bem aceites pela criança. Não só rivaliza com o pai ou com a mão como destrói o sonho de reconciliação dos pais. Maior é o tempo em que uma criança vive só com um dos pais, maiores serão as dificuldades em aceitar um outro adulto.
Na altura da separação dos pais, as crianças perdem muita coisa – a proximidade de um dos pais, mudam de casa por vezes, os pais passam a viver com maiores dificuldades económicas, encontram-se menos frequentemente com avós e primos. O sentimento de perda que a criança sente na fase de separação dos pais é muitas vezes depois compensado pela exclusividade da relação com a mãe, com quem geralmente fica a viver. Na fase de construção da nova família pode surgir novo sentimento de perda.
Sentimentos como tristeza, zanga abandono e culpabilidade podem acontecer.
É importante ter presente as dificuldades que a criança atravessa mas o papel do M. F. deverá ser o de ajudar o casal a entender essas dificuldades, desculpabilizando-os.
Se a criança perceber que com as suas birras, exigências ou discussões provoca a zanga e hesitação nos adultos, pode ser exímio em conseguir que tal aconteça frequentemente.
As disputas por objectos entre irmãos pequenos significam a disputa pelos territórios e pelos sentimentos dos pais.
Neste campo, a sugestão de pequenas mudanças pelo M. F. produz às vezes melhorias apreciáveis.
A criança pequena manifesta sobretudo o seu desagrado através de comportamentos – chora, faz birras, zanga-se. O adolescente manifesta-se verbalmente.
Perante as dificuldades, as crianças têm tendência a repetir comportamentos que tinham anteriormente. Em qualquer família, existem situações inevitáveis, tais como mudanças e casa, de escola ou nascimento de irmãos, que também são perturbadoras para as crianças mas que não são dramatizadas. A insegurança que os adultos podem manifestar ao dramatizarem a nova situação familiar pode traduzir-se nas crianças em maus resultados na escola, agressividade, etc.
Quando estas reacções se mantêm ou são exuberantes, o M. F. deve propor um encontro para poder avaliar a situação e se necessário encaminhar.
Não é provável que a construção de uma família deste tipo seja por si só causadora de problemas graves. Quando tal acontece, possivelmente existem problemas latentes que apareceriam também com outros acontecimentos importantes, como a morte de uma familiar, por exemplo.
Estas crianças que vivem numa nova família mantêm ainda visitas regulares ao pai ou à mãe com quem não vivem e que possivelmente também já reconstruíram família. Vivem entre dois conjuntos de regras diferentes e vivem partilhadas entre duas casas e dois espaços diferentes.
Quanto mais claras são as regras mais claras se tornam as diferenças. Para evitar a manipulação a que estes pais podem estar sujeitos: «Na casa do pai eu faço assim. O pai é muito melhor». O M. F. poderá, falando sobre o assunto, aconselhar o novo casal a descobrir ideias que sejam convenientes aos dois e incentivar a discussão sobre os valores que pretendem transmitir.
Uma família reconstruída significa também uma família maior. Significa também para todos uma maior oportunidade de aprender, partilhar e conhecer outras pessoas.
Ex.: O Pedro e a Joana a viver com «irmãos emprestados», filhos do marido da mãe, dizem com frequência aos amigos «Nós temos sempre mais avós e mais Natais que vocês!»
Existem aspectos práticos que podem ser sugeridos e que facilitam as transições para a nova situação. É o caso dos objectos preferidos das crianças (ursos, almofada, etc.) e que a devem acompanhar de uma casa para a outra, durante os fins de semana, por exemplo; e em relação aos mais velhos, evitar que a mudança de escola, se necessária, se faça a meio do ano escolar.
O M. F. pode ainda ajudar uns e outros a expressar por palavras o que sentem e transmitir a ideia de que a nova relação entre os adultos não põe em causa a relação dos pais com os filhos, mesmo que por momentos os pais pareçam distraídos e absorvidos na sua nova relação.
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Para os adultos:
Para os adultos a constituição de uma nova família começa por ser uma aventura feliz. Amam-se, libertaram-se provavelmente de um período de solidão após a crise do divórcio, esperam não repetir erros anteriores e partilhar um novo espaço, afectos, responsabilidades e…os filhos.
Rapidamente, ultrapassada a fase inicial, se apercebem de que a tarefa que os espera é complicada. Neste ponto a intervenção do M. F. é importante:
As crianças não iniciam este projecto com o entusiasmo dos adultos. Tentar conciliar simultaneamente os interesses de todos é impossível! Entre pais e filhos, para além dos laços de sangue, existe toda uma vida anterior em comum, um conjunto de hábitos, regras e códigos que aos olhos dos outros pode não só ser imperceptível como até entrar em conflito com as suas próprias formas de proceder.
Ex.: p. 126
Este tipo de situações coloca os adultos perante dilemas e desencadeiam sentimentos de culpabilidade e incompetência. Por vezes a ambiguidade do estatuto de padrasto ou de madrasta e as suas indecisões tornam-nos vulneráveis quanto à legitimidade das posições que ocupam e dos seus próprios desejos. A melhor forma de não aumentar a frustração e a distância é tomar consciência de que poderão existir diferenças, baseadas nas vivências anteriores de cada um e procurar redefinir territórios.
Atitudes de compreensão do papel do outro e sobretudo evitar julgamentos e condenações são mais propícios à criação de um clima de confiança e entendimento.
A aceitação das diferenças, a solidariedade entre os elementos da família, a diferenciação dos papéis, o estabelecimento de hierarquias entre o sistema conjugal e o filial e o culto de uma boa comunicação são regras que se aplicam a todas as famílias: reconstruídas ou não, e que devem ser alvo de atenção e cuidados por parte do M. F.
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Avaliação Diagnóstica
As F. R. não vêm à consulta só pelo facto de o serem. Muito provavelmente serão os seus elementos para quem a adaptação à nova situação está a ser mais difícil que virão à consulta com problemas como perda de apetite, birras, dores abdominais nas crianças mais pequenas até às insónias ou outras queixas do foro psicossomático nos adultos.
Para outras famílias a dificuldade de adaptação pode traduzir-se em violência, agressividade, em aumento da ingestão de álcool ou consumo de tabaco, etc. e nesses casos talvez o pedido já seja feito em nome de toda a família.
O M. F. ao fazer a história da queixa, situando o aparecimento do sintoma, perguntando qual a ideia que os outros elementos da família fazem sobre o assunto pode obter dados que o ajudem a fazer um diagnóstico e a propor uma entrevista familiar.
A utilização do genograma é indispensável (ver métodos de avaliação familiar) mas parece-nos ser de evitar a utilização de símbolos que caracterizem as relações familiares quando o genograma é feito só com um dos elementos da família. Se feito em conjunto com os vários elementos da família as perguntas que geralmente se utilizam para caracterizar as relações familiares podem ser até de grande utilidade para estabelecer diálogo, para perceber comportamentos e estabelecer estratégias de assistência.
O genograma serve também para valorizar e tornar activos elementos da família que podendo não estar presentes na entrevista têm um papel importante, como por exemplo o pai de uma criança que vive com a mãe e o padrasto.
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Possibilidades de intervenção em M. F.
A maior parte das situações que surgem nas F. Reconstruídas não requerem encaminhamentos diferentes das que se passam noutras famílias. Violência, maus-tratos, abusos sexuais exigem espaço próprio e apoio especializado. Manifestações de regressão e comportamentos mais infantis como por exemplo crianças passarem a precisar de ajuda para comer, voltarem a fazer chichi na cama, etc., geralmente desaparecem com o aumento da confiança e o evoluir da situação. Sintomas nos adolescentes ou adultos com tendência para a cronicidade ou com manifestações mais graves como depressão, abuso de substâncias, alterações do comportamento alimentar, etc. podem requerer também apoio especializado (Terapia Familiar e/ou consulta de especialidade) se o M. F. não se sentir apto a tratar.
Por vezes, só a proposta de um encontro familiar com o M. F., em horário possível para todos, num espaço que a todos seja confortável servirá para valorizar não só o problema como a família no conjunto e permitirá ao M. F. mesmo sem pretender fazer uma intervenção terapêutica estabelecer as suas hipóteses e o seu próprio programa de actuação, que pode passar por discutir o caso com outro colega com outras experiências de casos semelhantes.
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Erros e limitações
Do que ficou anteriormente descrito e tendo em conta que as F. Reconstruídas são uma matéria familiar recente parece-nos prudente relembrar o que consideramos serem regras a utilizar a quem trabalha com qualquer tipo de famílias.
- Permitir que todos os membros da família possam ser ouvidos.
- Evitar ser depositário de segredos.
- Não emitir juízos de valor.
- Não dar conselhos.
- Reflectir sobre as suas próprias posições no que diz respeito aos problemas que as famílias apresentam.
- Ter uma posição de interesse e curiosidade pelas pessoas.
- Procurar discutir com outros técnicos os casos-problema.
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Pontos práticos a reter
Famílias Reconstruídas são famílias formadas a partir de (uma ou) de duas outras famílias em que houve divórcios anteriores.
São famílias resultantes da escolha e da vontade de dois adultos e em relação às quais é necessário prever por parte de todos um investimento considerável de tempo e atenção.
São famílias em que a manipulação pode surgir.
Não devem surgir como solução para a solidão resultante do divórcio.
Ultrapassadas as dificuldades, são o espaço privilegiado, tal como para outras famílias, de conhecimento de outros, de aprendizagem da vida de relação, de resolução de conflitos e de enriquecimento pessoal.
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Bibliografia
Gameiro J. Os Meus, os Teus e os Nossos – Novas Formas de Família. Ed. Terramar.

Marino G, Fortier F. La Nouvelle Famille - Un équilibre à reinventer. Ed. “J’ai lu”.

Sampaio D, Resina T. Família: Saúde e Doença. ICGZS.

Van Cutbem C. La Famille Recomposée. Ed. Eres.

*(FONTE - INE - Estatísticas Demográficas in nº 301 - revista “VISÃO” 22 de Dezembro de 1998.)