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Parte IV – Problemas clínicos
4.1. Sinais e sintomas frequentes

139. Cefaleias - diagnóstico diferencial
Gabriela Fernandes

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Cruz, Mª Georgina

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1 - Introdução e enquadramento epidemiológico
A morbilidade por cefaleia na população geral é muito elevada: 60 a 80%. Destes, apenas uma parte recorre ao médico (15%) e por sua vez, de entre estes, 9 em cada 10 têm cefaleias consideradas primárias (ex.: enxaqueca, cefaleias de tensão, cefaleias em salva).
A maioria procura um médico de medicina geral e familiar e só cerca de 1% vai a um neurologista. Na medicina geral e familiar as cefaleias representam entre 1 a 4% dos motivos de consulta embora não sejam na maioria dos casos o motivo principal. Num estudo de base populacional efectuado na Dinamarca, utilizando os critérios da Sociedade Internacional de Cefaleias (IHS - International Headache Society), verificou-se que 16% da população tinha enxaqueca e 78% cefaleias do tipo tensão. As cefaleias de tensão representam 47% das cefaleias tratadas em clínica Geral (quadro I) e segundo Pereira Monteiro num estudo efectuado no nosso país, 55%.

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Quadro I

Tipos de cefaleias observadas pelos Clínicos Gerais

Tipo

Percentagem

Tensão

47

Enxaqueca

31

Sinusopatias

6

Causadas por fármacos

4,5

Pós-traumáticas

3

Cervicogéneas

1,5

Outras

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Nos serviços de urgência cerca de 10% das cefaleias observadas são devidas a causas secundárias que por vezes passam despercebidas, como é o caso de um tumor ou hematoma intra cerebrais.
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2 - Classificação

Em 1988, a Sociedade Internacional de Cefaleias criou uma classificação e critérios diagnósticos operacionais para cefaleias, que surgiram como uma necessidade sentida, face à relativa ambiguidade dos critérios então existentes. Com os novos critérios pretende-se diminuir a variabilidade de diagnóstico entre diferentes observadores e dar um salto em frente em investigação. Assim, a IHS classifica as cefaleias em treze grandes grupos:

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Quadro II

CLASSIFICAÇÃO DAS CEFALEIAS (IHS.)

1. Enxaqueca

2. Cefaleias de tipo tensão

3. Cefaleia em salvas e hemicrania paroxística crónica

4. Outras cefaleias não associadas a lesões estruturais

5. Cefaleia associada a traumatismo craniano

6. Cefaleia associada a alterações vasculares

7. Cefaleia associada a alterações intra cranianas não vasculares

8. Cefaleia associada ao uso de determinadas substâncias ou à sua abstinência

9. Cefaleia associada a infecções não cefálicas

10. Cefaleia associada a alterações metabólicas

11. Cefaleia ou dor facial associada a alterações dos ossos cranianos, pescoço, olhos, ouvidos, nariz, seios peri-nasais, dentes, boca e outras estruturas faciais e cranianas

12. Nevralgias cranianas, radiculalgias e dor de desaferenciação

13. Cefaleia não classificável

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3 - Diagnóstico diferencial
Abordagem semiológica - O aspecto mais gratificante para o clínico que lida com cefaleias, é o facto de o diagnóstico ser muitas vezes realizado apenas com a colheita de uma boa história clínica. Quando o padrão da doença é facilmente reconhecível, como acontece com a enxaqueca, cefaleia de tipo tensão ou cefaleia em salvas, isto não dispensa o médico da realização do exame objectivo, mas pode evitar investigações desnecessárias e tratamentos inadequados.

Para o diagnóstico diferencial há que atender ao início e evolução temporal das cefaleias subdividindo-as em agudas/sub-gudas por um lado, e crónicas/recorrentes por outro. Na história clínica importa ainda questionar o doente acerca da localização, carácter, horário, frequência e duração da dor, assim como acerca de possíveis factores precipitantes e agravantes e existência ou não de sintomas e sinais acompanhantes.

Quando estamos perante uma cefaleia de início recente, aguda ou sub-aguda devemos pesquisar eventuais deficits neurológicos, febre, ou rigidez da nuca que nos coloquem na pista de um quadro meníngeo. A cefaleia da hemorragia subaracnoideia é aguda, generalizada, com sensação de explosão. Tem intensidade máxima na área occipital, irradia ao longo do pescoço, e acompanha-se em regra de náuseas, vómitos, obnubilação e posteriormente sinais meníngeos. Os doentes referem-na como a pior cefaleia de sempre, e a sua agitação deve-se habitualmente a ela. É obrigatória a realização de uma fundoscopia nestes doentes, que revela muitas vezes uma hemorragia subhialoideia, em chama de vela. Uma história de febre aguda associada a cefaleias na região fronto-orbitária é sugestiva de sinusite aguda.É obrigatório nestes casos a observação em busca de rinorreia purulenta e a percussão dos seios peri-nasais que provocará uma exacerbação da dor. Num doente idoso as cefaleias agudas de início recente devem fazer pensar em arterite temporal. Esta hipótese obriga a investigar sintomatologia local: dor e endurecimento da artéria temporal superficial, claudicação dos masséteres e alterações visuais. A VS neste caso encontra-se francamente elevada (>50 mm na 1ª hora). A biopsia da artéria temporal fornecerá o diagnóstico definitivo. Dores oculares e visão enevoada levantam a hipótese de glaucoma agudo. Neste caso, no exame objectivo, observa-se uma diminuição da transparência da córnea devido ao edema e a pupila encontra-se moderadamente dilatada e não reactiva à luz. É também importante na história que se questione o doente sobre possíveis traumatismos cranianos que nos ponham na pista de um hematoma epi ou subdural agudos.
As cefaleias de tipo tensão, seguidas da enxaqueca, são as causas mais frequentes das cefaleias crónicas ou recorrentes. Uma vez que a enxaqueca será tratada numa unidade de texto separada daremos aqui um lugar de destaque à cefaleia de tensão, apresentando os seus critérios diagnósticos:

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Quadro III

Critérios de diagnóstico das Cefaleias de Tensão Episódicas (IHS)

1.As cefaleias surgem menos de 15 dias por mês (< 180 dias/ano)

2. Duram entre 30 minutos e 7 dias e os doentes tiveram pelo menos 10 episódios anteriores que preenchem os seguintes critérios:

3. Presença de pelo menos duas das seguintes características:
- Pressão ou aperto (não pulsáteis), frequentemente à volta da cabeça
- Intensidade ligeira a moderada (podem reduzir mas não impedem as actividades habituais)
- Localização bilateral
- Não agravadas por subir escadas ou actividades semelhantes

4- Ausência de náuseas e vómitos (pode surgir anorexia)
Nenhum ou apenas um dos sintomas seguintes estão presentes:
- Fotofobia
- Fonofobia

5- Exclusão de outras hipóteses de diagnóstico pela história clínica, exame objectivo ou exames complementares

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Quadro IV

Critérios de diagnóstico das cefaleias de tensão crónicas

1. Em média, as cefaleias estiveram presentes em pelo menos 15 dias por mês durante 6 meses consecutivos (180 dias/ano) e satisfazem os critérios seguintes:

2. Pelo menos estão presentes duas das seguintes características das dores:
- Tipo pressão ou aperto
- Intensidade ligeira a moderada (pode reduzir mas não impede as actividades)
- Localização bilateral
- Sem agravamento com a subida de escadas ou com actividades físicas semelhantes

3. Ausência de vómitos
Não mais que um dos seguintes sintomas:
- Náuseas
- Fotofobia
- Fonofobia

4. Exclusão de outras possibilidades de diagnóstico pela história clínica, exame objectivo ou exames complementares de diagnóstico

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Quadro V

Critérios de diagnóstico das cefaleias de tipo tensão, que não se incluem nas formas acima descritas

1- Preenchem todos excepto um, dos critérios de uma das formas de cefaleia de tipo tensão acima descritas

2- Não preenche os critérios de enxaqueca sem aura

Nota: Os critérios da IHS requerem crises múltiplas para o diagnóstico porque o primeiro episódio nem sempre pode ser distinguido de uma cefaleia secundária.

A evolução temporal da cefaleia pode ser particularmente reveladora: aumentos na gravidade e/ou frequência ao longo do tempo levantam a hipótese de uma lesão ocupando espaço, enquanto que um padrão de cefaleias que permanece constante ou ondulante é mais típico de cefaleias de tensão ou enxaqueca.

Deve-se ter particular atenção aos sintomas acompanhantes: náuseas, vómitos, fotofobia e fonofobia são característicos de enxaqueca. Sintomas autonómicos tais como lacrimejo, sudação, rinorreia, edema palpebral e injecção conjuntival do mesmo lado de uma cefaleia de curta duração, orbitária, supraorbitária ou temporal são característicos de cefaleia em salvas, hemicrania paroxística crónica ou SUNCT (short-lasting unilateral neuralgiform headache with conjunctival injection and tearing).

Os deficits neurológicos que constituem a aura da enxaqueca são reversíveis. Os deficits neurológicos irreversíveis, e os deficits de novo aumentam a probabilidade da existência de uma lesão estrutural como por exemplo um tumor ou um enfarte cerebral. A localização e o carácter da dor são por vezes úteis, apesar de poder existir uma sobreposição considerável entre os diversos tipos de cefaleias. Como exemplo (quadros III e IV) a cefaleia de tensão tem habitualmente uma localização bilateral e um carácter tipo pressão ou aperto, frequentemente à volta do crânio, no entanto, estas características podem também ser referidas por doentes com aumento da pressão intra-craniana. A localização unilateral e a pulsatilidade são características da enxaqueca, contudo, estas mesmas características podem também ser referidas por doentes com cefaleias de tensão. Na enxaqueca a unilateralidade da dor não é fixa, isto é, pode ocorrer de um lado ou outro do crânio. A constância da dor, sempre do mesmo lado, faz pensar numa lesão estrutural, como por exemplo um tumor. Neste caso será muito importante a realização duma fundoscopia para pesquisa de estase papilar. A ocorrência de dor que irradia a partir do pescoço faz pensar em radiculopatia cervical.

Os factores precipitantes e agravantes devem ser pesquisados. As actividades físicas de rotina (como por exemplo subir escadas) normalmente não agravam a cefaleia de tensão (quadros III e IV) mas agravam a enxaqueca, sendo este aliás um dos melhores critérios clínicos para distinguir estes dois tipos de cefaleias. Cefaleias desencadeadas pela ingestão de certos alimentos (gorduras, chocolate, queijo, citrinos, álcool, peixe fumado) e situações de stress (ruídos, luzes e cheiros intensos, factores emocionais) são também típicas da enxaqueca. O álcool também pode desencadear uma crise de cefaleia em salvas durante um período de actividade da doença.

Nos antecedentes familiares tem especial importância a pesquisa de quadros clínicos semelhantes, pelo carácter heredofamiliar de alguns tipos de cefaleias, como é o caso da enxaqueca.
Exames complementares de diagnóstico - Os exames complementares de diagnóstico não deverão ser utilizados de uma forma sistemática, mas sim orientados pelas hipóteses diagnósticas levantadas após a realização da história clínica e exame objectivo.

Nos doentes que apresentam cefaleias de início agudo, referindo-as como “as cefaleias mais intensas alguma vez sentidas” deve-se fazer uma TAC de urgência. Perante uma história sugestiva de hemorragia subaracnoideia, e mesmo sendo a TAC normal, deverá ser realizada uma punção lombar, para detecção de sangue no licor. Se a história sugere uma possível sinusite aguda devem pedir-se radiografias dos seios perianais. Cefaleias “de novo”, num doente idoso, com endurecimento e dor à palpação da artéria temporal superficial deve conduzir a um pedido de VS e possível biopsia da artéria temporal, sobretudo se apoiado por outros dados da história clínica (deficits visuais, sintomas sistémicos). Cefaleia súbita, cervical, com início temporalmente relacionado com manipulação ou traumatismo cervical, associada a sopro cervical ou dor à palpação, justificam um pedido de «ecodoppler» da carótida ou de angioressonância para detecção da dissecção da carótida. Contudo, o padrão de ouro para confirmar este diagnóstico continua a ser a angiografia convencional com cateterismo.

Perante um doente com cefaleias crónicas ou recorrentes que não sugerem doença intra-craniana e na presença de um exame objectivo e neurológico normais, na maioria das vezes, é desnecessária a realização de exames complementares. As excepções a este princípio compreendem cefaleias com menos de 6 meses de evolução que não se enquadram num padrão conhecido de cefaleias primárias (ex.: cefaleia de tipo tensão, enxaqueca, cefaleia em salvas) ou secundárias (quadro II), cefaleias de agravamento progressivo, com perda de consciência ou com alteração persistente da personalidade. Também a alteração das características de um padrão até então habitual numa cefaleia merece mais investigação.
Finalmente gostaríamos de referir que o EEG não é útil na avaliação de rotina de doentes com cefaleia e não é recomendado para excluir uma causa estrutural de cefaleia.
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Pontos práticos a reter:

1. A morbilidade por cefaleia na população geral é muito elevada: 60 a 80%, recorrendo os doentes em primeiro lugar ao clínico geral.
2. A maioria dos sofredores tem cefaleias de tensão ou enxaqueca.
3. Os critérios de classificação da IHS vieram permitir uma maior uniformidade de diagnósticos.
4. Para simplificar o raciocínio, em termos de diagnóstico diferencial, é útil dividir as cefaleias em agudas e sub-agudas por um lado e crónicas ou recorrentes por outro.
5. O diagnóstico é muitas vezes realizado apenas com a colheita de uma boa história clínica.
6. Os exames complementares de diagnóstico não deverão ser utilizados de uma forma sistemática.
7. O EEG não é útil na avaliação de rotina de doentes com cefaleia.
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