índice parcial
Parte IV – Problemas clínicos
4.10. Abordagem da mulher com problemas da mama e aparelho genital
338. Leucorreias
Ana Paula Reis
Conceição Brito
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Pisco, Ana Maria

1
Introdução

A leucorreia é uma queixa comum, estando associada na maioria dos casos a vaginite e cervicite. Não sendo sempre sinónimo de infecção, é muitas vezes fonte de tratamentos cegos e excessivos. Para o sucesso do tratamento destas situações é fundamental o conhecimento da fisiologia vaginal, uma história clínica detalhada, exame ginecológico minucioso e o exame directo do exsudado cervico-vaginal.
2
Fisiopatologia

Durante a idade reprodutiva da mulher a vagina contém um exsudado fisiológico, com um volume médio diário de 2 ml constituído por um transudado plasmático, muco secretado pelo epitélio endocervical, células epiteliais vaginais descamadas, alguns polimorfonucleares e abundante flora microbiana constituída essencialmente por Lactobacilos e um pequeno número de outros germens. O meio vaginal apresenta uma franca acidez, resultante da produção de ácido láctico pelos Lactobacilos. Este meio constitui um ecossistema em equilíbrio. O ambiente estrogénico condiciona variações fisiológicas do exsudado vaginal, tornando-o filante e abundante a meio do ciclo menstrual, abundante e com maior acidez na gravidez, sendo o volume variável de mulher para mulher.
O tracto genital inferior é um meio aberto sobre o exterior e portanto um meio normalmente séptico. No entanto a vagina apresenta uma capacidade de defesa contra a infecção que lhe é conferida por factores imunitários locais, ainda mal conhecidos e sobretudo pela capacidade do ecossistema bacteriano inibir a proliferação dos germens estranhos. A infecção surge quando este ecossistema é perturbado e os agentes patogénicos se tornam a flora dominante.
O exsudado patológico – leucorreia – acompanha-se frequentemente de irritação vulvo-vaginal, dor, prurido, cheiro intenso, aumento da quantidade ou aspecto anormal (sanguinolento, espesso).
3
Etiologia

As infecções (vaginites e cervicites) são a causa mais frequente de leucorreia, sendo outras causas menos frequentes as reacções alérgicas, inflamação inespecífica e tumores.
95% das vaginites resultam de infecção envolvendo um dos seguintes agentes: Gardenerella vaginalis, Candida albicans, Trichomonas vaginalis. 
Os principais agentes implicados na cervicite são a Neisseria gonorhoeae, a Chlamydia trachomatis e o vírus Herpes simplex. 
4
Diagnóstico

O diagnóstico correcto é fundamental para o sucesso da terapêutica. A avaliação inclui:

História clínica:
1. elucidar as características da leucorreia e sintomas acompanhantes
2. identificar os factores de risco: 
- hipoestrogenismo absoluto/relativo (menopausa, gravidez, lactação, anticoncepcionais orais);
- uso de antibióticos sistémicos;
- actividade sexual (número e tipo de parceiros, doenças de transmissão sexual (DTS));
- imunodepressão (infecção HIV, corticoterapia);
- alterações do metabolismo dos hidratos de carbono.

Exame físico obrigatório: 
1. inspecção dos genitais:
- vulva: eritema / edema / lesões de coceira;
- vagina: eritema das paredes / aspecto e odor da leucorreia;
- colo: eritema / hemorragia / vesículas / úlceras / aspecto do exsudado cervical.
2. toque vaginal: dor à palpação e mobilização do útero e anexos.

Exame directo da leucorreia 
1. ao microscópio óptico: 
- em solução iso-salina para pesquisa de Trichomonas e «clue cells»;
- em solução de cloreto de potássio a 10% para pesquisa de Candida albicans.
2. Determinação do pH.

Colheitas para exame microbiológico
1. Indicações:
- suspeita de infecção do tracto genital superior;
- leucorreias persistentes, recorrentes ou não identificadas no exame directo;
- suspeita clínica de herpes genital.
2. Tipo de exames:
- pesquisa de gonococo – cultura – (zaragatoa endocervical);
- pesquisa de Clamydia – imunofluorescência – (raspado endocervical);
- pesquisa de Herpes – imunofluorescência e cultura (aspirado do conteúdo das vesículas e raspado da base das úlceras).

O problema na prática clínica

Vaginites
5
Vaginose bacteriana
- É a primeira causa de infecção cervico-vaginal, resultando da proliferação da Gardnerella vaginalis (GV) e anaeróbios, e diminuição dos lactobacilos.
É mais frequente nas mulheres com actividade sexual, nos grupos com elevadas taxas de DTS e nas mulheres portadoras de dispositivo intra-uterino.
Clinicamente apresenta-se com leucorreia moderada, branca ou cinzenta, homogénea, pouco espessa, por vezes espumosa, com cheiro intenso a peixe (sintoma predominante), sem vaginite ou vulvite acentuadas. O cheiro pode tornar-se mais intenso associando algumas gotas de KOH ao corrimento no espéculo. Em 50% dos casos pode ser assintomática. Na grávida está associada a amniotite, trabalho de parto pré-termo, rotura prematura de membranas e endometrite pós-parto.
O diagnóstico baseia-se em pelo menos 3 dos 4 critérios seguintes:

1. leucorreia com as características descritas
2. pH superior a 4.7
3. presença de «clue cells»no exame a fresco
4. odor aminado após adição de KOH às secreções vaginais.

Tratamento da vaginose bacteriana fora da gravidez
1. Recomendado:
Metronidazol 500 mg po 2xdia durante 7 dias ou
Clindamicina a 2% creme 1xdia durante 7 dias ou
Metronidazol 500 mg óvulos vaginais 1xdia durante 7 dias.
2. Alternativo:
Metronidazol, 2 g po dose única ou
Clindamicina 300 mg po 2xdia durante 7 dias.

Tratamento da vaginose bacteriana durante a gravidez
1. Recomendado:
Metronidazol 250 mg po 3xdia durante 7 dias. 
2. Alternativo:
Metronidazol, 2 g po dose única ou
Clindamicina 300 mg po 2xdia durante 7 dias ou
Metronidazol 500 mg óvulos vaginais 1xdia durante 7 dias.

Segundo a FDA o metronidazol não é recomendado na grávida no 1o trimestre, pelo risco de teratogenicidade. Como alternativa pode utilizar-se amoxicilina + ácido clavulâmico.
O álcool deve ser evitado durante o tratamento com Metronidazol.
Na vaginose bacteriana não está indicado o tratamento do parceiro.
6
Candidíase Vaginal
- A Candida albicans é responsável por 85% das vulvovaginites por Candida sp. As causas que favorecem a infecção são a gravidez, o uso de antibióticos e anticoncepcionais orais, a imunossupressão e as alterações do equilíbrio dos hidratos de carbono. O uso de roupas muito justas, o calor e a humidade também facilitam a proliferação deste agente. Clinicamente apresenta-se com prurido intenso (sintoma predominante), acompanhado de leucorreia branca tipo queijo fresco, sem cheiro, eritema vulvo-vaginal e disúria externa. Podem existir lesões de coceira.
O diagnóstico baseia-se nos seguintes critérios:
1. clínica
2. pH entre 4 – 4.7
3. presença de hifas ou pseudo-hifas no exame a fresco com KOH.
O tratamento baseia-se no uso de tópicos, creme ou comprimidos vaginais, de clotrimazol (ou outros derivados dos imidazois) durante uma semana. Podem também usar-se agentes sistémicos como o fluconazol 150 mg em dose única, ou o itraconazol. Em situações de inflamação intensa pode estar indicada a aplicação tópica de um corticóide fraco, como a hidrocortisona a 1%. Na escolha do tratamento tópico ou oral devemos ter em conta vários factores entre os quais a severidade dos sintomas, a existência de recidiva, tratamentos anteriores e efeitos adversos, existência de gravidez e a preferência da mulher. Outras medidas incluem o uso de roupas largas e de algodão ou limpeza cuidada do prepúcio. O tratamento profilático durante terapêutica antibiótica é recomendado em mulheres com história de sintomas recorrentes. Nos casos recorrentes pode ter interesse a cultura do exsudado vaginal para pesquisa de outras espécies de Candida, resistentes aos imidazois.
7
Tricomoníase vaginal
- É causada pela Trichomonas vaginalis, protozoário que infecta a vagina, o exocolo e o tracto urinário inferior na mulher, e o aparelho genito-urinário inferior no homem. É considerada uma DST. É assintomática em 50% das mulheres e em 90% dos homens. 
A infecção aguda caracteriza-se por prurido e leucorreia muito abundante (sintoma predominante), espumosa, cinzenta, amarela ou verde, com cheiro fétido e em alguns casos com lesões eritemato-maculares do colo uterino (colo em “framboesa”). Disúria, urgência urinária e dispareunia são sintomas frequentes. Em 5-10% dos casos pode surgir dor nos quadrantes inferiores do abdómen. Na grávida está associada a trabalho de parto pré-termo, rotura prematura de membranas e infecção puerperal e infecção pós-aborto.

O diagnóstico baseia-se em:
1. clínica
2. pH superior a 4.5
3. exame a fresco revela o protozoário móvel em 80% dos casos, associado a um aumento no número de leucócitos.
8
Tratamento

É necessário fazer o tratamento simultâneo dos parceiros. O diagnóstico de tricomoníase obriga à pesquisa de outras doenças sexualmente transmissíveis. 
A terapêutica tópica é frequentemente inadequada dado haver colonização da bexiga e uretra, que servem de reservatório e fonte de reinfecção.

1. Tratamento recomendado:
Metronidazol 2 g po em dose única. 
2. Tratamento alternativo:
Metronidazol 500 mg 2xdia, po durante 7 dias.
3. Tratamento das recorrências:
Repete Metronidazol 500 mg 2xdia, po durante 7 dias ou
Metronidazol 2 g po por dia, 3 a 5 dias.
4. Tratamento durante a gravidez
Metronidazol 2 g po em dose única. 

Na gravidez, antes das 16 semanas, devem utilizar-se um creme vaginal de clotrimazol ou uma solução de polividona.
9
Cervicite

Os três agentes mais importantes de cervicite são a Neisseria gonorhoeae, a Chlamydia trachomatis e o vírus Herpes simplex. São doenças de transmissão sexual, coexistindo frequentemente. A gonorreia e a infecção por Chlamydia são causa importante de infertilidade e gravidez ectópica.
Clinicamente caracteriza-se por um corrimento mucopurulento e coitorragias (Quadro I). Ao exame físico, o colo apresenta-se eritematoso, friável, coberto com um exsudado espesso, aderente, branco-amarelado. A infecção pode limitar-se ao colo ou estender-se aos tecidos paracervicais, dando um quadro de doença inflamatória pélvica. Na presença de úlceras cervicais deve ser feito o rastreio de doença neoplásica.
Uma vez que a infecção por Clamydia se associa à gonorreia em 60% dos casos, é obrigatório o tratamento dirigido aos dois agentes perante a suspeita de gonorreia. Sendo estas infecções de transmissão sexual, é também obrigatório o tratamento dos parceiros e a pesquisa de outras doenças sexualmente transmissíveis.

12
Quadro I

Diagnóstico e tratamento das cervicites mais frequentes
  Neisseria gonorrhoeae Chlamydia trachomatis Herpes simplex
Clínica Maioria assintomática
1/3 dos casos:
-leucorreia
-disúria
-«spotting»/coitorragias
Maioria assintomática
-leucorreia
-disúria
-hemorragias
-vesículas/úlceras
-eritema
-leucorreia
-sintomas gerais/ neurológicos (inf. primária)
Diagnóstico Cultura Imunofluorescência/
luminescência
Clínica
Serologia (seroconversão)
Cultura
Tratamento

Recomendado
Ceftriaxona
125-250 mg IM, dose única
Cefixime
400 mg po, dose única
Ciprofloxacina
500 mg pó dose única
Ofloxacina
400 mg po, dose única

Alternativo
Espectinomicina
2 g, IM
Cefotaxima
500 mg, IM
Cefoxitina
2 g, IM
Lomefloxacina
400 mg, po

Recomendado
Doxiciclina
100 mg 2xdia po, 7 dias
Azitromicina
1 g po, dose única

Alternativo
Eritromicina
500 mg po 4xdia, 7 dias
Etilsuccinato de eritromicina
800 mg p.º 4xdia, 7 dias
Ofloxacina
300 mg po 2xdia, 7 dias

1º Episódio
Aciclovir
200 mg po 5x dia (4/4h omitindo a dose da noite). 7-10 dias
Aciclovir
400 mg po 3xdia, 7-10 dias;

Recorrências
Aciclovir
400 mg po 3xdia, 5 dias;
200 mg po 5xdia, 5 dias
800 mg, po, 2xdia, 5 dias

 

10
Outras causas de leucorreia

Numa pequena percentagem de casos, a leucorreia tem como etiologia uma causa não infecciosa. Pode ser devida a corpos estranhos esquecidos como tampões ou diafragmas, a alergia ou lesões irritativas provocadas por desodorizantes, lavagens externas, espermicidas, preservativos ou esperma. As neoplasias do colo, vagina, vulva e endométrio também podem acompanhar-se de leucorreia.
11
Conclusão
A leucorreia é uma queixa frequente, estando associada na maioria das vezes a vaginite infecciosa.
Uma história clínica detalhada e um exame físico minucioso, com avaliação das características da leucorreia, permitem um diagnóstico etiológico e um tratamento eficaz na maioria dos casos. 
Com esta actuação apenas uma minoria de casos necessitará de recurso a exames complementares de diagnóstico mais complexos e/ou de referenciação à consulta de ginecologia.
13
Bibliografia

Berek J, MMSC et al. Novak’s Gynecology. 12ª ed.. Williams & Wilkins; 1996.

Fox KK, Behets FM. Leucorreia - Como identificar a causa. Postgraduate Medicine (ed. Portuguesa) 1996; 6 (2): 30-38.

Haefner H. Current evaluation and management of vulvovaginitis. Clinical Obstetrics and Gynecology 1999; 42 (2): 186-195.

Landers DV. The treatment of vaginitis: trichomonas, yeast, and bacterial vaginosis. Clinical Obstetrics and Gynecology 1988; 31(2): 473-9.

Pueyo JM, Artigas J. Infecciones en ginecologia y obstetrícia. 1ª ed. Editiones Antares; 1994.

Stary A. Treatment of vulvovaginal candidiasis. Dermatologic therapy; 1997, 3: 37-42.

Trotto N. DST´s: está actualizado? Patient care (ed. Portuguesa) 1999; 4 (44): 58-70.