índice parcial
Parte IV – Problemas clínicos
4.12. Abordagem do paciente com doenças transmissíveis

377. Paludismo e aconselhamento ao viajante
Ana Isabel Cortez

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Simões, José Augusto

1
Introdução
O paludismo, ou malária é uma protozooze transmitida ao homem pela picada da fêmea do mosquito Anopheles. O paludismo humano é causado por 4 espécies de Plasmodium: o P. falciparum, o P. vivax, o P. ovale e o P. malariae. O paludismo causado pelo P. falciparum, também denominado paludismo maligno, pode ser rapidamente fatal. A sua mortalidade atinge 1%. O P. falciparum estende-se ao Sudoeste Asiático, América do Sul, à maior parte do continente Africano a Sul do Saara, a algumas regiões da Índia e à Oceânia. A situação do paludismo está a piorar em muitas zonas, com aumento do número de casos multiresistentes à quimioprofilaxia e tratamento.
Nos últimos anos tem-se verificado um grande aumento do número de pessoas que viaja através do mundo, nomeadamente para países onde o paludismo é endémico. Em Portugal, o paludismo endémico foi erradicado há já algumas décadas. Actualmente apenas existem casos importados, felizmente raros. O número médio anual de casos de paludismo notificados em Portugal entre 1993 e 1997 foi 71, predominando no distrito de Lisboa. No mesmo período registaram-se em Portugal, em média, 6,6 óbitos/ano por esta causa. Dada a potencial gravidade, o médico de família deverá estar preparado para aconselhar os viajantes sobre a profilaxia do paludismo, orientando para serviços onde ela é feita e também para detectar eventuais casos de doença no viajante que regressa.
2
Profilaxia
Um dos aspectos principais para uma prevenção eficaz é alertar o viajante sobre os riscos do paludismo. O viajante deve ser informado que, apesar de bastante efectivas, nenhuma das medidas profiláticas é 100% eficaz e que há formas de paludismo que podem evoluir rapidamente para a morte. As medidas mais importantes são evitar a picada de mosquitos e a quimioprofilaxia.

Medidas protectoras
A picada do mosquito ocorre principalmente entre o pôr-do-sol e a madrugada. Deve ser aconselhado o uso de roupas claras, calças e mangas compridas. Aplicar um repelente de insectos à base de DEET (N,N-diethyl-m-toluamide) na pele exposta, cada 3 – 4 horas. Aplicar insecticidas no quarto e usar mosquiteiros, de preferência impregnados com permetrim.
Quimioprofilaxia 
A informação específica sobre a quimioprofilaxia indicada para cada país está disponível na publicação anual editada pela OMS “International Travel and Health. Vaccination Requirements and Health Advice” 
Depois de verificar o destino, duração da estadia, características da viagem (zonas rurais ou urbanas, hotéis ou acampamentos, safaris, etc.) e quimioprofilaxia aconselhada, inquirir sobre estado geral de saúde, idade, peso, alergias, gravidez, lactação, medicação regular, problemas dermatológicos (e.g. psoríase), problemas cardíacos, problemas psiquiátricos, epilepsia e problemas hepáticos ou renais. A profilaxia semanal (mefloquina e cloroquina) deve ser começada 1 a 2 semanas antes da chegada à zona de exposição. A profilaxia diária (doxiciclina e proguanil) deve ser iniciada 1 a 2 dias antes da chegada à zona de risco. A profilaxia com mefloquina, cloroquina e doxiciclina necessita ser prolongada 4 semanas após a partida da zona de malária. Os medicamentos devem ser tomados com água e alimentos. (Quadro I)
3

Quadro I
Quimioprofilaxia e tratamento de emergência do paludismo
(adaptado de “International Travel and Health”, WHO, 1997)
Fármaco  Adulto  Criança (< 50 kg)
Mefloquina
5 mg/kg/semana
250 mg base
(1 comp) / semana
< 5 kg ou 3 meses
5 – 12 kg
13 – 24 kg
25 – 35 kg
> 36 kg
Não recomendado
¼ comp / semana
½ comp / semana
¾ comp / semana
1 comp / semana
Cloroquina 300 mg base / semana 5 mg base / kg / semana
Proguanil
(em combinação c/cloroquina)
200 mg (2 comp) / dia 3 mg / kg / dia
Doxiciclina
1,5 mg/kg/dia
100 mg (1 comp) / dia < 25 kg ou 8 anos
25 – 35 kg
36 – 50 kg
Não recomendado
½ comp / dia
¾ comp / dia
Tratamento de emergência (dose única)
Fansidar®
(comp 500 mg sulfadoxina +25 mg pirimetamina)
3 comp 5 – 6 kg
7 – 10 kg
11 – 14 kg
15 – 18 kg
19 – 29 kg
30 – 39 kg
40 – 49 kg
¼ comp
½ comp
¾ comp
1 comp
1,5 comp
2 comp
2,5 comp

  
Mefloquina (Mephaquin®, Lariam®) – É o fármaco de escolha para a maioria dos viajantes. Tem uma eficácia de cerca de 90% nas formas resistentes à cloroquina. Os efeitos secundários são geralmente transitórios, durante as 2 primeiras doses, consistindo essencialmente em náuseas, tonturas, cefaleias, insónia, alterações visuais, prurido e pesadelos. Mais raramente podem ocorrer depressão, psicoses e convulsões. Está contra-indicada em pessoas com doença psiquiátrica prévia ou epilepsia, indivíduos com profissões que exijam coordenação fina (e.g. pilotos de aviação) e crianças com peso inferior a 5 kg. Deve ser prescrita com precaução a doentes com perturbações da condução cardíaca ou a tomar b-bloqueantes, outros anti-arrítmicos ou bloqueadores dos canais de cálcio e durante o 1º trimestre da gravidez. Deve evitar-se engravidar durante os 3 meses após a última dose. Apesar de alguma polémica em relação aos efeitos secundários neuro-psiquiátricos da mefloquina, o risco significativo de mortalidade no paludismo por P. falciparum supera o risco relativamente baixo de reacções graves com a mefloquina (cerca de 1: 10 000).

Cloroquina (Resochina®) – As zonas sensíveis à cloroquina estão a diminuir, mas associada ao proguanil pode ser uma alternativa nos viajantes com contra-indicações à mefloquina, embora não tão eficaz (eficácia de cerca de 70%). Os efeitos secundários são semelhantes aos da mefloquina, consistindo em náuseas, cefaleias, tonturas, insónia e agravamento da psoríase. Pode causar prurido, principalmente em pessoas de raça negra. É segura durante a gravidez. Em tratamentos prolongados deve fazer-se um exame oftalmológico periódico, pelo risco de degenerescência macular da retina. Está contra-indicada em doentes com epilepsia e psoríase generalizada.

Proguanil (Paludrine®) – É bem tolerado e seguro durante a gravidez. Os efeitos secundários mais comuns são aftas, distúrbios gastrointestinais e cefaleias. Em Portugal, só está disponível nas farmácias hospitalares. 

Doxiciclina – Está indicada nos casos resistentes à mefloquina e é o fármaco de primeira escolha nas províncias ocidentais do Camboja e na Tailândia perto das fronteiras com o Camboja e Myanmar. Os efeitos secundários incluem náusea, candidíase vaginal, esofagite, distúrbios gastrointestinais e fotosensibilidade. Está contra-indicada em crianças com menos de 8 anos.

Outros fármacos também utilizados incluem a associação dapsona/pirimetamina (Maloprim®) e a primaquina. O Maloprim® está contra-indicado na gravidez e em crianças com menos de 6 semanas. Pode causar anemia aplástica. A primaquina, é usado na profilaxia final pós-exposição, para prevenir o paludismo recorrente (P. vivax). Está contra-indicado em indivíduos com deficiência de glucose-6-fosfato desidrogenase. O halofantrine (Hafan®), anteriormente usado em tratamento de emergência, tem sido desaconselhado pelo risco de disritmias graves.
4
Tratamento «standby» ou de emergência

Os viajantes que se desloquem para zonas remotas onde não tenham acesso rápido a um médico, deverão ser munidos de tratamento de emergência. Devem ser informados sobre os sintomas a que devem estar atentos (febre, arrepios, dores musculares, dores de cabeça, dores abdominais, vómitos e, eventualmente, diarreia) e que o período mínimo de incubação é de 7 dias. Caso surja uma crise aguda e na impossibilidade de contactar rapidamente um médico está aconselhado tratamento de emergência, dado que o paludismo maligno (P. falciparum) pode evoluir fatalmente em 24 horas, sobretudo nas crianças. 
Geralmente recomenda-se a associação sulfadoxina-pirimetamina (Fansidar®), (Quadro 374.I), embora outros regimes possam ser utilizados, nomeadamente a mefloquina na dose de 15 mg/kg, caso não esteja a ser usada para profilaxia. Deve retomar a profilaxia 7 dias depois. No entanto deverá sempre procurar um médico logo que possível.
5
Diagnóstico
O período de incubação assintomático do paludismo varia entre 1 e 4 semanas, mas pode atingir 1 ano ou mais para o P. vivax e ovale. Os sintomas do paludismo são bastante inespecíficos: síndroma gripal com febre errática, arrepios, sudação, cefaleias e mialgias. A periodicidade clássica da febre, que dá origem às designações de febre terçã e febre quartã, é raramente observada, a não ser que se deixe evoluir a doença sem tratamento. A maioria dos doentes com malária apresenta anemia de tipo hemolítico, icterícia ligeira e esplenomegalia. O paludismo pode apresentar-se com convulsões nas crianças, simular hepatite com icterícia, apresentar-se como coma (malária cerebral) ou confundir-se com uma gastroenterite com febre, vómitos, dor abdominal e, ocasionalmente, diarreia. Embora a febre e outros sinais e sintomas sistémicos possam ser graves com o P. vivax, o P. ovale e o P. malariae, as crises clínicas raramente são fatais mesmo se não diagnosticadas e tratadas. Pelo contrário, o paludismo causado pelo P. falciparum pode ser fatal se não for instituído rapidamente tratamento adequado. 
O paludismo pode complicar-se com paludismo cerebral, anemia grave, insuficiência renal aguda, edema agudo do pulmão, hipoglicemia, ruptura esplénica, infecções bacterianas, síndroma nefrótico e paludismo crónico.
O médico deve ter um elevado grau de suspeição em doentes com febre que estiveram em zonas endémicas no último ano. Deve pedir uma pesquisa de Plasmodium em exame de gota espessa e em camada fina, repetindo o esfregaço, se necessário, várias vezes. Se não tiver acesso a um laboratório com alguma experiência no diagnóstico de paludismo, é preferível referenciar o doente para um Serviço de Infecciosas. Os casos potencialmente mais graves (P. falciparum) podem apresentar uma parasitemia baixa devido ao fenómeno de sequestração e um patologista pouco experiente pode ter dificuldades no diagnóstico. Deverá também pedir um hemograma completo. Alguns métodos de diagnóstico não microscópico têm vindo a ser comercializados, podendo ser bastante úteis como complemento às técnicas clássicas, nomeadamente em países com menos experiência no diagnóstico de paludismo.
6
Pontos a reter
É fundamental que o viajante tenha consciência da potencial gravidade do paludismo. Nenhuma medida profilática é 100% eficaz, mas a evicção da picada dos mosquitos é tão ou mais importante que a quimioprofilaxia.
O diagnóstico dos casos importados de paludismo exige um elevado grau de suspeição pela sua raridade em Portugal, mas é essencial, dado que o paludismo causado pelo Plasmodium falciparum pode ter uma evolução rápida e fatal. Num doente com febre, que tenha estado em países tropicais nas últimas 1 a 12 semanas (ou até 12 meses, em casos mais raros), deve ser sempre pedido um exame de sangue periférico em gota espessa e camada fina.
7
Contactos úteis:
Porto: Centro de Saúde da Batalha
Tel.: 22 2002540

Coimbra: Hospitais da Universidade de Coimbra 
Consulta de Medicina do Viajante
tel: 239 400488

Lisboa: Hospital Egas Moniz 
Consulta do Viajante
Tel.: 21 3650349 

Consulta de Medicina do Viajante do Instituto de Higiene e Medicina Tropical
Tel: 213 652 600

Consulta do Viajante
Av. 24 de Julho, 120, 4o piso
Tel: 213 900 842
8
Bibliografia
Barrett PJ, Emmins PD, Clarke PD, Bradley DJ. Comparison of adverse events associated with use of mefloquine and combination of cloroquine and proguanil as antimalarial prophylaxis: postal and telephone survey of travellers. BMJ 1996; 313:528-9. (Estudo retrospectivo por questionário a 2 395 viajantes. Efeitos secundários neuropsiquiátricos significativamente mais frequentes com mefloquina do que com a associação proguanil + cloroquina).

Bell DR, editor. Lecture Notes on Tropical Medicine, 4th Edition. Oxford: Blackewell Science, 1995.

Bradley DJ, Warhurst DC. Malaria prophylaxis: guidelines for travellers from Britain. BMJ 1995; 310: 709-14. (Boa revisão; existe um update de 1997 no CRF mas que não é tão acessível)

Chiodine PL. Non-microscopic methods for diagnosis of malaria. Lancet 1998; 351: 80-1.

INE, Estatísticas de Saúde, 1993 - 1997.

Lobel HO, Kozarsky PE. Update on Prevention of Malaria for Travelers. JAMA 1997; 278: 1767-71.

McMullen J. The Travel and Tropical Medicine Manual, 2nd Edition. Philadelphia: W. B. Saunders Company, 1995.

Steffen R, Fuchs E, Schildknecht J, Naef U, Funk M, Schlagenhauf P, et al. Mefloquine compared with other malaria chemoprophylactic regimens in tourists visiting East Africa. Lancet 1993; 341: 1299-303. (Estudo coorte por questionário de 145 003 viajantes. Mefloquina mais eficaz e com semelhante incidência de efeitos secundários graves ou episódios neuropsiquiátricos que cloroquina + proguanil).

WHO, International Travel and Health. Vaccination Requirements and Health Advice, WHO, Geneva, 1997. (Edição anual da OMS, em francês e inglês, on line na Internet no endereço - http://www.who.int/ith/english/welcome.html).