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Parte IV – Problemas clínicos
4.13. Abordagem do paciente com problemas de saúde mental
403. Deficiência mental e família
Ana Maria Vaz
Cristina Silveira
Maria da Graça Carneiro
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Silva, Pedro Ribeiro

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Introdução
O termo deficiência mental era usado no passado para designar uma forma leve de atraso mental. Actualmente é usado como termo legal, sendo clinicamente conhecido por atraso mental.
Segundo a definição expressa em D.S.M.- IV, atraso mental consiste num funcionamento intelectual inferior à média, associado a limitações na capacidade de adaptação presente antes dos 18 anos de idade.
O diagnóstico é feito independentemente da coexistência de outra patologia física ou mental.
O paciente com atraso mental não tem na maioria das vezes capacidade para se aperceber da sua situação clínica, sendo na maioria das vezes a família deste quem procura apoio e auxílio. Isto é particularmente verdade na cultura mediterrânica que, por tradição, considera que o cuidado dos elementos da família é sua obrigação. Segundo dados de 1995, cerca de 50% dos doentes com grande incapacidade mental viviam no domicílio familiar. Esta convivência comporta uma sobrecarga e uma tensão familiar que muitas vezes conduzem à institucionalização do doente.
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Epidemiologia
Estima-se que a prevalência de atraso mental seja de 1%.
Regista-se uma maior incidência nas crianças em idade escolar, com o pico no grupo etário dos 10-14 anos.
As situações de atraso mental são mais comuns no sexo masculino.
A prevalência destas situações é mais baixa nas populações de mais idade, devido à elevada taxa de mortalidade a elas associada. 
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Etiologia
Os principais factores etiológicos de atraso mental incluem:
- Condições genéticas - síndrome de Down, síndrome do X frágil, síndrome de Prader-Willi, síndrome do Cri du Chat, trissomia dos cromossomas 13 e 18.
- Condições metabólicas – fenilcetonúria, distúrbio de Rett, neurofibromatose, esclerose tuberosa, síndrome de Lesh-Nyhan, adrenoleucodistrofia.
- Condições pré-natais – infecção congénita a rubéola, CMV, sífilis, toxoplasmose, herpes simplex e HIV.
- Condições adquiridas na infância – encefalite, meningite, traumatismo craniano.
- Factores ambientais e sócio culturais – sabe-se que o atraso mental ligeiro é mais prevalente entre as pessoas de classe socio-económica mais baixa em que alguns membros da família são portadores de graus semelhantes de atraso mental, não tendo sido identificada nenhuma causa biológica nestes casos. 
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Classificação
No D.S.M.-IV são definidos 4 graus de atraso mental:
- Leve – quociente de inteligência entre 50-55 e 70.
- Moderado – quociente de inteligência entre35-40 e 50-55.
- Severo – quociente de inteligência entre 20-25 e 35-40.
- Profundo – quociente de inteligência abaixo de 20-25.
Critérios de diagnóstico
1. Funcionamento intelectual significativamente inferior à média: QI <=70 num teste de QI individualmente administrado (nos lactentes um julgamento clínico do funcionamento intelectual, significativamente inferior à média).
2. Dificuldades concomitantes no funcionamento adaptativo em pelo menos duas das seguintes áreas: comunicação, cuidados pessoais, vida doméstica, capacidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, independência, capacidades académicas, trabalho, lazer, saúde e segurança.
3. Início antes dos 18 anos.
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Desenvolvimento e graus de atraso mental

Quadro I
  Maturação e Desenvolvimento (0-5 anos) Treino e Educação(6-20 anos) Adequação Social e Vocacional (> = 21anos)
Leve Pode desenvolver capacidades sociais e de comunicação.
Não se distingue do normal até idade avançada.
Tarefas académicas até ao 6º ano, nível atingido no fim da adolescência.
Pode ser reabilitado socialmente. 
Pode integrar programa de reabilitação social e vocacional para auto manutenção mínima
Moderado  Pode falar ou aprender a comunicar.
Consciência social deficiente.
Desenvolvimento motor satisfatório, controlado com supervisão adequada.
Beneficia do treino do cuidado próprio.
Pode beneficiar do treino de actividades sociais e ocupacionais.
Incapaz de progredir além da 2ª classe.
Pode viajar sozinho para lugares familiares.
Pode atingir a auto-manutenção em trabalhos não qualificados, sob condições de protecção.
Necessita de orientação quando sob stress social e económico moderado.
Severo  Desenvolvimento motor deficiente.
Linguagem mínima.
Incapaz de obter benefícios do treino do cuidado próprio.
Capacidade de comunicação mínima ou nula.
Pode falar ou aprender a comunicar.
Benefício do treino de hábitos elementares de saúde, sistemáticos.
Ausência de beneficio de treino ocupacional.
Pode contribuir parcialmente para a auto manutenção, sob supervisão completa.
Pode desenvolver capacidades de auto protecção, num nível útil mínimo em condições controladas.
Profundo  Capacidade mínima nas áreas sensório-motoras.
Necessita de cuidados de enfermagem.
Constante ajuda e supervisão
Presença de algum desenvolvimento motor.
Pode responder a treino mínimo ou limitado de cuidado próprio.
Algum desenvolvimento motor e da linguagem.
Pode atingir cuidado próprio limitado.
Necessita de cuidados de enfermagem.

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Avaliação geral
A abordagem do doente com deficiência mental engloba diferentes perspectivas:

Abordagem da patologia que está na base da deficiência 
- Confirmar a etiologia da doença e seu tratamento.

Abordagem do indivíduo
- Avaliar a aquisição de condutas adaptativas relativamente à própria doença.
- Avaliar o nível de independência/ autonomia do doente, é avaliado por escalas de actividade que medem vários parâmetros:
Higiene
Deambulação
Controle de esfíncteres
Vestir
Comer
Cozinhar
Fazer compras ou viagens.
- Benefício de recursos económicos: pensões, subsídios ou receitas laborais.
- Benefício de recursos sociais

Abordagem da família
- Identificar o principal prestador de cuidados, estimulando no entanto a participação de toda a família, no processo de prestação de cuidados ao deficiente.
- A prestação de cuidados a doentes dependentes implica vários problemas para o cuidador: 
Isolamento social do trabalho, dos amigos, da família, das actividades lúdicas.
Falta de tempo para o próprio, família e amigos.
Interrupções de carreira e perdas financeiras.
- Estes aspectos conduzem o prestador de cuidados a um risco elevado de depressão (>50%), aumento do número de consultas médicas (>46%), aumento da tendência para hospitalizações. Desta forma, estes elementos da família necessitam de suporte e educação como veremos adiante.
- Conhecer a situação domiciliária no que diz respeito a salubridade, existência de saneamento básico, acessibilidade, condições razoáveis de conforto.
- Avaliar o grau de conhecimentos da família, relativamente à patologia.
- Avaliar a família relativamente a experiência prévia no apoio a doentes dependentes.
- Avaliar o sistema familiar nas seguintes áreas: dinâmica familiar, comunicação, atitude na resolução de problemas, coesão familiar, genograma familiar.
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Tratamento
Nos últimos 20 anos tem-se assistido a um aumento da não institucionalização dos doentes com atraso mental. Este facto implica que os cuidados anteriormente exclusivos das instituições que recebiam estes doentes, passaram também, e cada vez mais, a ser prestados pelo médico de família. Desta forma torna-se cada vez mais importante investir na formação dos médicos de família relativamente a esta área. 
A abordagem terapêutica do doente com deficiência mental implica:
- Detecção precoce da patologia que está na base da deficiência e referenciação aos Cuidados Secundários (Psiquiatra e/ ou Neurologista).
- Educação do doente mediante terapia social, ocupacional, treino de capacidades adaptativas e encaminhamento para grupos de auto-ajuda. Alguns doentes, com graus mais leves de atraso mental, podem beneficiar de terapia comportamental, cognitiva e psicodinâmica. O sucesso de todas estas terapêuticas é tanto maior quanto menor o grau de atraso mental.
- Educação da família.
É uma das áreas mais importantes a serem abordadas pelo clínico, envolvendo formas de melhorar a competência e a auto-estima de cada um dos elementos da família, mantendo no entanto perspectivas realistas relativamente à doença.
A comunicação com a família deverá ser feita através do principal prestador de cuidados. 
Deverá ser avaliada a possibilidade de permanência do doente no domicílio e suas implicações.
A família deverá ser informada relativamente ao curso, gravidade e prognóstico da doença, bem como das suas complicações, não devendo existir, por parte da família, quaisquer dúvidas relativas a estes aspectos. 
A família deverá ainda ser informada relativamente aos grupos de auto-ajuda e recursos sociais disponíveis podendo proceder à referenciação ao assistente social.
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Erros mais comuns (a evitar)
- Aceitar a resignação da família e considerar que não há nada a fazer, sem tentar qualquer tipo de reabilitação.
- Considerar correctos diagnósticos antigos, sem fazer qualquer exploração no sentido de os confirmar.
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Prevenção
- Aumentar o conhecimento e a consciência do público em geral, em relação ao atraso mental com acções de educação continuadas.
- Fomentar esforços contínuos dos profissionais de saúde no sentido de garantir e melhorar as políticas de saúde pública.
- Definir legislação que proporcione cuidados ideais de saúde materno-infantil.
- Tentar a erradicação das perturbações / doenças conhecidas associadas a lesão do sistema nervoso central.
- Fazer aconselhamento familiar e genético às famílias com membros com atraso mental ou em que haja outros factores de risco.
- Proporcionar cuidados médicos pré e pós natais adequados em mulheres de baixos recursos socio-económicos
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Anexos

Legislação
- Direitos civis – artigos 138º e seguintes e 152º e seguintes do Código Civil que se referem à incapacidade dos portadores de deficiência mental regerem o seu património (inabilitação) ou de governarem a sua pessoa e seus bens (interdição). Os interditos são equiparados para todos os efeitos aos menores.
- Saúde – decreto-lei nº 54/92 de 11 de Abril que se refere à isenção de cobrança de taxas moderadoras.
- Educação – nos termos do decreto-lei nº 133-B/97 de 23 de Agosto e do Decreto Regulamentar nº 14/81 de 27 de Abril, foi criado um subsídio de educação especial, para compensar os gastos acrescidos com crianças e jovens com deficiência, de idade não superior a 24 anos, integrados em escolas de ensino particular especial.
- Segurança social – pelos decretos-lei nº 160/80 e 133-B/97 de 27 e 30 de Maio respectivamente, foi estabelecido um sistema mínimo de protecção social. Abono complementar a crianças e jovens deficientes, até aos 24 anos; e o subsídio mensal vitalício concedido às pessoas deficientes com mais de 24 anos de idade.
- Emprego e formação profissional – Lei nº 17/95 de 9 de Junho introduz alterações na Lei sobre Protecção da Maternidade e Paternidade segundo a qual: “ pais que tenham filhos com deficiência podem, independentemente da idade destes, faltar até 30 dias por ano, para prestar assistência inadiável e imprescindível. Nos casos de hospitalização, o período estende-se ao período de duração da mesma”. Decreto-lei nº 187/88 de 27 de Maio alterado pelo Decreto-lei nº 159/96 de 4 de Setembro refere que, a nível do sector público é permitida a flexibilidade de horário aos funcionários com deficiência.
- Programa Cidadão e Justiça: equipa de juristas de 2ª-6º feira das 9-18 horas
Linha directa – 218475000 / 1
Programa Cidadão e Justiça – Ministério da Justiça: Av. Roma nº 14 – P 
1000 Lisboa

Associações e grupos de auto-ajuda
- Associação Portuguesa dos portadores de Trissomia 21
Rua Dr. José Espírito Santo lote 49 loja 1 1900 Lisboa. Tel: 218371699
- Associação Portuguesa de Saúde Mental
Apartado 1504- 4108 Porto Codex
- Associação Comunitária de Saúde Mental
Av. Gomes Pereira nº 55 r/c dto. 1500 Lisboa
- Associação Portuguesa para protecção de deficientes autistas
Estrada de Queluz nº 9 1300 Lisboa
- Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral
Av. Casal Ribeiro nº 55 r/c dto. 1000 Lisboa Tel: 213547990
Av. Rainha D. Amélia. 1600 Lisboa Tel: 217572302 / 05
- Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes
Rua de São José nº 86 1º andar 1100 Lisboa
- Associação Portuguesa de Trabalhadores Deficientes
Av. Capitão Homem Ribeiro nº 33 2º andar 3500 Viseu

- União Coordenadora Nacional de Organismos de Deficientes
Av. João Paulo II lote 588 1º andar 1900 Lisboa Tel:218595648
- Movimento de apoio ao diminuído intelectual
Rua Brito Capelo nº 60 cave esq. 4000 Porto
- Associação Algarvia de pais e amigos de crianças deficientes mentais
Rua do Compromisso nº 50 8000 Faro
- Associação de pais e técnicos para a integração do deficiente
Urbanização Quinta dos Lóios R-2 25A Lavradio 2830 Barreiro
- Associação de pais e amigos de deficientes profundos
Av. João Paulo II bloco 552 – 1 – B 1900 Lisboa
- Associação familiar para a integração da pessoa deficiente
Av. Gago Coutinho nº 66 1700 Lisboa Tel: 217576880
- Gabinete de atendimento à família
Convento do Carmo 4900 Viana do Castelo Tel: 258822264
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Bibliografia
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Serôdio J. Legislação e reabilitação de pessoas com deficiência. Integrar nº 14 Set-Nov 97. Instituto do emprego e formação profissional. 29-33.

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