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Parte IV – Problemas clínicos
4.13. Abordagem do paciente com problemas de saúde mental
407. Terapia familiar - princípios e indicações
Olga Xavier da Rocha
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Silva, Pedro Ribeiro

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Considerações Gerais
Sempre que a homeostase familiar é perturbada, o doente e a sua família devem ser tratados em conjunto, segundo a epistemologia sistémica. Parafraseando Henry Richardson, “a família é a unidade da doença porque é a unidade da vida”. Família, é aqui entendida como o espaço e o modo inter-relacional, de um conjunto de pessoas que vivem juntas, entre as quais existem, de modo repetitivo, interacções circulares. Assim, os comportamentos de um membro afectam todos os outros.
Cada sistema familiar apresenta as seguintes características:
- estruturais: elementos, limites, reservatórios e comunicações;
- funcionais: homeostasia e sua ruptura, mudança e adaptação familiar, doente designado e informação retroactiva.
Os sub-sistemas familiares (elementos da família) são definidos pelos seus limites. Estes dependem de regras que decidem “quando, quem e como”. Os elementos do sistema familiar mudam com o tempo, o que altera as estruturas, os processos de controlo, o “feedback” e a calibração. Quando os limites se tornam disfuncionais, surge a patologia.
Todas as famílias passam por crises familiares, i.e., períodos de tensão e conflito, que surgem periodicamente na sua vida. São frequentes nas mudanças de fase do ciclo de vida familiar (CVF) - conceito proposto por Ruben Hill e Evelyn Duvall em 1948, que descreve a sucessão das fases que a unidade familiar atravessa, desde a sua constituição até ao seu desaparecimento (ver 26). Esta noção foi revitalizada nos anos 70 por Bowen (1978), Erickson e Haley (1973), Satir (1972), Carter e Macgoldrick (1980).
Uma crise causa ruptura temporária da homeostase familiar, tornando-se necessário reorganizar as interrelações e descobrir novas regras de funcionamento familiar, visando um novo equilíbrio que, se não for alcançado, poderá fazer surgir uma doença.
Na história de uma família, há sempre crises “previsíveis“ (por exemplo, a adolescência e a reforma) e crises imprevisíveis (por exemplo, mortes acidentais, desemprego, doenças). Perante uma crise, é frequente, a família não conseguir ultrapassá-la, procurando então a ajuda de um terapeuta, por sua iniciativa ou por influência de terceiros.
A intervenção na família, segundo Doherty W. e Baird MA, “ Family Therapy and Family Medicine”, Guilforde Press, Nova Yorque, 1983, pode ocorrer em cinco níveis:
– intervenção familiar esporádica;
– informação e aconselhamento da família;
– apoio familiar e social;
– abordagem sistémica da família visando a resolução de problemas, com planeamento de intervenções;
– terapia familiar (TF).
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Definição de Terapia Familiar (TF)
A TF não tem uma definição precisa e única, mas a conceptualização sistémica é comum a todas as variantes. Destas, umas têm cariz psicanalítico, outras comportamentalista ou existencialista. Em todas, porém, é essencial a constituição de um sistema original, o sistema de referência: o sistema terapêutico. Segundo Minuchin, o terapeuta deve-se afiliar ao sistema familiar, aceitando a organização e a cultura da família, num processo bilateral.
Inicialmente, a TF surgiu com o objectivo de acalmar e evitar as crises. Actualmente, a TF ajuda a ter uma vivência da situação de crise, tornando-a num momento de crescimento e de opção. A TF não pretende mudar a estrutura intra psíquica da personalidade, mas sim transformar as relações entre os elementos da família e reactivar as competências familiares.
A TF assenta nas seguintes premissas:
- o indivíduo é um sistema aberto, capaz de auto regulação, com trocas contínuas com o meio;
- a troca entre o indivíduo e o meio é sempre de energia e de informação, implicando retroacção e circularidade;
- a concepção dos processos mentais tem um papel de metafunção, relativamente às modalidades de funcionamento e organização do indivíduo; depende da relação do indivíduo com o meio; sendo o indivíduo indissociável do meio, co-evoluindo com ele.
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Escolas de TF
Há diversas escolas ou correntes de TF das quais se destacam:

TF Via Terapêutica
A TF significa a realização de consulta por um técnico formado nesta disciplina, o qual estabelece uma relação significativa com a família. O objectivo terapêutico deste tipo de consulta é, em última análise, o de provocar uma ou várias mudanças, cujo efeito a curto, médio ou longo prazo, será o de tornar a família suficientemente competente para resolver as dificuldades que desencadearam o sofrimento do sistema e dos seus membros, e principalmente encontrar uma alternativa à produção de sintomas.
Os três princípios fundamentais desta corrente são:
- a confrontação entre os membros da família;
- a acção directa sobre as relações;
- o reforço da competência familiar.

Com base nestes três princípios fundamentais surgiram diversas vias terapêuticas, consoante o tipo de conceitos e métodos que adoptam:
– Via Estrutural, desenvolvida por Salvador Minuchin, salienta as mudanças da estrutura do sistema familiar, realçando as fronteiras, as alianças e as coligações;

– Via Estratégica, definida por Selvini e Palo Alto, inclui a relação terapêutica e as relações intra familiares na perspectiva de relações de poder;

– Via Psicanalítica,
permite reconhecer e interpretar os movimentos transferenciais e contra-transferenciais, que se instauram entre os membros da família e o terapeuta;

– Via Comportamentalista,
baseia-se na óptica sistémica, nos princípios teóricos e terapêuticos do modelo “behavorista“ e nas noções do comportamento e da aprendizagem;

- Via Transgeracional,
privilegia as relações “verticais” (intergeracionais) consideradas mais poderosas do que as relações “horizontais“. Tem duas vertentes:
a) Via contextual, de Boszermenyi-Nagy, que explora o comportamento patológico de um membro ou o sofrimento de toda a família; analisa as relações nas suas quatro dimensões (existencial, psicodinâmica, transaccional e ética);
b) Modelo de Bowen, que analisa os processos de propagação transgeracional e o grau de diferenciação do “self”.

TF Formas de Aplicação
- TF com a Família Nuclear é a dimensão mais corrente deste tipo de intervenção, contando com duas gerações: pais e filhos.
- TF com a Família Alargada, com a participação da família alargada a três gerações.
- Terapia de Casal.
- Terapia Multifamiliar, onde se reúnem várias famílias.
- Terapia Multiconjugal.
- Terapia de Rede, onde a intervenção é feita não apenas na família, mas com outros sistemas relacionados com a família.
- Psicoterapia Individual de Orientação Sistémica, onde um indivíduo é tratado com base na teoria sistémica, “através” do elemento que vem à consulta.
Cada uma destas diferentes formas de TF tem as suas indicações próprias. Mas tal como Bateson consideramos que independentemente da forma o importante é saber “PENSAR SISTÉMICO” ao longo da relação terapêutica.
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Aptidões que o terapeuta familiar deve reunir
- saber entrevistar famílias ou membros de famílias que manifestem grande dificuldade de empenhamento no processo terapêutico;
- elaborar e testar hipóteses sobre as dificuldades e os padrões de interacção;
- induzir um conflito em escalada na família para quebrar um impasse familiar;
- manter a neutralidade perante fortes pressões familiares ou do exterior;
- “aliar-se temporariamente” a um membro da família;
- manejar, construtivamente, uma forte resistência à mudança da família;
- ser capaz de lidar com emoções intensas nas famílias e no “self”;
- negociar relações de colaboração com outros profissionais que trabalhem com a família, mesmo quando estes têm relações conflituosas entre si.
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Entrevista Familiar
O instrumento da TF é a entrevista familiar, i.e., uma forma de explorar o contexto familiar em interacção e de visualizar as conexões entre os membros da família, através da comunicação. O terapeuta familiar funciona como catalisador. Com as suas técnicas e conhecimentos, estimula a competência das famílias, diminui a ansiedade familiar, melhora os conhecimentos e as soluções, cria condições para a mudança.
Uma Entrevista Familiar é composta pelas seguintes fases:

- Fase prévia ou social, durante a qual se estabelece o primeiro contacto com a família. O TF deve fazer sentir confortáveis todos os elementos da família e estar atento às comunicações verbais e não verbais. Visando a “co-participação” com a família, o TF deve usar a mesma linguagem que a família e mostrar respeito pelas regras, cultura e estética familiar.

- Fase da entrevista propriamente dita ou da definição do problema, momento durante o qual o TF vai investigar o que cada elemento da família pensa sobre o problema, sobre os outros elementos e sobre a família no global, suas fronteiras intra e extra-familiares. É fundamental que nesta fase todos os elementos da família expressem a sua posição. É também ao longo desta fase que se pergunta o tempo de duração do problema e resoluções já tentadas e seus resultados.

- Fase de intervenção ou interactiva, durante a qual se explora a estrutura familiar, se clarificam as regras de interacção entre os elementos e subsistemas da família. É durante esta fase que se pesquisam a existência de coligações, de alianças e se rectificam as formas de comunicação dos elementos da família entre si. Contrariamente ao ocorrido até esta fase, nesta parte da entrevista familiar, o TF incentiva os diálogos entre os vários elementos da família. Nesta fase podem ocorrer momentos de elevada tensão emotiva, serem feitas referências a outros problemas da família. O TF deve estar atento a fim de controlar as tensões emocionais e ainda que guarde as referências a outros problemas, não deve na primeira entrevista sair do problema que trouxe essa família à terapia.

- Fase pós-sessão ou de redefinição do problema/sintoma. Nesta fase, há uma compreensão sobre a forma como o sintoma surgiu e se manteve. O TF pode neste momento inserir o sintoma no contexto familiar, dando-lhe um sentido diferente, pode apontar caminhos de mudança e valorizar as competências da família para alcançar a resolução do problema. É nesta fase que se delineia a continuação da terapia familiar iniciada.
Resumindo as fases que compõem uma ENTREVISTA FAMILIAR (Quadro I):

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Quadro I

Fases da entrevista familiar

Fases  Objectivos  Metodologia  Alvo(s) Preocupações momentos críticos
Estadio social Apresentação;
“Quebrar o gelo”;
Ambiente confortável
Conversa Informal Todos os elementos da família Estar atento às comunicações
Não verbais/verbais
Definição do problema Saber o que cada um pensa sobre o problema em causa (recolha informação);
Introduzir informação sistema familiar (através dos próprios);
Recolher informação:
-relação interpessoal com o conflito,
-o que cada um fez para resolver o problema em causa;
Perguntas circulares
-reflexivas se o Terapeuta quiser explorar;
-circulares se o Terapeuta quiser possibilitar novas relações.
Quem notou primeiro o Problema;
Valorizar expressamente alguém;se o paciente identificado (PI) for uma criança, deve ser o último a falar
O Terapeuta não deve ser triangulado, não deve entrar em diálogo;
O Terapeuta deve encorajar todos os elementos da família a expressarem a sua versão;
O Terapeuta deve estar atento aos marcadores de contexto e às aberturas;
O Terapeuta deve estar atento a manobras de um sistema ausente mas que manipula a situação
Interactiva Exploração da estrutura familiar:tornar claras as regras que definem as interacções entre os diferentes subsistemas, as alianças, as coligações e conhecer as áreas de funcionalidade e de disfuncionalidade;
Hierarquizar os problemas.
Diálogo entre os elementos;
Representação da realidade quotidiana
Todos  O Terapeuta deve incentivar os elementos da família a dirigirem-se uns aos outros;A intervenção deve ser direccionada para o problema que mobilizou a família;O terapeuta deve controlar os climas emotivos.
Redifiniçâo do problema/
sintoma
Compreensão do contexto em que o problema surgiu e se manteve o sintoma Apontar caminhos de mudança;
Valorizar as capacidades cada elemento (competências);
Avaliar individualmente o que cada um pode fazer para facilitar o aparecimento de modelos mais adequados de funcionamento;
Planear a estratégia de continuação da intervenção do terapeuta com a família.
   

O espelho unidireccional e a gravação de sessões em «video-tape» são dois elementos que se usam em TF. Permitem analisar as repercussões da entrevista na família e a interacção que se produziu entre a família e o terapeuta.
Na entrevista familiar há, segundo Daniel Sampaio, quatro sistemas para avaliar:
1. sistema biológico ou sistema psicológico (avaliação do pedido expresso ou latente do paciente);
2. sistema familiar (usando o genograma, basicamente);
3. sistema social (condições de habitação, emprego e rede de suporte);
4. sistema de saúde (nível de informação, grau de satisfação e de adesão).
O processo terapêutico na terapia familiar divide-se em três fases principais, segundo Andolfi M. e Angelo C.:
1. identificação do paciente (PI);
2. “substituição” do PI pelo terapeuta, o PI fica numa posição de observação;
3. o terapeuta separa-se do grupo e as interacções são mais flexíveis.
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Indicações de TF
Algumas das situações clínicas que têm indicação para TF, segundo Christie-Seely e Smilkstein são:
- doentes com sintomas inespecíficos, com grande frequência de consultas, mas sem doença orgânica;
- doentes que saltam de médico para médico;
- consultas frequentes de diferentes membros da família;
- dificuldades de controlo de doenças crónicas, quando requerem apoio e intervenção da família (por exemplo dietas);
- problemas emocionais ou de comportamento grave;
- efeito mimético («ripple effect»), isto é o aparecimento de episódios de doença sucessivos na mesma família, sobretudo após ter ocorrido uma situação de doença grave na família;
- problemas conjugais e sexuais;
- triangulação ou transferência de um problema não resolvido para outro elemento da família, sobretudo para uma criança;
- doenças relacionadas com estilos de vida e com o ambiente;
- doenças em fases de transição do ciclo de vida;
- morte na família, acidente grave, divórcio;
- quando o tradicional modelo biomédico é insuficiente ou inadequado.

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Working with the family in primary care. Christie – Seely