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Parte IV – Problemas clínicos
4.16. Abordagem do paciente oftalmológicos

459. Olho vermelho uni ou bilateral
Jaime Brito da Torre
José Cabrita
Délio Portela
Lucília Lopes

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Prata, Leonor


Os problemas oftalmológicos constituem 1,8% a 5% de todos os problemas observados em cuidados de saúde primários (CSP).
O olho vermelho (OV) é o problema oftalmológico mais frequente, levando a pessoa ao médico (CG/MF), habitualmente no âmbito de um contacto da iniciativa do utente, com carácter de urgência.
Nos contactos programados, sendo menos frequente como motivo de consulta, é um sinal que nem sempre corresponde a um problema apenas do olho mas que poderá ser também uma das manifestações de doença sistémica.
O OV traduz um processo inflamatório e/ou hemorrágico do olho e dos tecidos peri-oculares. Como causas de inflamação temos as infecções a bactérias, vírus, Chlamydia ou fungos, as reacções alérgicas, os distúrbios da imunidade, a elevação da pressão ocular, a acção de substâncias ambientais ou farmacológicas irritantes, os corpos estranhos ou ainda um traumatismo. A hemorragia poderá ter como causa uma contusão, uma laceração, uma coagulopatia ou infecções concomitantes.

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Quadro I

Causas de olho vermelho
Problemas da Conjuntiva Problemas da Córnea Problemas do Tracto Úveal Problemas do olho e da órbita Problemas Intra-oculares
-Infecção (bactérias, vírus, Chlamydia)
-Alergia
-Corpo estranho
-Hemorragia sub-conjuntival
-Pinguécula
-Pterigyum
-Herpes simplex
-Adenovírus
-Herpes zooster
-Queratoconjuntivite sicca
-Queratopatia
-Trauma químico
-Ulceração da córnea
-Irite ou coroidite primária
-Irite secundária (infecção ou trauma)
-Doenças sistémicas (colagénio, vasculares
-Blearier
-Chalazios
-Hordéolo
-Dacriocistite
-Celulite
-Hemorragia
-Glaucoma agudo
-Epiesclerite
-Esclerite


Quando uma pessoa consulta o médico por OV, costuma referir ou apresentar à observação um quadro pouco florido de outros sinais ou sintomas. É com eles e com material de observação simples mas adequado que o podemos ajudar na resolução do problema.

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Quadro II
Material:
i) Lanterna eléctrica;
ii) Lupa de +13,0 para observação com ampliação ou iluminação focal;
iii) Oftalmoscópio
iv) colírio anestésico;
v) fluoresceína para corar a córnea;
vi) Soro fisiológico e seringas para lavagem;
vii) Colírios e pomadas de antibiótico;
viii) comprimidos de acetazolamida;
ix) antibióticos de alto espectro;
x) analgésicos;
xi) sedativos.

Devemos ter sempre presente que a situação poderá constituir uma emergência oftalmológica e que a atitude correcta passa sempre por fazer uma boa anamnese e uma observação cuidadosa do problema de forma a actuar-se com eficiência.

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Quadro III

Numa boa anamnese não podemos deixar de questionar sobre o início e a progressão do olho vermelho, a existência de traumatismo ou penetração de corpo estranho, desconforto/sensação de corpo estranho, lacrimejo, corrimento/exsudação/secreções, prurido ocular, uso prolongado de lentes de contacto. Antecedentes pessoais tais como patologia oftalmológica prévia, hipertensão, diabetes ou doenças sistémicas. Antecedentes familiares de patologia ocular.

Uma observação cuidadosa inclui o exame das pálpebras para lesões localizadas (blefarite, terçolho, ectropion, dacriocistite, dacriadenite e celulite) e/ou edema. Deve fazer-se a retracção e a eversão das pálpebras de forma a excluir corpos estranhos. Depois observar-se-ão a córnea e a íris e caso se suspeite de lesões da córnea deve utilizar-se fluoresceína e luz azul?. O tamanho das pupilas deve ser sempre avaliado (uma miose pode indicar irite, uma midríase após traumatismo far-nos-á pensar na paralisia do 3º par). Poderá ser necessário medir a acuidade visual.

Assim, perante um OV, devemos seguir um raciocínio sistemático (ver fluxograma) que leve em consideração a presença ou ausência de dor, de fotofobia, de alterações da visão, e de outros sintomas a pesquisar, de forma a chegarmos a uma hipótese diagnóstica, definirmos a atitude a tomar, ou seja, tipo de tratamento, seguimento do problema e decisão sobre referenciação:

1. Se não existe dor, nem fotofobia, nem alterações da acuidade visual (por vezes o doente pode referir alterações muito ligeiras), se a hiperemia conjuntival é difusa e mais intensa na periferia, se há secreções, sensação de corpo estranho e prurido ocular, estaremos em presença de uma conjuntivite (C), a causa mais frequente de olho vermelho (fig. 458.2 – Foto).
Geralmente não estamos perante uma situação de urgência (no entanto, embora pouco frequentes, as conjuntivites hiper-agudas por Neisseria Gonorrhoeae podem levar rapidamente a perfuração da córnea). Poderá ser útil uma colheita do exsudado conjuntival (ex.: conjuntivite pós-operatória, purulenta ou membranosa, neo-natal, resistente ao tratamento instituído). 
Não se devem prescrever corticóides e anestésicos tópicos. O tratamento consiste na utilização de antibióticos tópicos tais como Tetraciclina, Cloranfenicol, Neomicina, porventura cromoglicato dissódico se Conjuntivite alérgica. Fazer diagnóstico diferencial relativamente aos vários tipos de conjuntivite (ver unidades de texto – 464 e 465).
Deveremos considerar a referência ao oftalmologista quando o olho vermelho se mantiver por mais de três a cinco dias.

2. Se não existe dor, nem fotofobia, nem alterações da acuidade visual e se a área vermelha é intensa e localizada, apresentando-se sob a forma de petéquias até grandes placas que podem ocupar toda a conjuntiva bulbar, estaremos provavelmente em presença de uma hemorragia sub-conjuntival (HSC) (Fig. 458.3 – Foto).
Neste caso, não estamos numa situação de urgência, não há indicação para actuar ou prescrever. Devemos explicar o problema ao utente pois a reabsorção é norma em 2 a 3 semanas. A referência ao oftalmologista só deverá ser considerada se houver história de traumatismo.
As causas de HSC são: i) traumatismos directos do globo ocular em que a hemorragia aparece imediatamente; ii) traumatismos do crânio em que a hemorragia é tardia; iii) congestão venosa intensa da cabeça por tosse ou vómito por exemplo; iv) alterações vasculares da conjuntiva - telangiectasias, aneurismas, tumores angiomatosos; v) doenças hemáticas-vasculares – fragilidade vascular, púrpura; vi) conjuntivites agudas por entero e adenovírus e a pneumococos; vii) infecções generalizadas (apresentando-se sob a forma de petéquias);e viii) o uso de anticoagulantes. 
A HSC surge muitas vezes em indivíduos saudáveis, não tendo significado patológico. No caso de hemorragias recidivantes deve fazer-se um estudo da coagulação;

3. Se existe dor, fotofobia, lacrimejo, sensação de corpo estranho, blefarospasmo, acuidade visual pouco ou nada alterada (turvação), e se há história de traumatismo, podemos estar em presença de uma lesão superficial da córnea: erosão (E) (Fig. 458.4 – Foto), corpo estranho (CE) (Fig. 458.5 – Foto) ou queimadura (Q) (Fig. 458.6 – Foto). A história do traumatismo e o teste da fluoresceína orientará o diagnóstico. 
Na suspeita de erosão, após alívio da dor com anestésico tópico, a aplicação de fluoresceína determinará a forma e extensão da lesão. Nunca nos devemos esquecer de fazer a eversão da pálpebra pois um corpo estranho localizado na conjuntiva palpebral superior poderá ser a causa da erosão.
A situação não é de urgência. Deve ser aplicado um colírio cicloplégico, antibiótico tópico e penso ocular diário durante 48 horas. Não se deve prescrever corticóide nem anestésico tópico.
Referenciar ao oftalmologista caso haja turvação significativa e grande extensão da erosão ou após 48 h de terapêutica sem cura definitiva.
Caso estejamos perante um corpo estranho na córnea a indicação é fazer um penso ocular com antibiótico tópico e referenciar. 
De entre as queimaduras mais frequentes devemos distinguir as queimaduras por radiações, provocadas por exposição solar ou por arco eléctrico (soldadores sem protecção). as químicas, provocadas por ácidos (que normalmente têm uma acção breve e pouco difusa) ou por bases (com acção prolongada e infiltrante), que constituem situações de urgência e as térmicas provocadas por agentes físicos.
Nas queimaduras por radiação a atitude será aplicar cicloplégico de curta duração, fazer penso ocular com antibiótico tópico durante 24 h e prescrever analgésicos sistémicos. Esta é uma situação transitória que aparece cerca de 6 a 10 h após a exposição e dura 1 ou 2 dias. Deve ser explicada a evolução ao doente pois o mal-estar provocado por este tipo de queimadura leva muitas vezes a uma segunda consulta desnecessariamente.
Nas queimaduras químicas, o gesto de urgência consiste em aplicar anestésico tópico, fazer lavagem abundante com soro fisiológico, colocar cicloplégico e referenciar ao oftalmologista de urgência.
As queimaduras térmicas requerem, à excepção da lavagem abundante a mesma atitude das queimaduras químicas.

4. Se existe dor, fotofobia, acuidade visual alterada, e se há história de traumatismo com ferida da pálpebra e/ou hérnia dos tecidos intra-oculares, estaremos perante uma ferida perfurante do globo ocular (Fig. 458.7 – Foto). 
As feridas perfurantes do globo ocular resultam normalmente de acidentes de viação, domésticos ou de trabalho. No exame objectivo poderemos encontrar uma pupila irregular (Fig. 458.8 – Foto), uma hifema (hemorragia da câmara anterior do olho – Fig. 458.9 – Foto), uma ferida da córnea (Fig. 458.10 – Foto) para além de ferida da pálpebra (Fig. 458.11 – Foto) ou/e herniação do tecidos intra-oculares (Fig. 458.12 – Foto) já referidas.
A referência urgente ao oftalmologista é obrigatória após penso ocular sem compressão, profilaxia do tétano e cobertura antibiótica sistémica IV se possível.

5. Se existe dor, fotofobia, acuidade visual pouco alterada (conta dedos a 1 metro), lacrimejo, blefarospasmo, teve início súbito, é unilateral, apresenta hiperemia conjuntival (círculo periquerático, isto é, a hiperemia localiza-se circunferencialmente perto do limbo), miose irregular e pouco reactiva, e a íris descorada, o doente terá uma iridociclite (Fig. 458.13 – Foto). A atitude indicada consiste em aplicar um midriático/cicloplégico e referenciar ao oftalmologista. 

6. Se existe dor (muito intensa), fotofobia, acuidade visual muito alterada (não conta dedos a 1 metro), náuseas e/ou vómitos, cefaleias, teve início súbito, é unilateral, a presença de córnea turva, midríase e olho duro, temos presente uma verdadeira emergência oftalmológica, um glaucoma agudo (Fig. 458.14 – Foto). Porque este problema ocular pode levar à cegueira, é urgente o recurso ao Oftalmologista após massagem digital do globo ocular e a aplicação de mióticos. A administração de analgésicos e de anti-eméticos deve ser sempre considerada.
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Fluxograma olho vermelho




* Poderão estar presentes alterações da acuidade visual
**Em certas situações a dor e a fotofobia podem estar presentes

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Bibliografia
ICPC - Edição portuguesa - APMCG - Lisboa, 1995 - Pág. 14
Khunti K. O olho vermelho. General Practitioner, Leicester. UPDATE 15 Abril 1996.