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Parte IV – Problemas clínicos
4.16. Abordagem do paciente oftalmológicos

Perda Súbita da Visão
Sara Ramires Pinto

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Prata, Leonor


A anamnese e a execução de um exame objectivo cuidadoso são importantes para o diagnóstico dos doentes do foro oftalmológico. Algumas situações como a perda súbita da visão exigem o envio imediato ao especialista para se evitarem complicações irreversíveis.

A perda súbita da visão pode dever-se a alterações dos meios transparentes do olho, retina ou via óptica. 
A perda da visão poderá desenvolver-se de forma súbita (em 12 horas), rápida (até 2-3 dias), lenta (superior a 3 dias) ou progressiva (em meses ou anos).
Nesta unidade de texto serão abordados os episódios de perda súbita e rápida da visão.
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Avaliação do doente com perda súbita ou rápida da visão

Anamnese

Salientam-se:
1. Dados da identificação
- sexo
- idade

2. Caracterização do episódio:
- início – tempo de instalação
- duração – transitório, permanente
- atingimento mono ou binocular
- factores desencadeantes – traumatismo, ingestão aguda de álcool, esforço
evolução
- fenómenos visuais associados – dor, inflamação, miodopsias, halos luminosos, fotopsias, alterações campimétricas, dismorfopsia, diplopia, ausência de sintomas acompanhantes
- sinais premonitórios – episódios anteriores de amaurose fugaz, escotomas cintilantes, fotopsias, miodopsias

3. Antecedentes pessoais:
- patologia ocular conhecida, episódios anteriores de perda de visão
- doenças conhecidas – hipertensão arterial, diabetes, dislipidemia, doença cardiovascular, anemia, insuficiência renal, SIDA, sinusite crónica
- hábitos alcoólicos e tabágicos
- ingestão de medicamentos – anticoagulantes, etambutol, antipalúdicos, amiodarona, fármacos que possam causar glaucoma (principalmente nos doentes com ângulo fechado) – simpaticomiméticos, vasoconstritores oftálmicos, ansiolíticos, antidepressivos, antihistamínicos, antiparkinsónicos, antiespasmódicos, atropínicos, anestésicos gerais, psicotrópicos, estimulantes

Exame objectivo

1. Exame das pupilas:
- diâmetro
- reflexos fotomotores
- presença de defeito pupilar aferente
- pupila fixa

2. Avaliação da acuidade visual
- leitura na tabela ocular de Snellen ou em qualquer material impresso
- reconhecimento de objectos
- contagem de dedos
- reconhecimento da cor, luz e movimentos

3. Estudo do campo visual por confrontação

4. Exame do fundo ocular
- verificar se é visualizável
- disco óptico – papiledema, atrofia
- mácula – mancha vermelho-cereja, hemorragias, cicatrizes, alterações de coloração ou reflexo, exsudados (estrela macular)
- vasos – calibre, coloração, êmbolos visíveis, irregularidades de calibre, cruzamentos artério-venosos
- aspecto da retina – brilhante, aspecto baço, cinzento

5. Iluminação tangencial da câmara anterior

6. Palpação das artérias cranianas
- dolorosa
- dimensão aumentada
- perda de pulsatilidade

7. Determinação das respostas óptico-cinéticas

Para além do exame objectivo oftalmológico, devem ser sempre registados e, se possível, controlados os parâmetros vitais.
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Causas de perda da visão não progressiva

  Perda de visão súbita Perda de visão rápida Perda de visão lenta
Alteração dos meios transparentes do olho Ferida perfurante da córnea

Hemorragia do vítreo
Uveíte com hipópion marcado

Hifema (por traumatismo ou após cirurgia ocular)

Hemorragia do vítreo
Opacificação da córnea por cicatrização

Catarata patológica

Fibroplasia retrolenticular do recém-nascido
Alteração da retina, da coroideia ou da circulação oftálmica Retinopatia serosa central

Hemorragia da mácula

Epiteliopatia placóide multifocal posterior aguda

Oclusão da artéria central da retina

Amaurose fugaz
Descolamento da retina com atingimento da mácula

Descolamento da coroideia

Edema macular agudo

Coriorretinite da zona macular

Glaucoma agudo

Oclusão da veia central da retina

Oclusão de ramo arterial ou venoso da área macular

Trombose do seio cavernoso
Descolamento da retina com atingimento tardio da mácula
Alteração da via óptica Secção do nervo óptico

Concussão do nervo óptico

Neuropatia óptica inflamatória aguda

Acidente vascular cerebral
Neuropatia óptica isquémica

Neuropatia óptica inflamatória
Compressão do nervo óptico (por exoftalmia ou outras)

Lesão imunológica do nervo óptico

Compressão do quiasma óptico

Hipertensão intracraniana com evolução para atrofia óptica
Outras Pertrubação de conversão

Simulação de doença 
   

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Abordagem por patologias

Traumatismo, ferida perfurante do olho
A atitude imediata deverá ser a lavagem com soro fisiológico e, eventualmente, a administração local de colírio de antibiótico. No caso de ferida perfurante do olho deve seguir-se a colocação de penso protector, a administração de antibióticos PO e o reforço da vacina contra o tétano. Se o doente referir dor pode ser administrada analgesia PO ou, eventualmente, local. Está contraindicada a utilização de pomadas. A referenciação é urgente.
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Hemorragia do vítreo
O hemovítreo é geralmente monocular. Pode ser acompanhado ou precedido por miodopsias e fotopsias, associando-se, por vezes, ao descolamento da retina. As causas mais comuns são traumatismos, trombose venosa, hemorragia proveniente de neovasos, rasgadura retiniana, retinopatia relacionada com anemia de células falciformes ou outras anemias crónicas e a doença de Eale. Deve ser referenciado ao oftalmologista para exclusão de descolamento da retina associado e eventual realização de vitrectomia cirúrgica.
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Epiteliopatia placóide multifocal posterior aguda
É uma doença binocular que causa lesão cório-capilar junto ao polo posterior, englobando a mácula, originando uma diminuição rápida da acuidade visual. Afecta sobretudo indivíduos jovens, saudáveis, de ambos os sexos. Defendem-se mecanismos etiológicos virais ou imunológicos. A resolução desta patologia é espontânea, com boa recuperação. O diagnóstico é obtido através da anamnese e do aspecto placóide do fundo ocular. A terapêutica pode incluir a administração de antiinflamatórios, corticóides e eventual aplicação de laser.
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Descolamento da coroideia
Habitualmente é secundário a iridociclite grave, glaucoma, hemorragia ou complicação pós-operatória de intervenção ocular com descompressão grave. Geralmente tem bom prognóstico. A terapêutica inclui a administração de antiiflamatórios, corticóides e cicloplégicos.
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Retinopatia serosa central
Ocorre preferencialmente em homens entre os 20-50 anos, causando um quadro idiopático de edema e descolamento da mácula. Tem bom prognóstico, sendo habitualmente transitório, embora possa deixar diminuição da acuidade visual e recorrer com frequência. Pode ser necessário laserterapia.
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Hemorragia da mácula
Associada a doentes com hipertensão arterial, aterosclerose, diabetes, alta miopia, terapêutica anticoagulante ou hemodiálise. O sangue tende a colocar-se entre a superfície da retina e o vítreo, proporcionando uma imagem de nível na fundoscopia. 
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Edema macular agudo
Ocorre por acumulação foveal de fluido extracelular proveniente dos capilares locais. Surge após extracção de catarata com câmara aberta, tracção ou exsudação de neovasos. A hipertensão arterial grave pode provocar um edema retiniano mono ou bilateral, com estrela macular e edema da papila.
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Coriorretinite aguda
Pode envolver a mácula e o vítreo, causando diminuição da acuidade visual. As etiologias mais frequentes são toxoplasma, tuberculose, citomegalovírus, histoplasmose e herpes.
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Descolamento da retina
O aspecto é variável, de acordo com a área lesionada, podendo revelar-se como pequenos defeitos de campo ou diminuição da acuidade visual como “cortina a fechar”, acompanhada ou precedida por fotopsias e miodopsias. Na fundoscopia a retina descolada assume um tom cinzento e opaco. O doente deverá ser colocado em repouso físico e visual. A situação requer referenciação para fotocoagulação ou cirurgia. 
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Glaucoma agudo
É mais frequente nos indivíduos com estreitamento da câmara anterior (familiares de doentes com glaucoma de ângulo estreito, indivíduos de raça negra, diabetes com neovasos no ângulo). A presença de olho vermelho muito doloroso associada a diminuição da acuidade visual, pupila em midríase fixa ovalada, náuseas e halos luminosos sugere o diagnóstico. A atitude imediata visa a redução da pressão intraocular pela administração local de pilocarpina, aproclonidina ou betabloqueantes, acetazolamida PO e analgésicos, seguindo-se referenciação urgente ao especialista. A terapêutica inclui a administração de acetazolamida e manitol EV ou a realização de iridotomia.
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Oclusão da artéria central da retina
Surge como perda súbita e indolor da capacidade de percepção da luz e movimentos, por vezes em doentes com episódios anteriores de amaurose fugaz e cegueira transitória. Entre as etiologias mais frequentes referem-se êmbolos da carótida homolateral, êmbolos cardíacos (sobretudo em homens jovens), trombose local, arterite inflamatória, hematoma local ou traumatismo. Na fundoscopia precoce pode ser observada palidez do disco óptico, acentuação das arteríolas, segmentação da coluna venosa, edema da retina, mancha vermelho-cereja na mácula e, ocasionalmente, um êmbolo na bifurcação de uma arteríola retiniana. A lesão retiniana irreversível surge 1,5 horas após a obstrução, pelo que se deve actuar imediatamente, massajando o globo ocular sobre as pálpebras fechadas, mandando o doente respirar para um saco de papel e administrar acetazolamida, 500 mg EV. O oftalmologista ditará a necessidade de anticoagulantes, antiagregantes ou de paracentese anterior. Mesmo nos casos mais avançados a referenciação é urgente, já que a recuperação parcial da visão pode ser conseguida, embora o prognóstico seja mau.
Na Arterite de Células Gigantes, mais frequente em doentes idosos, a complicação mais temida é a oclusão contralateral com desenvolvimento de cegueira bilateral e irreversível. A palpação da artéria temporal, a associação com cefaleia temporal e o aumento da velocidade de sedimentação permitem a suspeição da doença. É mandatória a terapêutica com corticóides, 1 mg/kg PO. A biópsia da artéria temporal confirma o diagnóstico.
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Oclusão de ramo da artéria central da retina
Esta situação provoca escotoma na área da retina correspondente. A amaurose fugaz é um sinal premonitório frequente.
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Oclusão da veia central da retina
Esta lesão vascular pode provocar perda rápida ou moderada da acuidade visual. É mais frequente em doentes entre os 50-70 anos, em particular se apresentam factores de risco ateroscleróticos, hiperviscosidade sanguínea ou doença cardiovascular. Na fundoscopia observam-se veias dilatadas e tortuosas, edema papilar intenso (em cratera), hemorragias retinianas “em chama de vela” edema retiniano e nódulos algodonosos. A referenciação é urgente, sendo eventualmente necessária a realização de hemodiluição ou terapêutica anticoagulante. No caso de edema da mácula poderão ser administrados corticóides.
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Trombose do seio cavernoso
Apresenta-se como um quadro de dor, olho vermelho, quemosis, exolftalmia e diminuição da acuidade visual. As etiologias mais frequentes são embolia, septicémia e aterosclerose. Referenciação urgente.
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Neuropatia óptica inflamatória aguda, nevrite óptica retrobulbar
É uma inflamação aguda do nervo óptico, geralmente unilateral, com diminuição da visão em horas ou dias e dor com os movimentos e palpação oculares. Surge com maior frequência em doentes jovens (15-40 anos). Deve-se a etiologia idiopática, esclerose múltipla, infecção vírica ou bacteriana toxicidade álcool-tabaco, entre as mais frequentes. A presença de defeito pupilar aferente, escotoma central, discromatopsia vermelho-verde, descoloração ou edema ligeiro da papila apoiam o diagnóstico. Nos casos de lesão idiopática ou por esclerose múltipla está indicada a terapêutica com corticóides (infiltração de cortisona ou PO). Associa-se a bom prognóstico local.
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Neuropatia óptica anterior isquémica
A isquémia anterior do nervo óptico ocorre habitualmente por trombose das artérias ciliares curtas posteriores, em doentes com mais de 50 anos que apresentam hipertensão arterial, dislidémia, diabetes ou Doença de Horton. Ocorre diminuição da acuidade visual ou defeito do campo visual superior ou inferior envolvendo a mácula, indolor, monolateral. O disco óptico mostra-se edemaciado, com hemorragias em chama de vela, seguindo-se a atrofia óptica. Após meses ou anos pode dar-se a repetição contralateral do fenómeno com o desenvolvimento de cegueira bilateral.
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Perturbação de conversão, simulação de doença
Devem entrar no diagnóstico diferencial das verdadeiras urgências oftalmológicas. É frequente o atingimento bilateral, súbito e total. A presença de reflexos oculomotores normais, fundo ocular sem alterações e respostas optocinéticas mantidas sugere o diagnóstico.
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Diagrama para orientação diagnóstica


Perda súbita ou rápida da visão com presença de:








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Conclusão

Todas as situações de perda súbita ou rápida da visão devem ser observadas rapidamente pelo oftalmologista. Nos casos de diagnóstico de oclusão da artéria central da retina, crise de glaucoma ou ferida perfurante do olho, a terapêutica deve ser imediatamente iniciada. Também as situações de perda de visão por traumatismo craniano, trombose do seio cavernoso ou neuropatia óptica, devem ser referenciadas com a maior brevidade possível, ou seja, nas 12 horas iniciais. As situações de hemovítreo, descolamento da retina e oclusão da veia central da retina carecem de referenciação urgente, preferencialmente durante as primeiras 24 horas de evolução. Todas as restantes situações exigem, também, referenciação ao especialista, para orientação adequada.
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