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Parte IV – Problemas clínicos
4.19. Cuidados ao paciente com cancro

490. Mitos, crenças e medos mais comuns
Berta Nunes

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Pombal, Rui


O cancro é uma das doenças mais temidas nas sociedades contemporâneas desenvolvidas, sendo uma doença que de uma forma geral perturba profundamente a vida pessoal e familiar do doente, colocando-o muitas vezes em confronto directo com a morte.

Vários estudos tem tentado aumentar o conhecimento da comunidade científica sobre crenças, atitudes e conhecimentos dos doentes portadores de cancro e da comunidade em geral, de forma a melhorar a abordagem psico-social do doente com cancro, lidar com os seus medos e ansiedades e conseguir desta forma melhorar qualidade de vida do doente e seus familiares.

Um estudo de Chavez R. Leo et al, estudou os conhecimentos e atitudes sobre os factores de risco do cancro da mama em grupos de mulheres Latinas, Anglo – Americanas e médicos de cuidados primários, tendo incluído no grupo das mulheres Latinas as emigrantes Mexicanas Salvadorenhas e Chicanas, concluindo que as mulheres Anglo – Americanas e os médicos entrevistados tinham conceitos comuns sobre os factores de risco para o cancro da mama embora as mulheres Anglo-Americanas acrescentassem a poluição dos alimentos e do meio – ambiente, bem como estilos de vida com alto nível de stress e os implantes mamários como factores de risco que não eram partilhados pelos médicos.

As emigrantes mexicanas e salvadorenhas consideravam que os traumatismos mamários, comportamentos e estilos de vida moralmente condenáveis, ausência de cuidados médicos e a contaminação química dos alimentos como os factores de risco mais importantes para o cancro da mama.

As chicanas (descendentes de emigrantes já nascidas nos Estados Unidos) consideravam como factores de risco importantes alguns comuns às mulheres Anglo – Americanas e outros às emigrantes mexicanas e salvadorenhas sendo tal determinado por influências de ambas as culturas: a Americana e a Latina.

Esse estudo discute as diferenças entre as crenças dos profissionais de saúde e dos potenciais consumidores de cuidados sobre o tema e afirma a importância de reconhecer e estudar estas diferenças, de forma a fornecer cuidados médicos culturalmente mais sensíveis produzir materiais informativos que tomem em consideração as ideias e crenças culturalmente determinadas dos destinatários das acções e sobre a necessidade de educar os profissionais de saúde sobre a diversidade de crenças dos grupos com quem trabalham de forma a melhorar a comunicação entre o médico e o doente.

Um outro estudo de Patrick J. et al estudou as crenças sobre a saúde e o uso de medicinas alternativas em doentes com cancro na mama concluindo que os doentes que usam medicinas alternativas acreditam que o cancro pode ser prevenido através da dieta, redução do stress e alterações ambientais.

No entanto as principais diferenças entre os dois grupos estudados (doentes com cancro da mama que usavam tratamentos alternativos e os que usavam tratamentos convencionais) centravam-se no facto de que o 1º grupo esperava que o médico utilizasse uma abordagem mais holística no tratamento do seu cancro enquanto o 2º grupo de doentes concentrava-se em ideias de destruição das células tumorais, erradicação do cancro e depois continuar com a sua vida como antes.

Os doentes no grupo dos utilizadores das terapias alternativas tinham cancro há mais tempo que os do grupo que apenas usava tratamentos convencionais e afirmavam que as suas ideias sobre o cancro eram de formação recente e tinham sido influenciadas pelo facto de terem a doença, enquanto os do grupo que apenas usava tratamentos convencionais consideravam que as suas crenças eram antigas e tinham sido principalmente construídas na família e pela educação religiosa que tinham tido.

Assim este estudo também mostra que as crenças sobre a saúde e a doença podem mudar com o tempo, como resultado da experiência do doente que tem que viver com a sua doença e tentar encontrar um sentido para a sua experiência.
Assim e dado que o estudo mostra que a saúde e doença não são entidades estáticas, os autores concluem que os clínicos e os pacientes podem beneficiar com a discussão das percepções sobre a doença e o seu tratamento em várias ocasiões durante o curso da doença. Reservar algum tempo para perguntar aos doentes o que pensam sobre a sua doença, o que esperam ganhar com o tratamento e que papel é que o médico deve ter na sua recuperação, pode facilitar um diálogo contínuo entre o doente e o médico, o qual permitirá uma melhor compreensão da experiência de cada doente com a sua doença.

Algumas crenças podem ter efeitos deletérios tanto no diagnóstico precoce como no tratamento atempado do cancro após o seu diagnóstico.
Um estudo realizado por Nunes B. numa aldeia rural de Trás - os - Montes, mostrou que um número considerável de pessoas acreditava que quando o cancro não dá sintomas “ está adormecido “ e não se deve ter qualquer atitude terapêutica “que acorde o que está a dormir” já que tal pode acelerar a evolução da própria doença. Crenças deste tipo são obstáculos ao diagnóstico e ao tratamento precoce dos cancros e é importante que os clínicos tenham conhecimento deste tipo de ideias e as discutam com os seus pacientes quando apropriado.

Um outro estudo realizado na África do Sul por Wright S (1997) estudou a influência da cultura tradicional africana sobre as atitudes, crenças e práticas das mulheres negras com cancro da mama a partir da constatação que após o diagnóstico cerca de 89% destas mulheres abandonaram o tratamento biomédico (cirurgia e radioterapia), seguindo os tratamentos tradicionais. Concluíram que tal se devia à crença de que o cancro era provocado por um veneno que era introduzido no corpo por um feiticeiro contratado por alguém que queria fazer mal ao doente e para tratar este problema era necessário ir a um terapeuta indígena que deveria dar uma bebida especial «imbiza» que o doente devia beber para se curar. Acreditavam também que a cirurgia provocava a disseminação do cancro pelo corpo e que a radioterapia tornava o cancro impenetrável aos «imbiza». Este tipo de crenças podem pois tornar ineficaz qualquer estratégia de combate ao cancro da mama e será necessário discuti-las com as doentes na altura do diagnóstico e da proposta terapêutica. 

Alguns estudos têm investigado os efeitos do nível de informação sobre o bem-estar e a qualidade de vida dos doentes com cancro e a população em geral.
Um estudo de Shulamith K et al que estudou os efeitos psicossociais do nível de informação e da severidade da doença em doentes com cancro da cabeça e pescoço mostrou que os doentes altamente informados funcionavam melhor nas relações interpessoais e tinham mais intimidade com a sua família, mas tinham mais medos, ansiedade e alterações na sua vida, preocupações com a saúde e com os sintomas físicos.

Os doentes medianamente informados tinham maiores níveis de medo, angústia, preocupações com questões médicas, alterações na sua vida e tensões na família que os altamente informados ou pouco informados. Aparentemente sofrem as consequências negativas dos altos níveis de informação mas não as consequências positivas. Este estudo chama a atenção para a necessidade de mais investigação de forma a conseguir transmitir informação aos doentes com cancro que maximize os efeitos benéficos e minimize os efeitos negativos.

Outro estudo realizado na Suécia que pretendeu avaliar o nível de informação sobre o cancro de um grupo de doentes com cancro e um grupo de pessoas saudáveis conclui que a educação formal se correlacionava positivamente com o número de respostas correctas, e que os doentes com maior educação formal eram mais exigentes em relação à informação requerida. As pessoas com baixo nível de educação formal são um grupo que merece uma atenção especial porque têm mais ideias erradas sobre o cancro mas são menos capazes de inquirir os profissionais de saúde directamente sobre o assunto.

Neste estudo 68% dos doentes sabiam qual o tipo de cancro que tinham e a sua localização exacta o que contrasta com um estudo Italiano em que apenas 38% dos doentes com cancro sabiam que sofriam de doença neoplásica.

Os doentes que referiam estar satisfeitos com a informação recebida descreveram essa informação como clara e concisa e outros acrescentavam que a informação fornecida tinha sido útil para reduzir o nível de ansiedade ligada ao diagnóstico de cancro.
No entanto alguns estudos mostram que em certas culturas como a Latina existe a tendência da família de «proteger o doente do sofrimento escondendo-lhe a informação».

Esta atitude cultural deve ser discutida com as famílias de forma a tornar possível a discussão dos factos de uma forma que melhore as relações inter familiares e ajude o doente a adaptar-se à sua doença e a viver com ela de forma mais positiva possível. Este mesmo estudo mostrou, no mesmo contexto cultural, que o conhecimento do diagnóstico do cancro e da possibilidade da morte levou muitos doentes a “aprender a viver” valorizando aspectos do dia a dia a que anteriormente não davam importância. 
Num outro estudo no mesmo contexto realizaram-se entrevistas semi-estruturadas a um grupo de 18 idosos e conclui-se que 71% gostariam de ser informado no caso de lhe ser diagnosticado um cancro. Alguns estudos têm mostrado que apesar da maioria dos doentes com cancro querer ser informado eficazmente sobre a sua doença, uma menor percentagem destes deseja fazer escolhas terapêuticas. Um estudo recente sobre mulheres com cancro da mama mostrou que apesar de 80% das mulheres quererem participar nas decisões terapêuticas, 74% desejavam que os seus médicos fizessem recomendações sobre o plano de tratamento e quando isto acontecia 94% seguia o plano de tratamento recomendado. 76% destas doentes tinham medos específicos sobre o seu cancro como medo de ficar sem o peito, medo da quimioterapia, medo de morrer antes dos filhos crescerem, mas apenas cerca de metade foi capaz de falar sobre estes medos com o seu médico.

De uma forma geral é consensual que os médicos devem informar os / as doentes com cancro de forma a reduzir a ansiedade e a incerteza após o diagnóstico bem como permitir a sua implicação no tratamento. Devem ainda encorajar os/as doentes a falar sobre os seus medos e dúvidas, inquirindo directamente sobre eles se necessário. Ideias culturalmente determinadas e muitas vezes erradas sobre o cancro devem ser explicitadas e discutidas de forma a melhorar a adesão ao tratamento do doente bem como a qualidade de vida e reduzir a ansiedade dos doentes com cancro. No entanto é importante dar a informação de uma forma adequada de forma a maximizar os seus efeitos positivos e evitar os efeitos negativos dessa informação.

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Bibliografia

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Nunes Berta, 1997, O Saber Médico do Povo, Editora Fim de Século

Patrick J et al. J. Cancer Educ. 1996; 11: 226–229.

Schulamith K et al. Psychosocial Effects of Level of Information and 
Severity of Disease on Head and Neck Cancer Patients. J. Cancer Educ 1995; 10: 144-154.

Wright, V.S., S Afr Med J 1997; vol 87 (11): 1540-1543.