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Parte IV – Problemas clínicos
4.19. Cuidados ao paciente com cancro

493. Quimioterapia e radioterapia – noções fundamentais
Cristina Marinho
Ana Raimundo
Maria José Ribas

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Pombal, Rui

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Quimioterapia
A quimioterapia tem como objectivo o tratamento de neoplasias com agentes citotóxicos. Pode ser usada com fim curativo ou paliativo, este último para aliviar os sintomas em doentes com doença disseminada, quando os benefícios excedem os efeitos laterais do tratamento. A utilização racional da quimioterapia implica o conhecimento da cinética tumoral e celular, da farmacologia e dos mecanismos de resistência às drogas.

A cinética celular permite compreender como o ciclo celular interfere no crescimento tumoral e no seu comportamento mais ou menos agressivo. A taxa de crescimento de um tumor é o reflexo da proporção de células em divisão, duração do ciclo celular e da taxa de morte celular. As variações nestes três factores são responsáveis pelas diferentes taxas de crescimento observadas entre os tumores. O ciclo celular das células neoplásicas é qualitativamente semelhante ao dos tecidos normais mas tem uma duração menor. A elevada taxa de crescimento parece ser responsável pela eficácia electiva da quimioterapia sobre as células neoplásicas. Por outro lado, o tecido tumoral tem uma percentagem variável de células em divisão. Quanto maior for este número, maior será a sensibilidade do tumor à quimioterapia. Isto explica porque é que alguns tecidos normais com capacidade de regeneração mais rápida e portanto com maior número de células em divisão são também particularmente sensíveis (medula óssea, mucosa gastrointestinal, folículos pilosos), bem como porque é que um tumor de crescimento rápido é mais sensível e potencialmente curável com a quimioterapia do que um tumor de crescimento lento.

Podemos aumentar artificialmente a taxa de crescimento de um tumor, tornando-o mais quimiossensível, diminuindo a sua massa pela acção da cirurgia ou radioterapia prévias.
Os agentes citostáticos podem ser agrupados segundo a fase do ciclo celular em que actuam. Os agentes não específicos de fase não dependem de nenhuma fase do ciclo celular, pelo que quanto maior a dose de droga administrada, maior a fracção de células atingidas. Embora tenham actividade em células que não estão no ciclo celular, são mais activos naquelas que se dividem mais rapidamente. Alguns (hormonas; antibióticos – doxorrubicina, daunorrubicina, mitomicina, actinomicina) matam células que estão ou não em divisão; outros (agentes alquilantes – ciclofosfamida, clorambucil, melfalan, busulfan) matam células em qualquer fase do ciclo celular.
Os agentes específicos de fase são efectivos apenas numa determinada fase do ciclo 
celular e dependem da dose administrada e do tempo de exposição. A sua eficácia pode ser aumentada pelo aumento do período de exposição ou pela administração repetida da droga em doses mais baixas, permitindo que mais células sejam expostas na fase sensível. São exemplos destas drogas: asparaginase, corticóides, antimetabolitos – citarabina, 5-FU, gemcitabina, metotrexato, fludarabina, inibidor da topoisomerase I – topotecan, hidroxiureia, bleomicina, inibidor da topoisomerase II – etoposideo, estabilizadores dos microtubulos – paclitaxel, docetaxel, despolimerizantes do fuso – vinblastina, vincristina, vindesina, vinorelbina.

A combinação dos agentes citostáticos é normalmente mais eficaz na obtenção de respostas e aumento da sobrevivência do que a sua utilização isolada ou sequencial, pois permite:

1. a prevenção do aparecimento de clones resistentes: a utilização de vários agentes com mecanismos de acção diferentes ou alternando combinações sem resistência cruzada (assim como a cirurgia ou radioterapia para reduzir o tamanho do tumor), teoricamente minimiza a probabilidade de surgirem clones resistentes e aumenta as taxas de remissão e cura.

2. a actuação sobre células em repouso e em divisão: a combinação de agentes não específicos e específicos de fase, permite a morte das células que se dividem lentamente e as que se estão a dividir activamente. As drogas que actuam nas células em repouso também podem ajudar recrutando-as para o ciclo celular, tornando-as sensíveis aos agentes específicos de fase.

3. o aumento do efeito bioquímico citotóxico pela combinação de agentes efectivos que interferem em diferentes passos na mesma via bioquímica ou pela combinação de um agente activo com outro inactivo. Esta combinação pode resultar num efeito positivo por diversos mecanismos: a) aumento intracelular da droga activa ou dos seus metabolitos por aumento do influxo ou diminuição do efluxo; b) redução da inactivação metabólica da droga; c) inibição cooperativa de uma enzima ou reacção; d) inibição dos metabolitos que competem com a droga activa.

4. o acesso a “santuários” da doença por razões de solubilidade ou afinidade das drogas para determinados tecidos.

5. o aumento da segurança: um agente pode prevenir o efeito tóxico da outra droga.
A quimioterapia pode ser usada de forma isolada ou em combinação com a cirurgia e/ou radioterapia.

A resposta à quimioterapia varia com o tipo de tumor e pode definir-se como:
1. completa, se há desaparecimento de toda a evidência de doença num intervalo de tempo específico;
2. parcial, se há redução de pelo menos 50% da soma do produto dos dois diâmetros maiores de todas as lesões, mantida durante pelo menos um ciclo, sem aparecimento de novas lesões;
3. estabilização da doença, se não se observa resposta mas a doença não progride;
4. e progressão da doença, se há desenvolvimento de doença pré-existente ou aparecimento de novas lesões durante o tratamento.

A selecção de drogas para quimioterapia segue os seguintes princípios: a) as drogas devem ser activas como agentes isolados; b) as que induzem respostas completas devem ser preferencialmente incluídas; c) devem ser combinadas drogas com diferentes mecanismos de acção para obtenção de efeitos aditivos; d) devem ser combinados agentes com toxicidades limitantes de dose diferentes, para permitir administrar cada uma delas na dose total; e) devem ser administradas na dose e esquema óptimos, sendo a dose determinada com base na superfície corporal; f) devem ser dadas em intervalos constantes e curtos para a recuperação dos tecidos normais; e g) drogas com diferentes mecanismos de acção devem ser combinadas para evitar a resistência cruzada.

Os tecidos podem apresentar dois tipos de resistência à quimioterapia. A resistência transitória deve-se às condições locais de irrigação, hipoxia e “santuários” farmacológicos. As células em fase G0 são também mais quimio-resistentes. A resistência definitiva é normalmente consequência de mutações. A resistência ocorre por mutação ao acaso e a probabilidade de ela surgir depende do número de células. Aparece precocemente na história natural da doença e explica a relação inversa entre a curabilidade e a massa tumoral. Linhas celulares resistentes podem já existir no momento da aplicação inicial da quimioterapia (resistência primária) ou desenvolverem-se no decorrer do tratamento. 

Os mecanismos bioquímicos e celulares implicados na resistência às drogas incluem: a) a sua diminuição intracelular; b) a diminuição da activação ou aumento da inactivação; c) o aumento da eficácia de reparação do ADN, proteínas ou membranas lesados; d) a alteração quantitativa ou qualitativa dos alvos da droga; e e) a alteração da expressão genética celular.

Os mecanismos de resistência «in vivo» incluem: a) barreiras anatómicas à entrada da droga (“santuários”); e b) interacções hospedeiro-droga: aumento da inactivação pelos tecidos normais; diminuição da activação da droga pelos tecidos normais; aumento da sensibilidade de tecidos normais à droga (toxicidade).
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Radioterapia
A radioterapia consiste na aplicação de uma determinada dose de radiação ionizante sobre um tecido biológico com intenção terapêutica. Visa a morte das células malignas, preservando tanto quanto possível os tecidos sãos, com um mínimo de complicações. À semelhança da cirurgia e da quimioterapia, a radioterapia tem indicações e contra-indicações definidas para a sua aplicação clínica. Pode ser usada isoladamente ou em combinação com outro método, e pode ter intenção curativa, paliativa ou de alívio sintomático. Uma das grandes vantagens da sua utilização relaciona-se com o facto de estar menos dependente do estado geral do doente.

A prática empírica da radioterapia proporcionou um conhecimento preciso das doses necessárias e suficientes para a cura local do tumor e as observações clínicas permitiram conhecer as doses de tolerância dos tecidos sãos. O risco de complicações aumenta proporcionalmente em função da dose e do volume de órgão irradiado. Assim, na ausência de outro tratamento mais eficaz, a radioterapia será a terapêutica indicada, pese o risco calculado de complicações.

A radioterapia diz-se conformacional, quando o volume de tecido que recebe a dose de radiação corresponde tanto quanto possível ao volume da lesão em três dimensões, reduzindo assim de forma considerável a dose recebida pelos tecidos sãos vizinhos. 
No início da utilização da radioterapia, a dose de radiação a fornecer era administrada na totalidade numa sessão. No entanto alguns aparelhos não o permitiam, pelo que se teve de recorrer ao fraccionamento da dose administrada. A radioterapia fraccionada fundamenta-se na constatação de que a divisão das doses reduz a lesão dos tecidos sãos.

Existem vários tipos de radiação: 
1. Radioterapia externa – a fonte emissora de radiação é externa ao indivíduo;

2. Curieterapia – implantação de agulhas ou sondas no interior do tumor ou cavidade natural (ex. útero). A curieterapia adquiriu uma maior precisão terapêutica, ainda que limitada a lesões acessíveis e de pequeno volume, nomeadamente do colo uterino, pele, cavidade oral, orofaringe, e mama. À curieterapia acresce ainda a vantagem de possibilitar uma dose de radiação elevada junto da fonte, e portanto do tecido a irradiar, que diminui com a distância, com franca diminuição das complicações a nível dos tecidos vizinhos.

3. Radioterapia metabólica – injecção de fonte radioactiva na circulação, posteriormente fixada pelas células neoplásicas (ex. I131 no carcinoma da tiróide);

4. Radioimunoterapia – isótopos radioactivos são aclopados a anticorpos monoclonais contra antigénios das células malignas.

A dose utilizada é condicionada pelo volume, extensão, histologia do tumor, e objectivo – curativo ou paliativo – do tratamento.

A radioterapia diz-se:
1. de intenção curativa, quando tem por objectivo a destruição de todas as células malignas e portanto, a cura. Pode ser: a) radical, usada isoladamente e só possível nas formas localizadas, como nos tumores do foro ORL, estádios I e II da doença de Hodgkin e linfomas linfocíticos, e carcinoma do colo do útero e vagina; b) pós-operatória, para esterilização das células malignas que possam estar no leito tumoral ou nos bordos da ressecção, evitando as recidivas locais, e aumentando assim a probabilidade da cura. É especialmente útil nos tumores do foro de ORL, no carcinoma da mama, pulmão, esófago, recto, endométrio e sarcomas; c) pré-operatória, para evitar a implantação de células malignas viáveis disseminadas no momento da cirurgia (ex. carcinoma da bexiga), tornar ressecável um tumor, de outro modo inoperável (ex. carcinoma do recto ou da mama) ou reduzir o volume tumoral por forma a evitar cirurgias longas e mutilantes; d) em associação com a quimioterapia, quando aplicada sobre uma grande massa tumoral de um cancro altamente quimiossensível (ex. doença de Hodgkin ou seminoma). O tratamento de alguns carcinomas do canal anal com cirurgias de ressecção altamente mutilantes foi substituído pela radioterapia em associação com quimioterapia, permitindo a preservação do órgão e melhor qualidade de vida dos doentes, sem prejuízo no que respeita a sobrevida ou ao controle local da doença.

2. paliativa, se usada nos tumores considerados incuráveis, cujo controle local é vantajoso para o doente. São exemplo os tumores do uréter, esófago, brônquio, vasos linfáticos ou sanguíneos e carcinoma do recto.

3. sintomática ou de urgência, se tem por finalidade tratar um sintoma alarmante ou incapacitante, como a dor, hemorragia, edema, ulceração tumoral, alteração neurológica, risco de fractura óssea ou compressão medular.

A morte celular induzida pela radioterapia resulta na maioria dos casos de alterações produzidas a nível do ADN, com a consequente interrupção do processo replicativo – morte reprodutiva. A morte directa das células – morte de interfase – resulta da alteração da metabolismo ou estrutura celular, e o seu efeito torna-se mais evidente em células com grande sensibilidade à radiação (ex. linfócitos, ovócitos).

O resultado final da radioterapia relaciona-se com a capacidade de indução de lesão/morte celular e a radiossensibilidade/radiocurabilidade do tumor. A radiossensibilidade diz respeito à lesão pela radiação ionizante. Quando a radiação é constituída por fotões, verifica-se uma variação da radiossensibilidade ao longo do ciclo celular, com resposta máxima na fase tardia de G2 e precoce de M. Com o uso de outras radiações (cone de neutrões, piões e iões pesados) e dos aceleradores lineares de alta energia, a variação da radiossensibilidade ao longo do ciclo celular é pequena. A radiocurabilidade relaciona-se sobretudo com a localização e extensão do tumor, o seu comportamento biológico, e factores relacionados com o portador, do que a radiossensibilidade.

A resposta clínica à radioterapia é ainda condicionada por diversos factores como sejam: o volume tumoral, o seu tipo histológico, a sua morfologia e oxigenação. Quanto menor for o tumor, maior será a dose necessária de radiação para o esterilizar. Os tumores vegetantes são mais sensíveis que os infiltrativos, provavelmente em relação com a sua maior vascularização e oxigenação. A hipoxia constitui um importante condicionante da resistência à radioterapia já que triplica a dose de radiação necessária para obtenção do mesmo efeito, o que explica a radioresistência dos tumores necrosados. Assim se compreende que a presença de anemia pode comprometer a taxa de curabilidade.

A compreensão dos diversos factores condicionantes da resposta à radioterapia deixou em aberto uma área de investigação, na procura da forma de intervir em cada um desses factores modificáveis tendo em vista um aumento da eficácia, com uma cada vez maior precisão terapêutica.
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