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Parte IV – Problemas clínicos
4.19. Cuidados ao paciente com cancro
495. «Follow-up»
Maria João Queiroz
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Pombal, Rui

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Introdução

Um doente tratado a uma neoplasia é uma pessoa com mais riscos do que qualquer outro sem este antecedente. Os riscos prendem-se com a probabilidade de readoecer da mesma causa, de sofrer de complicações secundárias à terapêutica, de ter doenças intercorrentes associadas aos mesmos factores de risco da neoplasia tratada, e ainda riscos decorrentes dos problemas psicossociais ligados à doença.

O diagnóstico precoce e o tratamento mais eficaz aumentam a sobrevida por cancro e prolongam o intervalo livre de doença. Nos EUA, mais de 50% dos doentes oncológicos obtêm cura clínica.

A cura em oncologia é uma noção estatística, dado que um doente só está curado quando a sua esperança de vida se sobrepõe à de uma população testemunha idêntica e sem cancro. À medida que o tempo passa, o risco de recaída é menor e para verificar a remissão completa é preciso deixar passar o tempo. A incapacidade técnica de detectar a doença residual infraclínica com fiabilidade, obriga a estabelecer um programa de vigilância pós-terapêutica.
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Princípios
Há princípios orientadores na vigilância pós-terapêutica. O seu princípio fundamental é a abordagem clínica, com o objectivo de evidenciar um sintoma revelador, que traduza directa ou indirectamente, uma complicação iatrogénica ou uma recidiva. 

A detecção de sinais de recidiva no intervalo de consultas programadas, é feita habitualmente pelo doente, pelo que a sua participação activa pode melhorar o prognóstico e facilitar a sua reinserção a todos os níveis.

A vigilância deve ser fundamentada pelo contexto patológico da doença. Neoplasias em estádios diferentes ou de prognóstico diferente poderão determinar protocolos de seguimento distintos, dado que é possível determinar acontecimentos previsíveis a que cada doente está exposto, e as suas repercussões na sobrevida.

A avaliação global do doente é fundamental. Cerca de metade dos doentes oncológicos tem mais de 65 anos, o que significa grande probabilidade de sofrer de polipatologia, a necessitar de igual programa de cuidados.

Um outro aspecto que deve ser tido em conta é o benefício que advém do «follow-up». É preciso pesar o ganho em qualidade de vida e em sobrevida, em contraponto com as perdas em efeitos indesejáveis, em gastos supérfluos, em exames complementares excessivos, que servem apenas para iludir o médico e o doente.

Apesar das recidivas se manifestarem quase sempre no intervalo das consultas, não é rentável diminuir este espaço, dado correr-se o risco de aumentar os custos ligados ao tempo médico e aos exames a pedir, sem benefícios adicionais. A periodicidade desta avaliação é um pouco teórica, dependente de vários factores, entre os quais a frequência das recidivas -mais frequentes nos primeiros 2 a 3 anos após o tratamento-, a agressividade do tumor, o tempo de recuperação das reacções pós terapêuticas e a readaptação do doente. 

Para a maioria dos tumores malignos, as consultas têm uma periodicidade trimestral ou semestral, nos primeiros 2 anos, passando a semestral ou anual até aos 5 anos, mantendo-se anual a partir de então.
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Objectivos

A vigilância pós-terapêutica tem múltiplos objectivos, de que se destacam:

Rastrear recidivas – Assegurar a remissão implica diagnosticar uma recidiva curável, preferivelmente antes da sua emergência clínica. Estas recidivas podem surgir após terapêutica conservadora ou no território operado ou irradiado, após tratamento radical. As cicatrizes de mastectomia; a cúpula vaginal pós histerectomia total, a anastomose cólica, entre outras, são alguns desses locais, em que a intervenção terapêutica curativa pode ser eficaz.

O exame clínico é obrigatório, deve ser feito de forma cuidada, orientando o interrogatório para a pesquisa de sintomas e sinais, tendo em conta a localização e o tropismo da neoplasia. Deve ser dada especial atenção às recidivas locais e ganglionares e feita uma avaliação do estado geral, em que o peso deve ser tido em conta. O doente deve ser informado sobre os sinais de alerta, assim como estimulado e ensinado a fazer o auto-exame de algumas áreas anatómicas.

Não tem interesse a pesquisa de metástases, na ausência de sintomas específicos. Não há benefício em tratar precocemente metástases pré-sintomáticas, visto esta medida não alterar o prognóstico, dada a fase de incurabilidade da doença

Os exames complementares de diagnóstico devem ser pedidos de forma racional e coerente, tendo em conta alguns princípios: o resultado do exame deve ser fiável e esclarecedor, deve acrescentar informação à clínica e ter um impacto na terapêutica e no prognóstico do doente.

Rastrear segundas neoplasias – As segundas neoplasias podem dever-se entre outros, aos efeitos cancerígenos das terapêuticas anteriores; aos efeitos de factores de risco comuns a vários tumores; à susceptibilidade do indivíduo.

O tratamento anticanceroso actual aumentou a sobrevivência dos doentes com diferentes tipos de cancro, habitualmente à custa de terapêuticas muito agressivas. É preciso avaliar as complicações dos tratamentos a longo prazo que, por vezes, só se manifestam décadas depois.

As segundas neoplasias são no entanto mais frequentes nos órgãos pares, sobretudo na mama. O cancro contra lateral da mama constitui cerca de 50% de todas as segundas neoplasias.

A existência de uma neoplasia dependente de um factor de risco comum a outras localizações neoplásicas obriga a vigilância mais atenta dos terrenos em risco.

Promover a reabilitação – A reabilitação em oncologia pretende optimizar a capacidade funcional após o tratamento, dar o suporte psicológico ao doente, fazer o aconselhamento profissional e promover a sua reintegração familiar e social.

Os efeitos psicológicos no doente dependem do estádio da doença. Estádios precoces com sequelas mínimas pós-terapêuticas têm a reintegração facilitada. No extremo oposto, encontram-se os doentes com doença incurável, que têm dificuldade desde o início, em aceitar o diagnóstico, podendo manifestar sintomas de angústia e depressão. Os problemas de reabilitação são dominantes nos doentes mais jovens.

Embora o período pós diagnóstico seja de maior stress, no «follow-up» o doente confronta-se sempre com a incerteza dos resultados. Assim, o seguimento sistemático pode tornar-se desconfortável, física e psicologicamente. Grande parte dos doentes sente-se aliviada por ultrapassar mais uma etapa, sempre que numa nova consulta de seguimento lhe é assegurado que tudo está bem. 

A capacidade funcional fica muitas vezes comprometida após a terapêutica. As mutilações cirúrgicas – mastectomia, estomas digestivos e laríngeos – são as sequelas mais frequentes.

A reeducação motora deve ser um complemento da mulher mastectomizada. O compromisso do retorno linfático após esvaziamento axilar ganglionar, pode condicionar edema do braço. É uma situação difícil de tratar, habitualmente de agravamento progressivo. Para além da fisioterapia precoce de drenagem com pressoterapia associada, a mulher deve ser estimulada a manter uma mobilização activa do membro, tão precoce quanto possível, e ser informada dos exercícios a praticar. A entrega de um panfleto ilustrativo pode ajudá-la. Faz também parte da prevenção do linfedema. a prevenção das infecções. Estas podem ser evitadas se a mulher seguir os seguintes conselhos:
1. usar luvas na jardinagem;
2. usar luvas duplas (algodão e borracha) nas actividades domésticas (manipulação de palha-de-aço, esfregão de arame, etc.);
3. usar dedal para costurar;
4. desinfectar pequenas feridas;
5. usar máquina de depilação;
6. não cortar as peles das unhas;
7. não usar relógio, pulseiras ou anéis do lado operado;
8. não levar injecções, tirar sangue ou medir a TA do lado operado;
9. prevenir as queimaduras domésticas e solares.

Deve ser restringida a prática de algumas actividades de lazer, como seja a malha e a renda, por poderem agravar o edema. A mulher deve fazer períodos de repouso, e quando sentada, manter o membro em posição elevada.

A actividade física em geral pode contribuir para ajudar psicologicamente o doente, melhorar o seu apetite, regularizar os hábitos intestinais e o sono. Devem ser encorajadas actividades como passear, fazer jardinagem ou «bricolage», assim como a prática desportiva regular, como a natação. O mergulho está contra-indicado nos portadores de estomas.

Viajar é também uma actividade recomendada, mas alguns itinerários de viagem são desaconselhados, nomeadamente os países com febre-amarela endémica, dada a contra-indicação de vacinar doentes oncológicos com vacinas virais vivas. 

As vacinas mortas não são contra-indicadas, assim como a BCG. São recomendadas as vacinas antigripais anuais a todos os doentes oncológicos.

À alimentação equilibrada, deve associar-se uma boa higiene buco-dentária, com fluoração dentária suplementar nos doentes que foram sujeitos a irradiação da cabeça ou pescoço.

A sexualidade está muitas vezes comprometida por causa da doença e da terapêutica. São as neoplasias da mama e do aparelho genital que mais interferem com este aspecto. 

As reacções à mastectomia diferem de mulher para mulher, dependendo da idade, do nível sociocultural e do contexto familiar. Esta mutilação significa para a mulher a perda da sua identidade sexual e provoca alterações na sua imagem corporal. Estes aspectos têm reflexos na relação conjugal.

A reconstrução mamária favorece a reabilitação psicológica e afectiva, assim como o aspecto estético e de conforto diário.

A situação após tratamento a cancro do colo do útero raramente impede as relações sexuais, mas a perturbação que induz a esse nível, relaciona-se com receios do parceiro ou ao desconforto feminino devido a secura vaginal por vaginite atrófica pré-existente, agravada pela radioterapia, ou por vaginite radiógena. As queixas podem melhorar com a aplicação local diária ou em dias alternados de promestrieno.

No homem, as perturbações mais frequentes são induzidas pela cirurgia abdominoperineal, conduzindo quase sempre à impotência, atenuada pela utilização de sildenafil ou por colocação de prótese do pénis.

A contracepção é um aspecto a não descurar, nas mulheres em idade fértil. A contracepção hormonal é a mais simples e eficaz para a maioria das mulheres, à excepção das doentes com cancro da mama, para quem a proposta mais segura é a colocação de DIU.

A gravidez, embora não recomendada, não tem contra-indicação absoluta na doença oncológica, sobretudo para mulheres jovens, com neoplasias de bom prognóstico e em remissão pelo menos há 2 a 3 anos. A gravidez não altera o prognóstico da doença.

Os problemas socioprofissionais atingem cerca de 30% dos doentes oncológicos. A doença obriga habitualmente a meses de absentismo, provocando a desinserção social do doente. O regresso ao trabalho deve ser avaliado pelo médico hospitalar, pelo médico de família e sobretudo, pelo médico do trabalho, que melhor conhece as condições do posto de trabalho do doente.

Independentemente dos reflexos da doença sobre o trabalho, o doente pode ter direito à atribuição de uma incapacidade, que sendo igual ou superior a 60%, lhe dá regalias fiscais e sociais.

Avaliação de resultados – Muitos tratamentos fazem parte de protocolos terapêuticos enquadrados em estudos de investigação, pelo que a recolha de dados é imprescindível no «follow-up».
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