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Parte IV – Problemas clínicos
4.4. Abordagem do paciente com problemas digestivos
226. Doença hemorroidária
J. Gabriel Rodrigues
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

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Melo, Miguel


Geralmente incorre-se em dois erros de interpretação quando se fala em hemorróidas. O primeiro é dar ao termo um conceito lato, classificando como hemorróidas qualquer sintoma ou conjunto de sintomas que surjam na região ano-rectal, quer seja o prurido, a dor ou a perda de sangue com a defecação. O segundo erro é considerar as hemorróidas como sendo apenas veias dilatadas. É importante esclarecer estes pontos. Uma classificação que em princípio pode ser considerada válida, é a de hemorróidas externas e internas. As chamadas hemorróidas externas não são mais do que uma coagulação intravascular perianal. Nunca há perda livre de sangue. A seguir a um esforço, a um ataque de tosse ou à defecação surge subitamente uma saliência semiesférica, às vezes bastante dolorosa, na margem do ânus. É uma trombose hemorroidária externa. Uma pequena incisão em anestesia local com enucleação do coágulo é a terapêutica de eleição. Repouso, utilização de antiálgicos, anti-inflamatórios e heparinóides são a alternativa terapêutica. O coágulo reabsorve-se em regra no prazo de três semanas, deixando uma pequena excrescência na pele, chamada marisca. Uma desvantagem, se não houver incisão, é que a pele sobre o trombo pode necrosar e ulcerar dando saída espontânea ao coágulo desfeito, mas ficará uma fístula que só tem cura cirúrgica.

Completamente diferente é o quadro clínico das hemorróidas internas, que são fundamentalmente hiperplasias vasculares dependentes das artérias. Estas hemorróidas internas desenvolvem-se apenas nos sítios em que os três ramos da artéria hemorroidal superior penetram na região do limite superior do canal anal. A artéria hemorroidal superior é um ramo da artéria mesentérica inferior que se divide em dois ramos principais: um ramo esquerdo que atravessa a parede do recto, no doente em posição de litotomia, pelas 3 horas e um ramo direito que se divide em 2 ramos mais pequenos que atravessam a parede do recto respectivamente pelas 7 e 11 horas.

Apenas nestes sítios é que surgem os chamados nódulos hemorroidais, cujo grau de desenvolvimento é variável de um para outro e em muitos casos apenas um é que está bem desenvolvido. Nos indivíduos predispostos dá-se o desenvolvimento progressivo dos três nódulos, com o decorrer dos anos. Quando, num caso de hemorróidas, se retira lentamente o proctoscópio depois de o ter introduzido completamente podem-se observar bem os três nódulos, de um vermelho intenso - não da cor do sangue venoso - a caírem para dentro do campo de visão do proctoscópio. O quadro clínico das hemorróidas internas é dominado por dois sintomas cardinais: a perda de sangue vermelho-vivo, não dolorosa, e o prolapso. Na base destes sintomas costuma-se classificar as hemorróidas internas em três estádios ou graus. O doente com hemorróidas internas do 1.º grau não se queixa de dores, ele refere apenas a perda de sangue pelo ânus após a defecação; é sangue vivo que às vezes é visto em cima das fezes e outras vezes respingando as paredes da sanita. É este pois o único sintoma das hemorróidas do 1.º grau pois que os nódulos não podem ser vistos do exterior e são tão moles que não oferecem resistência ao dedo no toque rectal. No estádio seguinte, as hemorróidas do 2.º grau, os nódulos internos prolapsam durante a defecação mas retraem-se imediatamente a seguir. Rigorosamente, estes nódulos já não sangram, no entanto um doente com hemorróidas do 2.º grau sangra quase sempre visto que nem todos os nódulos passaram ao segundo estádio, um ou outro ainda é do 1.º grau e portanto sangra. A evolução do 1.º para o 2.º grau dá-se com uma transformação fibrosa dos nódulos devido aos traumatismos a que estão sujeitos no acto de defecar durante meses e até anos. Neste estádio, a sintomatologia é pois mais rica. O dedo já pode então palpar estes nódulos endurecidos e ao proctoscópio eles podem apresentar na sua cúpula cicatrizes brancas. Sem tratamento, a evolução continua para o estádio seguinte, o das hemorróidas do 3.º grau. O que caracteriza este estádio é o prolapso dos nódulos para fora do canal anal durante a defecação mas agora eles já não se retraem espontaneamente; o doente tem de fazer a sua reposição com o dedo. Às vezes o nódulo fica permanentemente fora do canal anal e devido aos traumatismos a que está compreensivelmente sujeito, a sua mucosa sangra, o que de resto não acontece neste estádio. Pode haver prurido devido a um eczema da pele do ânus onde também se podem implantar fissuras dolorosas. Devido à extrema sensibilidade dolorosa da pele do ânus, as dores, às vezes muito intensas, estão sempre presentes. No entanto, os doentes com um esfíncter laxo não apresentam dores. A complicação mais grave das hemorróidas do 2.º e 3.º graus é o prolapso hemorroidário irredutível. A seguir a um esforço, às vezes banal, surge subitamente uma dor muito intensa a que o doente chama um «ataque de hemorróidas». Há um grande edema da pele do ânus apenas de um lado ou então dos dois lados, observando-se neste caso como que dois lábios no lugar do orifício anal. Devem-se evitar manobras de redução do prolapso pois elas são muito dolorosas. Com repouso, antiálgicos, tranquilizantes, anti-inflamatórios, heparinóides, laxativos e antibióticos em caso de febre, o edema desaparece em cerca de 14 dias e com ele as dores. Depois terá lugar o tratamento próprio das hemorróidas.

A doença hemorroidária só requer tratamento se apresentar sintomas. A existência de hemorróidas assintomáticas ou excreções da pele perianal, independentemente do seu tamanho, não são uma indicação para tratamento. O tratamento médico da D.H. inclui a regularização do hábito intestinal através da ingestão regular de fibras e de líquidos abundantes, evitando que o doente faça esforços defecatórios excessivos. Quando necessário, pode ser útil o recurso a laxantes não irritativos como as mucilagens ou os laxantes osmóticos (lactulose, lactilol, hidróxido de magnésio). Nos cuidados dietéticos dever-se-ão excluir as especiarias (pimenta, pimentão, mostarda, piripiri, etc.), os enchidos, azeitonas e bebidas alcoólicas. Na experiência do autor, as azeitonas parecem ser o único alimento não tolerado por todos os seus doentes; de resto é imprevisível a susceptibilidade alimentar individual, pelo que se deve aconselhar o doente a abster-se daqueles alimentos que ele próprio relaciona com o desencadear das crises. Também deverá ser feita uma revisão dos hábitos de vida: o sedentarismo extremo, as longas viagens de automóvel favorecem a congestão dos pedículos hemorroídários. A equitação e o ciclismo são desportos que poderão dificultar as tentativas terapêuticas.

Os medicamentos flebotónicos (diosmina, hidrosmina, rutosídeos, escina) poderão ser eficazes quando dados em doses elevadas dum modo transitório, principalmente nas crises congestivas e nas rectorragias. Os anti-inflamatórios estão indicados nas manifestações de trombose com edema. O tratamento sintomático com tópicos anti-hemorroidários que são medicações de contacto utilizadas quer sob a forma de pomadas e supositórios ou tampões anais, tem grande importância na medicina geral e familiar. Quase todos eles contêm substâncias com propriedades anestésicas locais (lidocaína, cinchonina), anti-inflamatórias (corticóides), princípios activos de efeito flebotónico (tribenosido, ruscogeninas, ácido metacresosulfótico) e heparinóides. Alguns tópicos anti-hemorroidários contém também óxido de zinco, óleo de peixe, vitamina A, sucralfato, sais de bismuto. A avaliação científica da eficácia terapêutica dos tópicos hemorroidários é pouco conclusiva, no entanto muitos doentes referem um grande benefício com a sua utilização. Os doentes devem ser aconselhados a não usar corticosteróides tópicos por períodos de tempo prolongado. O alívio das queixas é imediato, mas a longo prazo o seu uso é prejudicial.

No tratamento da dor recorre-se aos analgésicos puros (paracetamol, metamizol) adicionalmente aos anti-hemorroidários tópicos contendo anestésicos locais.

O tratamento causal da D. H. é adaptado ao grau das hemorróidas. Nas hemorróidas do 1.º e 1.º- 2.º graus, sangrantes, utiliza-se a escleroterapia e a ligadura elástica. A fotocoagulação com infravermelhos e a crioterapia são pouco usadas. A sua selecção é feita de caso a caso. Os doentes com hemorróidas do 3.º e 2.º- 3.º graus, com prolapso, são tratados cirurgicamente, com a hemorroidectomia. Um dos processos mais dolorosos da região anal é a fissura anal, situada geralmente na linha média. A sua localização mais frequente é na comissura anal posterior. As fissuras situadas lateralmente são devidas a doença inflamatória intestinal, tuberculose ou outro processo patológico. O sintoma principal é a dor que se inicia durante a defecação, mas que rapidamente se pode tornar insuportável e durar várias horas. Os doentes modificam os seus hábitos de defecação, impedindo-a durante vários dias e agravando a obstipação. A ingestão permanente de laxantes é frequente. Esta dor típica diferida é devida ao espasmo esfincteriano. A rectorragia é um sintoma menos comum e é em regra de pequena quantidade. É em geral sangue vermelho-vivo, que pode ficar a pingar após a defecação. Por vezes o doente refere apenas sangue no papel. O espasmo esfincteriano impede quase sempre a introdução do dedo ou do anuscópio e é necessário muito cuidado ao realizar o exame proctológico. Ao afastar as nádegas observa-se a marisca sentinela e a fissura aparece como um pequeno sulco triangular que se inicia na base da marisca e se prolonga para o interior do canal anal. Evitar a obstipação é a medida terapêutica conservadora mais importante. Desde que seja evitado o traumatismo do canal anal pela passagem de fezes duras, um grande número de fissuras cura. As pomadas anestésicas/cicatrizantes ajudam a aliviar a dor e a reduzir o espasmo do esfíncter. Devem ser usadas antes e após a defecação. O seu uso excessivo, devido ao efeito irritante sobre a pele, pode manter e até complicar a fissura. Tópicos com propriedades cicatrizantes (sucralfato, vitaminas A+D, óxido de zinco, etc.) poderão ser mais úteis. Em casos menos complicados a terapêutica farmacológica pode provocar um alívio rápido das queixas do doente e muitas fissuras curam espontaneamente em 2 a 3 semanas. Há no entanto situações de fissuras recentes que necessitam de tratamento cirúrgico precoce, nomeadamente quando a dor é tão intensa que o doente não a tolera. O tratamento cirúrgico – dilatação anal ou esfincterectomia do esfíncter interno – resolve definitivamente o problema. 

O abcesso do ânus é a manifestação aguda do percurso crónico de uma fístula. O abcesso é fácil de diagnosticar pelos seus sinais clínicos típicos. Manifesta-se com dor viva e permanente, sem exacerbação com a defecação e temperatura por vezes elevada. Nos casos mais avançados a região perianal está tumefacta e a pele é de cor rosada ou vermelha, bastante dolorosa. O abcesso, uma vez diagnosticado, constitui uma urgência cirúrgica. A prescrição de antibióticos só retarda a terapêutica definitiva: a incisão e drenagem.

As fístulas ano-rectais são comunicações não naturais entre a pele e o canal anal ou o recto. Pode-se suspeitar de uma fístula quando há história de secreção purulenta por um orifício na margem do ânus após um ou vários abcessos drenados espontânea ou cirurgicamente. Com facilidade verificamos a presença do orifício externo por onde se faz a drenagem do pus, por vezes com sangue e até fezes.
O tratamento das fístulas ano-rectais é exclusivamente cirúrgico e segue o princípio fundamental de preservar a continência anal.

As doenças ano-rectais de transmissão sexual (D.T.S.) provocam sintomas que o doente identifica com hemorróidas. A mais frequente é a papilomatose anal – condilomas acuminados – provocados pelo vírus do papiloma humano (V.P.H.). Embora nos homossexuais se considere uma doença venérea, ela pode observar-se na ausência de qualquer contacto sexual. Outras DTS são o herpes, a gonorreia, a sífilis (lesão ulcerosa, em regra de bordos duros e bem definidos, localizada na margem anal e que se acompanha de adenopatia inguinal) e a infecção por Chlamydia.

As afecções ano-rectais mais frequentemente encontradas nos doentes com SIDA são os condilomas anais, com risco aumentado de malignização, e as ulcerações anais dolorosas. Estas podem estar associadas a infecções com o vírus do herpes simplex (VHS) e o citomegalovírus. Numa considerável percentagem de casos não se consegue isolar o agente etiológico nos exames culturais e nas biopsias, e assim consideram-se como idiopáticas, ligadas à própria infecção pelo HIV. Os abcessos e as fístulas anais podem levantar problemas mais complicados nestes doentes. Há também uma maior incidência de neoplasias ano-rectais: sarcoma de Kaposi, linfoma não-Hodgkin e carcinoma anal associado à infecção pelo vírus do papiloma.
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