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Parte IV – Problemas clínicos
4.4. Abordagem do paciente com problemas digestivos
229. Neoplasia hepática
Conceição Outeirinho
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Outeirinho, C;
Melo, Miguel

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Introdução
As neoplasias hepáticas, embora sejam patologias raras na nossa prática clínica, merecem uma atenção especial, visto que são muitas vezes silenciosas ou estão subjacentes a problemas de saúde mais floridos. Assim o médico deverá estar atento, para rapidamente poder orientar e promover a abordagem terapêutica adequada a cada caso.
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Tumores benignos
O adenoma hepato-celular, o hemangioma e hiperplasia nodular focal são as neoformações benignas mais comuns. Outras, como os adenomas do ductos biliares, os cistoadenomas e os hemangioendoteliomas juvenis aparecem raramente.
O adenoma hepato-celular, único ou múltiplo é encontrado predominantemente na mulher na terceira a quarta década. Há autores que referem que na base da sua patogénese estará a influencia hormonal, baseando-se no facto de ser uma neoplasia com predominância no sexo feminino, ter aumentado a sua incidência desde que os anticoncepcionais orais foram introduzidos e ser diagnosticado em doentes que na sua maioria estiveram sob terapêutica hormonal. 
Clinicamente pode apresentar-se com dor no hipocôndrio direito (geralmente sobre o lobo hepático direito) e massa palpável na mesma região. Em situações menos frequente, e devido a hemorragia intratumoral, poderá aparecer um quadro de dor e colapso circulatório. O diagnóstico é feito principalmente pela ecografia e/ou TAC. Outras técnicas poderão ser necessárias (arteriografia hepática selectiva, radioisótopos, etc.) para uma investigação mais detalhada em função da decisão terapêutica a desenvolver. Só 10% destes tumores evoluem para a malignidade, no entanto este risco aumenta se se tratar de um adenoma múltiplo.
A abordagem terapêutica deverá passar por, eventual suspensão de terapêutica hormonal, se a lesão for grande (dimensão superior a 8 ou 10 cm) e se o tumor se localizar perto da superfície deverá ser proposta cirurgia. Todas as mulheres em idade fértil com este achado deverão evitar engravidar devido ao alto risco de ruptura que estas lesões apresentam.
Os hemangiomas são os tumores benignos mais comuns com uma prevalência na população em geral de 0,5 a 7% ocorrendo principalmente em mulheres. São, na sua grande maioria, assintomáticos e diagnosticam-se acidentalmente aquando da realização de exames complementares de diagnóstico imagiológico por qualquer outro motivo. Não necessitam ser removidos, excepto se forem de dimensões alargadas produzindo um efeito de massa. As complicações hemorrágicas são raras. Não evolui para a malignidade.
Hiperplasia nodular focal – também estas neoformações são achado ocasional durante uma cirurgia ou laparoscopia, São também mais frequentes nas mulheres, embora aqui não pareça estar relacionada com a influência hormonal. Tipicamente é um tumor sólido aparecendo frequentemente no lobo direito. As complicações como a necrose, evolução maligna e hemorragia são raras, no entanto nas mulheres a tomarem contraceptivos orais o risco de hemorragia é mais alto. Se a lesão for assintomática não está indicado qualquer abordagem cirúrgica.
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Tumores malignos
Os tumores malignos do fígado cingem-se essencialmente ao carcinoma hepatocelular e aos tumores metastáticos. Muito mais raros são o carcinoma fibrolamelar, o angiossarcoma e o hemangioendotelioma epitelóide, hepatoblastoma e o colangiocarcinoma (ver quadro I).


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Quadro I

Outros tumores malignos hepáticos

  Idade Características Frequência Tratamento Prognóstico Outras Caracte-
rísticas
carcinoma fibrolamelar jovens  crescimento lento   Cirúrgico, se lesão circunscrita e ressecável
Transplante, se lesão irressecável
50% de sobrevida aos 5 anos sem cirrose ou outra doença hepática subjacente
angiossarcoma  adultos          exposição adióxido de torium PVC, arsénio e anabolizantes esteróides
Hemangio-
endotelioma epitelóide
jovens adultos a maioria não metastisa   cirurgia ou transplante hepático    
hepatoblastoma infância geralmente lesões solitárias     mais de 70% de sobrevida aos 5 anos Altos níveis séricos de AFP
Colangio-
carcinoma (Tumor de Klatskin)
idade adulta   muito raro   mau lesões irressecáveis associado acolangite esclerosante primária

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Carcinoma Hepatocelular
Sendo o tumor primário do fígado mais comum a nível mundial, tem menor expressão na Europa ocidental (menos de 2%), sendo altamente prevalente em regiões da Ásia e África. É mais comum nos homens que nas mulheres e geralmente surge num fígado cirrótico. Aparece geralmente entre a 5.ª e a 6. º década de vida, sendo no entanto mais precoce (uma ou duas décadas antes) em áreas em que é mais prevalente.
Qualquer agente que contribua para lesões celulares moderadas mas crónicas, com mitoses frequentes é susceptível de lesões genéticas levando ao aparecimento de neoformações. Assim a doença crónica hepática de qualquer etiologia é um factor de risco e predispõem ao desenvolvimento de carcinoma hepático. Entre essas causas contam-se a doença hepática alcoólica, deficiência de a1-antitripsina, hemacromatose, tirosinémia e ainda a b1-aflotoxina (prevalente na África e sul da China).Há que ter em conta ainda a infecção pelo HVB (vírus de hepatite B) e HVC (vírus de hepatite C), as infecções crónicas por estes vírus levam frequentemente a cirrose; (60 a 90% dos tumores hepatocelulares ocorrem em doentes com cirrose macronodular). O aparecimento de carcinoma e sua evolução não parece diferir entre os indivíduos infectados com um só agente e aqueles que apresentam infecção pelo vírus B e C. O tempo de aparecimento está dependente da precocidade da infecção e da instalação de cirrose. Assim num fígado com cirrose pós-necrótica seja qual for a etiologia, em 75% dos casos ocorrerá uma complicação, ao fim de 1 a 5, anos entre as quais se inclui o carcinoma hepatocelular. Os factores hormonais também podem ser implicados visto que ocorrem em doentes sujeitos a terapêuticas longas com esteróides androgénicos. Não está provada a sua associação com a terapêutica com estrogénios (contraceptivos orais) embora alguns autores citem essa possibilidade. A apresentação clínica mais comum é de dor abdominal e detecção de massa no quadrante superior direito. Porém muitas vezes a sintomatologia pode ser confundida com a progressão da doença cirrótica que o doente apresenta. Em 20% dos casos ocorre ascite cujo líquido apresenta sangue. A icterícia é rara a não ser que haja concomitantemente um compromisso acentuado da função hepática ou obstrução das vias biliares. Embora em pequena percentagem há doentes que apresentam uma síndrome paraneoplásico em que pode aparecer eritrocitose, hipercalcemia. Podem ainda aparecer hipercolesterolemia, hipoglicemia, porfíria adquirida, desfribrinogenemia e criofibrinogenemia. Laboratorialmente encontramos
níveis elevados de Fosfatase Alcalina e a-fetoproteína (AFP). Em cerca de 80% dos doentes com carcinoma hepatocelular poderão ser encontrados valores de AFP de 500 a 1000 mg/l. No entanto, a AFP não é especifica deste tipo de lesões, podendo ser encontrados valores mais baixos em doentes com metástases hepáticas de neoplasias gástricas ou do cólon e ainda em doentes com hepatite crónica ou aguda. Porém o aparecimento de valores de AFP sérica superiores a 500 mg/l de um modo persistente em doentes com doença crónica hepática sem tumor gastrointestinal detectado é fortemente sugestivo de carcinoma hepático. Também o aumento progressivo dos níveis séricos deste marcador aponta para uma progressão da doença ou recorrência após ressecção do tumor ou tratamento quimioterápico ou por quimio-embolização. São usadas ainda, outras técnicas para a detecção do tumor tais como a ecografia, TAC ou RNM, angiografia da artéria hepática ou com radioisótopos. Nas populações com alto risco o procedimento a adoptar é a utilização da ecografia por ser relativamente sensível (pode detectar tumores com mais de 3 cm) e pelo baixo custo. As outras técnicas serão usadas tendo em conta a forte suspeita de carcinoma não detectável pela ecografia, a abordagem terapêutica e avaliação do prognóstico. A biopsia hepática percutânea pode ser feita para fazer o diagnóstico, se a lesão for acessível e orientada pela ecografia e/ou TAC. Tem no entanto riscos: hemorragia (tumores vasculares) e migração de células neoplásicas ao logo do trajecto da biopsia (mais raro). A laparoscopia é outra técnica a usar pois tem a vantagem de proporcionar a colheita sob visão directa e detectar lesões localizadas e ressecáveis nas quais se pode realizar uma hepatectomia parcial. 
Se a doença não for tratada o seu curso é rápido ocorrendo a morte após 3 a 6 meses após o diagnóstico. Em alguns casos a terapêutica pode aumentar a sobrevida. A cirurgia é a única possibilidade de cura. Porém só alguns tumores são ressecáveis, pois a maioria encontram–se em condições que não permitem esta atitude por estarem implantados num órgão cirrótico, envolverem ambos os lobos hepáticos e apresentarem metástases disseminadas (pulmão cérebro, ossos, supra-renais,...). Outras abordagens terapêuticas são alvo de investigações aprofundadas - transplante hepático (pouco sucesso), quimio-embolização (embolização da artéria hepática), ablação alcoólica via injecção percutânea orientada por ecografia, crio-ablação orientada por ecografia, imunoterapia com anticorpos monoclonais com agentes citotóxicos, e terapêutica genética com vectores retrovirais contendo genes que se expressam como agentes citotóxicos. A atitude a tomar em primeiro lugar é, perante doentes de alto risco para o desenvolvimento desta patologia (doentes infectados com HVB, HVC, ou cirrose hepática de qualquer etiologia), vigiar de um modo apertado com controles através da ecografia hepática e dos níveis de AFP sérica de modo a tentar detectar precocemente estes tumores e orienta-los para cirurgia.
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Tumores metastáticos
Cerca de 50% dos doentes que morrem por neoplasias apresentam metástases hepáticas. A incidência de tumores metastáticos no fígado é maior do que os tumores primários deste órgão. Quase todo o tipo de tumores metastizam para o fígado excepto os tumores primários de cérebro. Os mais comuns são as neoplasias gastrointestinais, pulmão, mama e melanomas, podendo ainda ser encontradas metástases de tumores da tiróide, pele e próstata. Clinicamente os doentes podem apresentar-se com:
1. sintomatologia relacionada com o tumor primário, sem sintomas ou sinais de envolvimento hepático apenas sendo detectado devido à avaliação sistémica do tumor primário;
2. sintomatologia inespecífica – astenia, anorexia, perda de peso, sudorese
3. mais raramente – dor abdominal, hepatomegalia ou ascite, sensibilidade na área hepática acompanhada de atrito à palpação.
Na avaliação laboratorial os testes bioquímicos tradutores de envolvimento mesenquimatoso podem aparecer ligeiramente elevados mas não são específicos. A maioria das vezes o único teste alterado são os valores de Fosfatase Alcalina. A hipoalbuminemia, anemia, e eventualmente elevação ligeira das transaminases pode ocorrer na doença disseminada. O antigénio carcino-embrionário (CEA) aparece quando as metástases são de tumores gastrointestinais, mama ou pulmão. Todos os doentes que apresentam neoplasias que frequentemente metastizam para o fígado deverão ser investigados de modo a confirmar a presença ou não de metástases neste órgão. A ecografia é a técnica a utilizar em primeiro lugar. Contribuem para o diagnóstico o achado de uma Fosfatase Alcalina aumentada e/ou a detecção de uma massa hepática por ecografia, TAC ou RNM. Outros procedimentos incluem a biopsia hepática, quer percutânea cega ou orientada por técnica imagiológica ou biopsia laparoscópica. O sucesso diagnóstico é francamente maior com esta última. O tratamento é pobre e geralmente é paliativo. Nunca é dirigido somente ao tumor metastático mas à neoplasia primária. Qualquer que seja a abordagem terapêutica, esta não altera o prognóstico.
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Bibliografia
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