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Parte IV – Problemas clínicos
4.5. Abordagem do paciente com problemas hematológicos
242. Anemias
Carlos Canhota
M. Letícia Ribeiro
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Canhota, Carlos;
Ribeiro, Letícia

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Introdução
A anemia é definida como um valor de hemoglobina (Hb) dois desvios padrão abaixo da média de valores da população normal, tendo em conta a idade e o sexo (Tabela I) e surge quando a eritropoiese é insuficiente para suprir as necessidades, por aumento das perdas, aumento da destruição (hemólise), ou distúrbio na produção dos eritrócitos. 
Os sintomas relacionados com a anemia são inespecíficos e dependem do ritmo de descida da Hb: se a anemia se instala rapidamente, como na hemorragia aguda, a sintomatologia está relacionada com a hipovolémia e o doente pode estar em choque ainda com um hematócrito normal; se a mesma quantidade de sangue for perdida de uma forma insidiosa, a anemia é bem tolerada, porque há um aumento compensatório do ritmo cardíaco e respiratório e uma diminuição da afinidade da Hb para o O2.
Na abordagem de um doente com anemia, para além dos dados clínicos, da história pessoal e familiar, é imprescindível a interpretação correcta dos parâmetros hematológicos e o estudo morfológico do esfregaço de sangue periférico (ESP).
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O hemograma
Os níveis de Hb são mais elevados no período neonatal, atingem os valores mais baixos por volta do 2º mês de vida, sobem gradualmente até por volta dos 15-18 anos de idade e mantêm-se estáveis na idade adulta. A partir da adolescência, a Hb é cerca de 1,5 g mais elevada no sexo masculino (Tabela I). A Hb e o Htc aumentam com a altitude e são mais elevados nos fumadores e em doentes com cardiopatia cianótica ou doença respiratória crónica.1

Quadro I

Parâmetros eritrocitários – média e limite inferior do normal (-2SD)
A hemoglobina (Hb), o hematócrito (Htc), o volume globular médio (VGM) e a hemoglobina globular média (HGM) variam com a idade e o sexo.

  Hemoglobina g/dL Hematócrito % VGM fl HGM pg CHGM g/dL
Idade Média -2SD Média -2SD Média -2SD Média -2SD Média -2SD
1 mês 14.0 10.0 43 31 104 85 34 28 33 29
2 meses 11.5 9.0 35 28 96 77 30 26 33 29
3 - 6 meses 11.5 9.5 35 29 91 74 30 25 33 30
0.5 - 2 anos 12.0 10.5 36 33 78 70 27 23 33 30
2 - 6 anos 12.5 11.5 37 34 81 75 27 24 34 31
6 - 12 anos 13.5 11.5 40 35 86 77 29 25 34 31
12 - 18 anos - F 14.0 12.0 41 36 90 78 30 25 34 31
- M 14.5 13.0 43 37 88 78 30 25 34 31
18 - 49 years - F 14.0 12.0 41 36 90 80 30 26 34 31
- M 15.5 13.5 47 41 90 80 30 26 34 31

Adaptado de Daliman, P. R.: In Pediatrics, 16th ed. Rudolph, A (ed.), New YorK Appleton-Century-Crotts 1977, p. liii.


O VGM e o HGM são mais elevados no recém-nascido, são mais baixos nas crianças e estabilizam na adolescência. A diminuição do VGM, microcitose, acompanha-se sempre da diminuição da HGM, hipocromia. Nos adultos considera-se microcitose um VGM <80 fL e hipocromia uma HGM <27 pg. O VGM sofre um ligeiro aumento na gravidez, com a ingestão de álcool ou com o armazenamento da amostra. 
Um outro parâmetro que é importante considerar é o RDW (red cell distribution width) que é calculado a partir do histograma e, traduz o índice de variação do tamanho dos glóbulos vermelhos (GV). O seu valor normal situa-se entre 11,5-14,5%, dependendo do contador electrónico utilizado. O RDW é útil no diagnóstico diferencial das anemias hipocrómicas e microcíticas mais comuns – sideropenia e talassemia (Figura 1). 

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Sideropenia
Hb g/dL 10,9
VGM fL 71
HGM pg 22
CHGM % 30
RDW % 19,8
ß-Talassemia minor
Hb g/dL 11,7
VGM fL 70
HGM pg 22
CHGM % 31
RDW % 15,2

Figura 1 – Na sideropenia há GV de tamanho normal e outros microcíticos – VGM baixo, RDW elevado; na talassemia os GV são uniformemente mais pequenos – VGM baixo, RDW normal ou ligeiramente elevado. Para os mesmos valores de VGM e HGM, na sideropenia os níveis de Hb são mais baixos e o RDW é mais elevado.

Os GV têm uma vida média de 120 dias, por isso o RDW deve ser interpretado de um ponto de vista dinâmico: na fase de instalação ou recuperação de uma sideropenia é elevado, porque há GV normocíticos e outros microcíticos, numa sideropenia severa e prolongada é baixo, porque já todos os GV são microcíticos (Figura 2). 
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Sideropenia
Hb g/dL 6,7
VGM fL 59
HGM pg 13
CHGM % 22
RDW % 12,1
Sideropenia
1 mês após Fe oral 
Hb g/dL 11,6
VGM fL 70
HGM pg 20
CHGM % 29
RDW % 31,5

Figura 2 – O RDW é o primeiro parâmetro a subir na resposta ao tratamento com Fe. No histograma pode observar-se um alargamento devido à coexistência de duas populações, uma microcítica e outra já normocítica, suficiente em Fe.

O estudo morfológico do sangue periférico é fundamental para o diagnóstico hematológico, nomeadamente para a orientação do diagnóstico das anemias. As alterações morfológicas mais frequentes são as modificações da cor, do tamanho e da forma dos GV. A Tabela II mostra as patologias a que estas alterações estão mais frequentemente associadas. 
Os reticulócitos são um bom indicador da actividade medular e são essenciais no diagnóstico diferencial entre anemias aplásticas e hemolíticas. A policromasia no ESP é um indicador de reticulocitose, no entanto os reticulócitos podem ser contados em alguns contadores automáticos ou numa coloração supra-vital. 
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Quadro II

Significado clínico-patológico das alterações morfológicas mencionadas com mais frequência na avaliação do ESP

Alterações morfológicas Patologias associadas
Anisocitose deseritropoiese; sideropenia;
Microcitose sideropenia; talassemia
Hipocromia sideropenia; talassemia
Macrocitose

Poiquilocitose
doença hepática; alcoolismo; doença mielodisplásica; hipotiroidismo; défice de vitamina B12 ou ácido fólico;
hipoesplenismo; deseritropoiese; piropoiquilocitose
Policromasia reticulocitose
Células em alvo doença hepática; hemoglobinopatias;
Acantócitos  doença hepática; hipotiroidismo; défice de PK
Células em lágrima mieloesclerose; eritropoiese extramedular
GV fragmentados


Pontuado basófilo
microangiopatia; coagulação intravascular disseminada; púrpura trombocitopénica trombótica
deseritropoiese; intoxicação pelo chumbo ou outros metais pesados; défice de P’5N
Eliptócitos  eliptocitose hereditária
Esferócitos  esferocitose hereditária; anemia hemolítica autoimune
Células falciformes (drepanócitos) drepanocitose (SS; Sbtal)
Corpos de Heinz Hbs instáveis; défice de G6PD
Neutrófilos hipersegmentados défice de vitamina B12 ou de ácido fólico
Rouleaux VS elevada; disproteinémia
GV aglutinados aglutininas a frio e AHAI

 A observação do ESP permite também fazer o controle de qualidade do hemograma e eliminar, por exemplo, muitas falsas trombocitopenias que são resultantes da aglutinação de plaquetas ou de satelitismo plaquetar (plaquetas dispostas em redor dos neutrófilos).
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Classificação das anemias

As anemias podem ser classificadas com base na sua fisiopatologia ou na morfologia dos GV. Em termos fisiopatológicos podemos dividi-las em duas categorias que não se excluem mutuamente:

Anemias por alteração da produção dos GV – eritropoiese ineficaz
  - aplasia eritróide
Anemias por destruição aumentada dos GV – perdas hemorrágicas
  - hemólise


A classificação morfológica, baseada no tamanho e na forma dos GV, é uma boa base de raciocínio na prática clínica, embora não tenha em conta a evolução da anemia, nem a associação de vários factores etiológicos (Quadro III). 

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Quadro III
Classificação morfológica das anemias mais frequentes na prática clínica
Hipocrómicas e microcíticas - sideropenia
- talassemia
- processo inflamatório crónico
- intoxicação pelo chumbo
- anemia sideroblástica
- algumas Hbs instáveis
Macrocíticas  Megaloblásticas  - défice de vitamina B12
- défice de ácido fólico
  Não megaloblásticas - doença hepática 
- alcoolismo
- hipotiroidismo
- secundárias a drogas (citostáticos, anticonvulsivantes, ...)
- algumas anemias hemolíticas
    - falência medular - anemia deseritropoiética congénita 
- anemia aplástica
- síndrome mielodisplástico
Normocrómicas e normocíticas - anemias hemolíticas
- hemorragia aguda
- hiperesplenismo
- doença renal crónica
 

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I – Anemias hipocrómicas e microcíticas

Introdução
A Hb é formada por dois pares de cadeias globínicas (a e não a) e um grupo heme (ião de Fe num anel de protoporfirina). Se há diminuição ou ausência de produção de cadeias globínicas ou da síntese do heme, há diminuição da síntese de Hb, que se traduz numa anemia hipocrómica e microcítica. Os três tipos mais comuns de anemia hipocrómica e microcítica são: a anemia por deficiência de Fe, a anemia das doenças crónicas e a talassemia.

1. Sideropenia
A falta de Fe é a causa mais frequente de anemia em todo o mundo. Em Portugal diversos estudos populacionais mostram prevalências de sideropenia preocupantemente elevadas, sobretudo nas populações com poucos recursos sócio-económicos. O Fe é um nutriente essencial para o crescimento e para o desenvolvimento psicomotor, e a sua carência tem sido associada a uma diminuição da capacidade de aquisição de conhecimentos, insucesso escolar, irritabilidade, alterações do sono, assim como a uma diminuição da tolerância ao esforço e da imunidade celular. Vários estudos mostram que crianças com deficiências de Fe moderadas ou graves na 1ª infância apresentam um desenvolvimento cognitivo inferior ao das crianças não carentes ou com carência ligeira. Esta desvantagem intelectual parece manter-se ao longo da infância, independentemente da posterior correcção da sideropenia. 
O Fe existente no organismo resulta de um equilíbrio entre a quantidade que é absorvida e a quantidade necessária para o crescimento tecidular, a expansão do volume sanguíneo e a compensação das perdas fisiológicas ou outras. Há vários factores que alteram este equilíbrio e a sua importância varia nas diferentes fases do desenvolvimento: no 1º ano de vida, na adolescência e na gravidez há uma maior utilização tecidular do Fe, devido ao crescimento rápido e expansão do volume sanguíneo; na mulher em idade fértil as perdas menstruais representam o grande risco de sideropenia.
Um valor de Hb dentro dos parâmetros normais não exclui sideropenia, porque o Fe é utilizado preferencialmente para formar a Hb e, numa situação de carência, antes dos níveis de Hb começarem a baixar, já muitas células estão a sofrer as consequências da deficiência de Fe.
As repercussões hematológicas de uma sideropenia começam por um aumento do RDW e uma descida da Hb, só depois há uma diminuição do VGM e do HGM (Figura 3 A). Na anemia sideropénica em tratamento há uma subida muito precoce do RDW, que pode atingir valores muito elevados, a Hb aumenta cerca de 1g /semana, e só umas semanas mais tarde o VGM, o HGM e o RDW atingem os valores normais (Figura 3 B).

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A Anemia sideropénica em fase de instalação




B Anemia sideropénica em tratamento com Fe

Figura 3 – Numa situação de carência de Fe só há diminuição dos níveis de Hb quando se esgotam as reservas de Fe. O RDW é o parâmetro que mais precocemente indicia a carência de Fe e a resposta ao tratamento.

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O problema na prática clínica

a) Lactentes, crianças e adolescentes
O recém-nascido (RN) tem uma determinada quantidade de Fe que é função do peso e do hematócrito. Após o nascimento há um decréscimo da eritropoiese, a Hb baixa cerca de 6g/dl durante as primeiras 6 semanas e o Fe, resultante da degradação dos GV, é armazenado sob a forma de ferritina. Nos primeiros 6 meses de vida, quando o RN duplica o seu peso, a rápida expansão tecidular, associada ao baixo aporte de Fe na dieta, leva à depleção gradual dos depósitos de Fe. Ao iniciar a diversificação alimentar a maioria dos lactentes diminui a ingestão de leite materno ou suplementado, sem que aumente, em concordância, a quantidade de alimentos ricos em Fe facilmente absorvido. No primeiro ano de vida, o risco de sideropenia aumenta na proporção inversa da idade de introdução do leite de vaca. Todos estes factores contribuem para a elevada prevalência de sideropenia entre os 6 e os 24 meses de idade. 
Nas crianças entre os 2 e os 5 anos de idade a sideropenia resulta, quase sempre, de erros alimentares, sendo o mais comum a ingestão de enormes quantidades de leite de vaca. Estas crianças são habitualmente pálidas, mas de aparência bem nutrida. As infecções maciças por parasitas, nomeadamente a giárdia, podem contribuir para uma carência de Fe. O divertículo de Meckel e as malformações vasculares podem ser causa de anemia severa, por perdas hemorrágicas agudas ou crónicas, que muitas vezes não são notadas. Um mau crescimento estato-ponderal, um abdómen proeminente, fezes pastosas e fétidas, sugerem uma intolerância ao glúten – doença celíaca.
Os adolescentes são outro grupo de risco, devido ao crescimento acelerado e uma alimentação muitas vezes incorrecta. No sexo feminino a prevalência da carência de Fe é mais elevada devido às perdas menstruais. A anemia por carência de Fe é o primeiro sinal de alerta na microangiodisplasia do cólon ou mesmo na doença de Crohn. A infecção da mucosa gástrica por Helicobacter Pylori também tem sido associada a anemia sideropénica devido a micro hemorragias. 

b) A mulher em idade fértil e na gravidez
A grande maioria das mulheres na idade fértil tem uma carência de Fe, que está em relação directa com o volume do seu fluxo menstrual. Na gravidez as necessidades de Fe aumentam devido ao crescimento tecidular materno, placentar e fetal. No início da gestação, por hemodiluição, há uma diminuição dos níveis de Hb, que atinge o seu valor mais baixo no segundo trimestre, e que volta a subir nos últimos meses, quando o ritmo de expansão do volume plasmático diminui. A deficiência de Fe na grávida não influencia directamente os níveis de Hb e ferritina do RN, no entanto tem sido associada a uma mortalidade perinatal mais elevada, a uma maior incidência de partos prematuros e de RN de baixo peso.

c) Idade adulta e Idoso
No homem adulto e na mulher pós menopausa a carência de Fe está, na grande maioria dos casos, associada a perdas hemorrágicas ocultas do tracto gastrointestinal e impõe uma investigação exaustiva para despistar lesões malignas, nomeadamente o cancro do cólon e do cego, ou doenças inflamatórias crónicas, como a doença de Crohn e a colite ulcerosa. A instalação é insidiosa, com sintomas inespecíficos, indevidamente conotados com “normal” para a idade. Os défices nutricionais são raros; a mal absorção do Fe pode estar relacionada com gastrite atrófica ou com cirurgias mutilantes do tubo digestivo. A ingestão frequente de ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não esteróides pode ser causa de sideropenia.
A doença celíaca do adulto passa habitualmente despercebida até ao aparecimento de uma anemia sideropénica, por o doente não valorizar o facto de ter uma ou mais dejecção por dia de fezes pastosas de cheiro fétido, sobretudo quando ingere mais alimentos ricos em glúten. A hemoglobinúria paroxística nocturna é uma situação pouco frequente, que cursa com anemia sideropénica devido à perda de grandes quantidades de Fe na urina.
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Avaliação diagnóstica – Laboratorial e Clínica
Na criança o peso de nascimento e a história alimentar nos primeiros anos de vida são dados essenciais para o diagnóstico de anemia por carência de Fe. A palidez, a anorexia, a irritabilidade, as alterações do sono ou a pica são os sinais que mais frequentemente chamam a atenção dos pais. 
Nos adolescentes e adultos as causas mais frequentes de sideropenia são as hemorragias ocultas do tubo digestivo e as perdas menstruais abundantes, pelo que é nestas áreas que deve incidir a recolha dos dados clínicos. A sintomatologia é inespecífica – astenia, fraqueza muscular, fadiga, palpitações, e são frequentes as lesões das mucosas – estomatite, glossite, queilite – e dos faneros – coiloníquia e queda do cabelo.
A anemia sideropénica é tipicamente hipocrómica e microcítica, com um RDW elevado. Na grande maioria dos casos o hemograma é suficiente para o diagnóstico, que é confirmado com uma prova terapêutica com Fe oral e uma subida do RDW e da Hb logo na primeira semana. A ferritina sérica (FS) tem uma boa correlação com a quantidade de Fe existente no organismo, excepto nos primeiros meses de vida. Uma FS abaixo de 12 mg/ml é sinónimo de sideropenia. Na infecção, inflamação, neoplasia e gravidez a FS pode estar elevada de uma forma inespecífica, no entanto, se for menos 25mg/mL indica sideropenia. Na intoxicação pelo chumbo e na anemia sideroblástica congénita, ou adquirida, há hipocromia e microcitose com FS elevada, por incapacidade de utilização do Fe. 
Das outras análises disponíveis para avaliação de sideropenia, o Fe sérico não tem qualquer interesse, porque indica apenas o Fe em trânsito no plasma num determinado momento, sofrendo variações diurnas consideráveis; a transferrina e a saturação da transferrina têm baixa sensibilidade e especificidade. A protoporfirina eritrocitária está aumentada quando há diminuição da síntese do heme: sideropenia, anemia das doenças crónicas e na intoxicação pelo chumbo.
Após exclusão de sideropenia, uma hipocromia e microcitose, com ou sem anemia, é fortemente sugestiva de talassemia.
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Possibilidades de intervenção em MGF

a) Lactentes, crianças e adolescentes
A anemia por carência de Fe na criança pode ter consequências nocivas a curto e a longo prazo, pelo que a sua profilaxia é prioritária. Algumas normas básicas devem ser implementadas no 1º ano de vida: 1) aleitamento materno, sempre que possível, ou leite de fórmula suplementado com Fe; 2) cereais enriquecidos com Fe devem ser introduzidos na altura da diversificação alimentar, ou deve ser feita a suplementação com Fe oral (1-2 mg/kg/dia) entre os 6 e os 24 meses; 3) não administrar leite de vaca antes do ano de vida; nos casos em que não puder ser evitado, suplementar com Fe oral; 4) os RN de baixo peso, devem ser suplementados com Fe 2 mg/kg/dia, a partir do 1º ou 2º mês de vida. O leite materno tem um bom teor de Fe facilmente absorvível, no entanto, alguns estudos sugerem que mesmo as crianças alimentadas com leite materno necessitam de suplementação com Fe. 
Nas crianças que pertencem a grupos de risco é aconselhável fazer um hemograma, para despiste de anemia, por volta do 2º ano de vida. Se é detectada uma anemia sideropénica, para além da terapêutica com Fe oral, e de um desparasitante intestinal, deve haver um cuidado especial na correcção dos erros alimentares. 

b) A mulher em idade fértil e na gravidez
A mulher na idade fértil, devido às perdas menstruais, raramente tem Fe armazenado no sistema retículo endotelial (SRE), ficando com um equilíbrio precário entre a ingestão e as necessidades. Um aumento do fluxo menstrual coloca-a numa situação de défice de Fe, que se instala insidiosamente e pode passar despercebido durante muito tempo. De notar que muitas vezes a mulher com perdas abundantes não as valoriza, porque pensa que é normal perder muito sangue. 
Um hemograma está indicado sempre que haja história de meno/metrorragias. A terapêutica com Fe deve ter uma duração de pelo menos 4 meses, para subir a Hb para os seus valores normais e repor os depósitos de Fe no organismo. Se as perdas abundantes se mantêm, a mulher deve ser aconselhada a tomar Fe pelo menos 1 a 2 meses por ano, porque a anemia vai recidivar. 
Vários estudos mostraram que uma percentagem elevada de mulheres com fluxo menstrual abundante tem alterações hereditárias da hemostase, nomeadamente doença de von Willebrand. Nestes casos, se a história pessoal e familiar for suspeita de tendência hemorrágica, a doente deverá ser enviada a uma consulta de hematologia para despiste de uma coagulopatia.
Na grávida o rastreio da anemia sideropénica deve ser feito na primeira consulta. Considera-se anemia uma Hb <11 g/dL no primeiro e terceiro trimestres e Hb <10.5 g/dL no segundo trimestre. É consensual que todas as grávidas, a partir do segundo trimestre, devem tomar um suplemento diário de 30-60 mg de Fe, 100 mg se houver anemia sideropénica. Esta atitude não dispensa uma acção de educação alimentar. 

c) Idade adulta e idoso
No homem adulto, na mulher pós menopausa ou com menstruações pouco abundantes e nos idosos com anemia hipocrómica e microcítica e FS baixa, sem uma causa aparente, é obrigatório fazer um estudo exaustivo do tracto digestivo, nomeadamente um exame endoscópico gastrointestinal, sigmoidoscopia, colonoscopia ou um exame radiológico com contraste, mesmo se o exame objectivo (que inclui exame rectal) e o teste de sangue oculto nas fezes forem negativos. Em muitos casos é difícil encontrar a lesão sangrante e é necessária uma observação continuada até ser detectada uma etiologia.
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Tratamento da sideropenia – considerações gerais

Uma microcitose e hipocromia, com ou sem anemia, deve ser tratada com sulfato ou gluconato ferroso oral, na dose de 100 a 200 mg/dia, 3 a 4 mg/kg/dia na criança. Controlar dentro de um mês, ou antes se a anemia for acentuada: se os parâmetros tenderem a normalizar, manter a terapêutica durante 4 a 6 meses; se não houver alterações, dosear a FS. Se a FS for elevada suspeitar de uma talassemia ou de uma anemia das doenças crónicas; se baixa é porque o Fe não está a ser administrado ou não está a ser absorvido em quantidade que supere as perdas (Figura 4). Verificar se persistem erros alimentares e, se necessário, investigar perdas ocultas. 
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Figura 4 –Uma prova terapêutica com Fe oral é a forma mais eficaz de fazer o diagnóstico de anemia sideropénica. Nos casos em que a anemia é mais severa, a Hb e o RDW devem ser reavaliados uma semana depois. A terapêutica deve ser continuada durante 4 a 6 meses, para repôr os depósitos de Fe no SRE. 

A absorção do Fe da dieta depende da sua quantidade e qualidade: o Fe heme (carne e peixe) é facilmente absorvido; a absorção do Fe não heme (vegetais) é diminuta e fortemente influenciada pelos componentes da dieta; os fitatos e o chá inibem a absorção, o ácido ascórbico facilita a absorção. Deve ser sugerido ao doente que tome os comprimidos de Fe numa refeição que tenha alimentos ricos em ácido ascórbico, nomeadamente citrinos e saladas. 
Altas doses de Fe são contraproducentes, a capacidade de absorção é limitada e provocam mal-estar gastrointestinal, que leva os doentes a abandonar a terapêutica. Os compostos de Fe de absorção retardada são absorvidos de uma forma irregular, por vezes pouco eficaz e estão contra-indicados nos doentes com patologia gastrointestinal. Na sideropenia grave e prolongada a capacidade de absorção de Fe no intestino é baixa, por atrofia da mucosa intestinal, e pode ser necessário administrar o Fe por via parentral. A terapêutica deve iniciar-se com doses baixas e infusões lentas, porque podem ocorrer reacções anafilácticas. O Fe parentral não deve ser administrado no primeiro trimestre da gravidez.
Completados os 4 a 6 meses de tratamento, se houver recidiva da anemia é porque o Fe não foi suficiente para os depósitos no SRE, ou porque as perdas são abundantes ou o aporte/absorção são deficientes.
Numa hipocromia e/ou microcitose, com ou sem anemia, que não responde ao Fe oral, deve ser feito o doseamento de Hb A2 e de Hb F e uma electroforese de Hbs, para pesquisa de talassemia. O diagnóstico de b- talassemia obriga a estudos familiares e aconselhamento genético (ver próximo capítulo).

2. Anemia das doenças crónicas
É uma anemia ligeira e não progressiva, normo/hipocrómica e normo/microcítica, com FS elevada. É relativamente frequente em doentes com doenças infecciosas, inflamatórias crónicas ou malignas A sua etiologia é multifactorial e o tratamento da anemia pressupõe o tratamento da doença de base.
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Pontos práticos

A anemia sideropénica é de longe a anemia mais comum, a sua prevenção é um problema de saúde pública que levou vários países a suplementar os alimentos com Fe. É de considerar o seu rastreio no 1º- 2º ano de vida, em crianças com deficiências nutricionais, na mulher com menstruações abundantes e na gravidez. O tratamento preventivo é recomendado nestas três situações e ainda nos prematuros e RN de baixo peso ao mês de vida e nas crianças no 1º ano de vida, se na altura da diversificação alimentar não for introduzida carne ou peixe, ou cereais suplementados com Fe, ou se o leite de vaca for introduzido indevidamente antes do ano. 
Se uma anemia sideropénica não melhora com o tratamento com Fe oral é porque há aporte insuficiente, má absorção ou perdas abundantes. Na criança a principal causa são os erros alimentares, no adulto são as hemorragias menstruais ou as hemorragias ocultas do tubo digestivo. 
Em resumo, uma anemia hipocrómica e microcítica que não responde ao Fe oral:
Doseamento baixo de Ferritina – investigar se:
1. Toma inadequada do Fe – esquecimento? má adesão por intolerância? deficiente compreensão das instruções da prescrição? Doentes com sideropénias graves manifestam com frequência uma melhoria excelente após umas semanas de tratamento com Fe e abandonam a terapêutica
2. Preparados com doses insuficientes de Fe ou com baixa biodisponibilidade? Sugerir a toma do Fe numa refeição que inclua alimentos ricos em ácido ascórbico. Prescrever um outro preparado de Fe.
3. Procurar outras causas: má absorção por doença celíaca? ingestão de grandes quantidades de leite de vaca? Reduzir a ingestão de glúten e/ou leite de vaca.
4. Manutenção da perda de sangue: menstruações abundantes? hemorragia oculta? Investigar exaustivamente o tubo digestivo. Desparasitar.
5. Associação com défice de ácido fólico ou de vitamina B12? Pesquisar alterações megaloblásticas. Fazer prova terapêutica com vit B12 e, depois com AF.
Doseamento normal ou alto de Ferritina – investigar se:
1. Talassemia: doseamento de Hb A2 e Hb F e electroforese de Hbs (ver próximo capítulo). 
2. Doença inflamatória crónica ou neoplasia. Pode ser necessário um medulograma para verificar se há Fe no SRE e se está a ser incorporado nos precursores eritróides. 
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II – Anemias Macrocíticas
As anemias macrocíticas podem ser megaloblásticas – deficiências de vit. B12 ou de AF; e não megaloblásticas – secundárias a diversas patologias, nomeadamente à doença hepática, alcoolismo, hipotiroidismo, e falência medular (Quadro III).

1. Anemias megaloblásticas
A anemia megaloblástica resulta de um defeito na síntese do ADN que afecta os precursores eritróides, mielóides e megacariocíticos na medula. Instala-se de modo muito gradual e só se torna sintomática quando os valores de Hb atingem níveis muito baixos. As causas mais frequentes são a deficiência nutricional de folatos e a malabsorção da vit. B12. A anemia é macrocítica (VGM>110 fL), com ou sem neutropenia e/ou trombocitopenia; no ESP observam-se macrócitos, um grau moderado de aniso-poiquilocitose, pontuação basófila e neutrófilos grandes e hipersegmentados. O aspirado de medula óssea é necessário para confirmar o diagnóstico de anemia megaloblástica e deve ser feito antes de serem tomadas quaisquer medidas terapêuticas, pois as alterações características desaparecem, ou tornam-se confusas, pouco depois do início do tratamento ou da administração de transfusão de sangue. 
As alterações hematológicas, por si só, não permitem determinar se a megaloblastose resulta de uma deficiência de AF ou de vit B12. As perturbações neurológicas, que com frequência ocorrem na deficiência de vit B12, são muitas vezes frustres e difíceis de diferenciar das induzidas pela intoxicação alcoólica crónica, que se associa à deficiência de AF. O doseamento dos níveis séricos de AF e vit B12 é pouco discriminante e o critério diagnóstico mais seguro é o aparecimento de reticulocitose sete dias depois da administração i.m. de uma dose de 1000 µg de vit B12. Em indivíduos com deficiência de vit B12, a terapêutica intempestiva com AF pode agravar as lesões neurológicas.
Os vegetais e frutos frescos são ricos em AF, que é parcialmente inactivado pela cozedura. As necessidades mínimas diárias de AF são de cerca de 3,5 mg/kg e as reservas só são suficientes para 4-5 meses. A vit B12 existe apenas nos alimentos de origem animal, as necessidades são de 0,5 a 1 mg/dia e as reservas duram cerca de 2 anos. 

a) Deficiência de ácido fólico
A deficiência de AF tem uma alta prevalência nas populações mais desfavorecidas de todo o mundo, associada à pobreza, malnutrição, infestação por parasitas e doenças infecciosas. Os idosos são o grupo de maior risco, devido a uma dieta inadequada, sem produtos vegetais crus. 
O doseamento de AF é pouco fiável, porque tem uma correlação estreita com a quantidade de folatos ingeridos nos dias anteriores ao teste: um doseamento baixo pode indicar apenas uma ingestão reduzida nos dias precedentes; um doseamento normal pode corresponder a um aumento recente de folatos na dieta.
O tratamento da deficiência de AF consiste na administração de 5-10 mg/dia de AF per os e na correcção dos erros alimentares. As doses utilizadas corrigem parcialmente as alterações megaloblástica do défice de vit. B12, mas não os distúrbios neurológicos.
A suplementação com AF deve ser feita antes e durante a gravidez (para a prevenção dos defeitos do tubo neural), nas anemias hemolíticas crónicas, na terapêutica com antiepiléticos, nas doenças intestinais crónicas, e na prevenção da doença trombótica, em doentes com níveis elevados de homocisteína.

b) Deficiência de vitamina B12
A malabsorção de vit. B12 pode estar relacionada com um défice de factor intrínseco, como na anemia perniciosa e post-gastrectomia, ou com alterações da absorção intestinal, como nas anomalias congénitas de absorção de vit. B12, nas doenças que afectam o íleo e na insuficiência pancreática. Em regimes alimentares estritamente vegetarianos há com frequência um défice de vit. B12, pela não ingestão de alimentos de origem animal.
Para além dos percursores hematopoiéticos, a deficiência de vit. B12 atinge o sistema nervoso central e periférico. As manifestações neurológicas podem surgir antes da anemia, o que dificulta e atrasa o diagnóstico, podendo tornar as lesões irreversíveis. Os principais sintomas são de uma neuropatia progressiva e simétrica que afecta preferencialmente os membros inferiores, com parestesias e dificuldades na marcha. Menos frequentemente há atrofia óptica e sintomas psiquiátricos graves. Alguns autores sugerem que há um grande grupo de doentes com perturbações neuropsiquiátricas, hematologicamente normais, que respondem ao tratamento com vit. B12.
A anemia perniciosa é uma doença autoimune e pode estar associada a hipotiroidismo e diabetes tipo I. Alguns estudos sugerem que a incidência de carcinoma do estômago é cerca de 2 a 10 vezes mais elevada nos doentes com anemia perniciosa. 
Os níveis de vit. B12 no soro (n=160-925 ng/L) são baixos na maioria, mas não em todos, os doentes com défice de vit. B12. 
Na terapêutica substitutiva deve ser instituído um tratamento inicial com Vit. B12 1000 mg i.m. de 2 em 2 dias, 10-15 doses e um tratamento de manutenção com Vit. B12 5000 mg i.m. cada 3 meses. Se a anemia for muito grave, o tratamento deve ser iniciado no hospital, porque pode haver uma hipocaliemia severa após a primeira administração de vit. B12. 
A suplementação continuada é necessária na anemia perniciosa, nas ressecções gástricas ou ileais e na doença de Crohn.

2. Anemias macrocíticas não megaloblásticas
Uma macrocitose, VGM>100, <110 fL, com ou sem anemia, ocorre muitas vezes no decurso de doença hepática, ingestão inadequada de álcool, hipotiroidismo, hemólise, aplasia, infiltração ou displasia da medula óssea. Ao contrário das anemias megaloblásticas, nestas patologias não são evidentes alterações megaloblásticas na medula, nem neutrófilos hipersegmentados no ESP. A correcção dos parâmetros hematológicos está dependente da resolução da patologia desencadeante. Em muitos dos casos está indicada a suplementação com AF.
Uma anemia macrocítica não megaloblásticas num idoso é, com frequência, um Sindroma mielodisplástico.
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III – Anemias normocíticas

As causas mais frequentes de anemia normocítica são: hemorragia aguda, hemólise, doença inflamatória crónica, doença renal, hiperesplenismo e falência medular (Tabela III). O diagnóstico diferencial é estabelecido com base numa história clínica cuidadosa e nos exames laboratoriais necessários à pesquisa das etiologias mais frequentes. Uma anemia pode ser normocítica no estádio inicial, e evoluir para micro ou macrocítica. Quando há associação de vários factores etiológicos, por exemplo nas patologias do tubo digestivo com malabsorção de AF e/ou vit. B12 e carência de Fe, a anemia pode ser normocítica, com RDW elevado.

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Bibliografia

Hematology in Infancy and Childhood, 5th edition, Edited by Nathan and Oski, W.B. Saunders Company, Philadelphia, 1998

Williams Hematology, 5th editon, Editors Beutler, E., Lichtman, M.A., Coller, B.S., Kipps, T.J., International edition, McGraw-Hill, Inc., Health Profession Division, USA, 1995

Current American Academy of Pediatrics Policy Statements - http://www.aap.org/policy/pprgtoc.cfm