índice parcial
Parte IV – Problemas clínicos
4.6. Abordagem do paciente com problemas neurológicos
257. Recuperação e cuidados pós-AVC
Rosalvo Almeida
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Sanches, JP;
Fernandes, C


Os números da prevalência das doenças cerebrovasculares encontrados na literatura não são concordantes, o que naturalmente reflecte diferentes metodologias e amostras ou populações não equiparáveis. José Ferro e colaboradores citam uma recolha de cerca de 30 estudos para indicar que a prevalência se situará entre 4,5 e 11,3 por 1000. Num estudo de Coimbra referente a indivíduos com mais de 50 anos de idade, a taxa encontrada foi de 80/1000. Contudo, reportando-nos ao tema da recuperação, terá mais interesse saber qual a proporção de casos que conduzem a deficiências ou incapacidades marcantes. No Reino Unido, O'Mahony et al. publicaram recentemente um estudo em que se calcula, numa população acima de 45 anos, uma prevalência de dependências associadas a AVC de 11,7/1000 (IC 95%: 11,3-12,1) para uma prevalência de AVC de 17,5/1000 (IC 95%: 17,0-18,0). O seguimento de doentes após terem sofrido acidentes vasculares cerebrais é, assim, um assunto de dimensão assinalável e constitui uma parte do problema mais vasto que é o da continuidade dos cuidados. Propomo-nos trazer para esta obra uma referência, simplificada e certamente não exaustiva, aos principais aspectos relacionados com o tema e um apontar de pistas sobre os seguintes pontos:
1
A. Cuidados imediatos
1. Sempre que possível, perante AVC agudos, é da maior utilidade que exista uma coordenação precoce dos serviços responsáveis pelo diagnóstico, terapêutica, reabilitação e prevenção.

2. Importa considerar e aplicar, desde o início, medidas específicas relativas à prevenção de recorrência, incluindo a prevenção da trombose das veias profundas, enquanto houver imobilidade.

3. A capacidade de deglutição deve ser avaliada na admissão e as técnicas tendentes a facilitar a sua retomada tentadas continuadamente.

4. A manutenção da integridade da pele e a avaliação dos riscos de queda do leito são preocupações que igualmente devem merecer atenção especial desde os primeiros dias.

5. Os cuidados com a colocação e vigilância da algaliação têm em vista a sua remoção tão cedo quanto possível.

6. A mobilização do doente, dependendo do estado geral, será retomada na respectiva proporção.
Segundo C. Boult e outros a relevância das recomendações contidas nos pontos 1 e 2 assenta num elevado tipo de evidências (dois ensaios aleatórios controlados com relevância directa) enquanto nas restantes resulta da convergência de um forte consenso de um painel de peritos (90-100% de concordância) com um ensaio não-aleatório ou com dois, ou mais, estudos usando controlos históricos ou desenho quase-experimental.
2
B. Integração do doente no seu ambiente
O regresso a casa do doente afectado por AVC deve começar a preparar-se pouco depois do internamento ou pode justificar, consoante a gravidade e a envolvente familiar, a sua manutenção em ambiente doméstico desde o início.

1. Os serviços devem ter planos de formação, destinados a doentes, familiares e outras pessoas envolvidas nos cuidados de doentes, que incluam o ensino sobre causas e consequências do AVC, assim como metas e prognósticos da reabilitação.

2. Nos casos em que haja perturbações do trânsito intestinal seja obstipação persistente seja incontinência, devem ser ministrados ensinamentos especiais sobre programas de regulação intestinal.

3. A persistência de incontinência urinária deve ser alvo de avaliação etiológica e não admitida como fatalidade.

4. A prevenção de lesões articulares do ombro implica um alerta especial dos familiares quanto ao posicionamento, à frequência de mudanças e aos riscos do excesso de vigor.

5. Há que encorajar o treino de exercícios proporcionados tendentes à recuperação funcional e à reaprendizagem sensitivo-motora nos casos de défices em doentes que conservam algum controlo voluntário da força muscular.

6. A detecção adequada de depressão como um factor de perturbação da reabilitação deve ser uma preocupação a não negligenciar.
Os mesmos autores acima citados consideram os pontos 1 e 2 com grau de evidência intermédia (um ensaio aleatório controlado pertinente ou dois, ou mais, ensaios menos directamente pertinentes ou não-aleatórios), enquanto que o ponto 6 é de elevado grau e os restantes têm menor demonstração.
3 
C. Prevenção secundária
As recomendações terapêuticas para a prevenção secundária em AVC foram recentemente compiladas no trabalho publicado pela Ordem dos Médicos, de onde salientamos o seguinte:

1. Tensão arterial [Evidência proveniente de, pelo menos, um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) elevado] A conjugação de diversas medidas – redução da ingestão de sal, redução da ingestão de álcool, exercício, alteração no estilo de vida – e a utilização adequada de fármacos anti-hipertensores permitem assegurar um regime tensional de menor risco. A uma diferença de 5 mmHg na TA diastólica corresponde uma diferença de 30% no risco relativo de recorrência de AVC.

2. Colesterol [Evidência proveniente de estudos não aleatorizados com controlos concorrentes («coorte» ou caso-controlo)]. A diminuição do colesterol plasmático reduz o risco relativo de doença cardíaca isquémica em 50% aos 40 anos e 20% aos 70 anos. Uma vez que os doentes com AIT e os sobreviventes de AVC isquémico têm um risco elevado de doença coronária justifica-se a redução de níveis de colesterol plasmático pelo menos para reduzir o risco de eventos coronários. A redução do colesterol com dieta é aconselhável em todos os doentes com AIT ou AVC recente e colesterol elevado.

3. Tabagismo [Evidência proveniente de estudos não aleatorizados com controlos concorrentes («coorte» ou caso-controlo)]. Os malefícios do tabaco sobre a saúde em geral são razão suficiente para aconselhar a suspensão do hábito apesar da falta de estudo aleatorizados que comparem pessoas que «continuam a fumar» e outras que «deixam de fumar». Fumar é, no entanto, um factor de risco comprovado para AVC isquémico e hemorragia subaracnoideia. 

4. Álcool [Evidência proveniente de estudos não aleatorizados com controlos concorrentes («coorte» ou caso-controlo)]. A ingestão moderada de bebidas alcoólicas pode aumentar a tensão arterial, pelo que a redução da sua ingestão pode ajudar a controlar a tensão arterial. Embora não existam ensaios clínicos aleatorizados e controlados sobre o efeito da redução da ingestão de álcool no risco subsequente de AVC, recomenda-se, nos sobreviventes de um AVC isquémico, moderação substancial da ingestão de bebidas alcoólicas. Nos sobreviventes de um AVC hemorrágico recomenda-se a abstinência.

5. Estilo de vida [Evidência proveniente de estudos não aleatorizados com controlos concorrentes («coorte» ou caso-controlo)]. A aplicação de recomendação gerais no campo da dieta e do exercício físico deve ser feita com sensatez apesar da falta de estudos controlados que as comprovem, não deixando de entrar em linha de conta com o seu papel na restituição da autoconfiança e independência.

6. Anti-agregantes - De acordo com o grupo de trabalho das Recomendações Terapêuticas, a introdução de medicação regular com anti-agregantes tem indicações definitivas [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixos] 
a) no caso de AIT/AVC isquémico, excepto se o doente tiver indicação para anticoagulação, 
b) após endarterectomia carotídea e 
c) nas próteses valvulares mecânicas, caso o doente sofra recorrência de embolismo apesar de correctamente anticoagulado. Há outras indicações em que a evidência é de menor grau: 
d) enfarte cerebral silencioso [Evidência proveniente de estudos não aleatorizados com controlos concorrentes («coorte» ou caso-controlo)], 
e) demência vascular, mesmo sem episódio de AIT/AVC [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) elevado] e 
f) nos doentes que já sofreram mais do que um AIT/AVC, mas em que um deles foi hemorrágico (excepto se tiver sido o mais recente) [Evidência proveniente de séries de casos, casos clínicos ou opiniões de peritos]. Nas cardiopatias embolígenas de alto risco, caso o doente sofra recorrência de embolismo apesar de correctamente anticoagulado, deve adicionar-se um anti-agregante [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixos]. A anti-agregação deve ser iniciada logo que o médico faz o diagnóstico de AVC ou AIT. Se houver uma suspeita clínica de hemorragia intracraneana, deve realizar-se previamente a TAC. De outro modo, a não realização da TAC não contra-indica a prescrição de anti-agregantes [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixos].

Escolha do anti-agregante e doses
AAS – 75 a 325 mg/dia [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixos]. Para se obter um efeito anti-agregante mais rápido, pode usar-se uma dose inicial (1ª toma) mais elevada (500-1000 mg) de AAS [Evidência proveniente de séries de casos, casos clínicos ou opiniões de peritos]. Em alternativa, nos casos de 
a) contra-indicação para ou intolerância ao AAS [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixo], 
b) se houver recorrência de AIT/AVC em doentes a tomar AAS [Evidência proveniente de séries de casos, casos clínicos ou opiniões de peritos] ou 
c) risco elevado de recorrência [Evidência proveniente de séries de casos, casos clínicos ou opiniões de peritos], pode usar-se:
Ticlopidina – 250 mg 2x/dia [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixo]
Dipiridamol – 200 mg 2x/dia, pode adicionar-se ao AAS [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixo]
[Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou b (falsos negativos) baixo]
Triflusal – 2x 300 mg/dia [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou b (falsos negativos) elevado] 
Anti-coagulantes – O uso de medicação regular com anti-coagulantes orais está reservado a casos de cardiopatias embolígenas de alto-médio risco (próteses valvulares mecânicas, mixoma auricular, trombos intracavitários, valvulopatia mitral reumática, fibrilhação auricular não valvular, doença do nódulo sinusal, endocardites e miocardiopatias dilatadas) [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou b (falsos negativos) baixo]. 
Nas cardiopatias de baixo risco (estenose aórtica calcificada, calcificação do anel mitral, foramen oval patente (FOP), aneurisma do septo interauricular, comunicação interauricular (CIA), prolapso da válvula mitral, área acinética/discinética ou aneurisma da parede ventricular, estase auricular, «strands» da válvula mitral, ateroma protuberante (>4 mm) ou com componente móvel do arco aórtico) pode optar-se, na prevenção secundária do AVC, por um dos seguintes: AAS: 250 a 300 mg/dia [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou b (falsos negativos) baixo], anticoagulação oral [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) elevado] ou anticoagulação oral nos 3 a 6 meses após o AVC, seguido de aspirina 250 a 300 mg/dia [Evidência proveniente de séries de casos, casos clínicos ou opiniões de peritos].

Cirurgia vascular – A endarterectomia na prevenção secundária e primária do AVC isquémico está indicada [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro
a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) baixo] em casos de estenose carotídea sintomática (Acidentes Isquémicos Transitórios (AIT) ou Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC) isquémicos não incapacitantes, na presença de estenose da artéria carótida interna ipsilateral de 80% - 99%) comprovada por angiografia. Essa indicação deixa de existir se a estenose for inferior a 80% ou houver oclusão. É considerada aceitável [Evidência proveniente de pelo menos um ensaio controlado e aleatorizado com erro a (falsos positivos) ou ß (falsos negativos) elevado] a indicação de endarterectomia em casos de estenose carotídea assintomática e superior a 80% mas apenas em centros com experiência e comprovada baixa mortalidade e morbilidade angiográfica e peri-operatória. 
4
D. Reabilitação de défices
As doenças cerebrovasculares, entre as doenças crónicas, constituem, num estudo incidindo sobre mais de 6000 pessoas não-institucionalizadas de idade superior a 70 anos, o factor de risco relativo mais elevado conducente à perda de capacidades funcionais. Estes dados apoiam a noção intuitiva de que as medidas preventivas (primárias ou secundárias) assim como as medidas de reabilitação funcional são da maior importância.
Vários autores têm procurado algoritmos de avaliação do doente com AVC para determinar ou predizer quais os factores que influenciam a futura resposta a medidas de reabilitação mas os estudos não têm sido conclusivos. Aparentemente a passividade perante casos de maior gravidade ou perturbados por maior número de complicações é habitualmente condicionada por atitudes sem seguro fundamento estatístico. O preconceito negativo pode tomar uma das seguintes formas: o acidente é tão grave que não tem recuperação, o doente está demasiado mal para receber reabilitação, a reabilitação é inútil mesmo que possível ou a reabilitação é demasiado cara mesmo que eficaz.

1. Cuidados imediatos
Os cuidados a aplicar nas primeiras horas são os cuidados gerais de enfermaria com especial atenção aos posicionamentos.

2. Cuidados seguintes
Numa segunda fase, que pode já ser no domicílio ou ainda na enfermaria, os cuidados de reabilitação alargam-se à prevenção das consequências da imobilidade (por exemplo, mudar de decúbitos com a maior frequência possível e modificar as posições dos membros paralisados são medidas essenciais à prevenção das perturbações articulares).

3. Reabilitação orientada
Programa a estabelecer pela Fisiatria e adaptado às circunstância de casa caso concreto o qual deve incluir, sempre que possível, o ensino dos familiares ou pessoas que cuidam ou irão cuidar do doente. Um revisão da literatura de 1958 a 1998 revelou que a maior aplicação de técnicas funcionais no início da reabilitação, a precocidade e a multidisciplinaridade das intervenções de reabilitação são os factores que mais contribuem para melhores resultados, enquanto que a maior intensidade dos serviços e o recurso a serviços mais especializados terão menor influência.
5
Bibliografia

Boult C, Brummel-Smith K. Post-stroke rehabilitation guidelines. The Clinical Practice Committee of the American Geriatrics Society. J Am Geriatr Soc 1997 Jul;45(7):881-3.

Boult C, Kane RL; Louis TA; Boult, L; McCaffrey D. Chronic conditions that lead to functional limitation in the elderly. J Gerontol 1994 Jan;49(1):M28-36.

Cifu DX, Stewart. Factors affecting functional outcome after stroke: a critical review of rehabilitation interventions. Arch Phys Med Rehabil 1999 May;80(5 Suppl 1):S35-9.

Donnan GA, You R, Thrift A; McNeil JJ. Smoking as a risk factor for stroke. Cerebrovasc Dis 1993; 3: 129-38.

European Carotid Surgery Trialist’ Collaborative Group: Randomized Trial for recently symptomatic carotid stenosis: final results of the MRC European Carotid Surgery Trial. Lancet 1998;351:1379-87.

Fihn SD. Aiming for safe anticoagulation. N Eng Med 1995; 333: 54-5.

Gladman JR; Sackley CM. The scope for rehabilitation in severely disabled stroke patients. Disabil Rehabil 1998 Oct;20(10):391-4.

Gonçalves A; Cardoso S. Prevalência dos acidentes vasculares cerebrais em Coimbra. Acta Med Port 1997; 10: 543-50.

Law MR, Wald NJ, Wu T, Hackshaw A, Bailay A. Systematic underestimation of association between serum cholesterol concentration and ischaemic heart disease in observational studies data from the BUPA study. Br Med J 1994; 308: 363-79.

O'Mahony PG, Thomson RG, Dobson R; Rodgers HJ. The prevalence of stroke and associated disability. J Public Health Med 1999 Jun;21(2):166-71.

Peto R. Smoking and death: the past 40 years and the next 40. Br Med J 1994; 309: 937-9.

Pinto An, Melo Tp, Lourenço ME, Leandro MJ; Brazio A; Carvalho L; Franco AS; Ferro JM: Can a clinical classification of stroke predict complications and treatments during hospitalization? Cerebrovasc Dis 1998 Jul-Aug;8(4):204-9

Prevenção Secundária do Acidente Vascular Cerebral, Recomendações Terapêuticas [http://www. ordemmedicos.pt/recomterapeuticas/recomd101/index.htm]. Comissão redactorial: José M. Ferro (coordenador), Manuel Correia e António Freire. Colaboração do Grupo de Trabalho do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar: Jesus Perez y Sanchez, Maria Alexandra Abrunhosa e Maria Filomena Perez y Sanchez.

Prevenção Secundária do Acidente Vascular Cerebral, Recomendações Terapêuticas – obra citada.

Rodgers A, Macmahon S, Gamble G, Slattery J, Sandercock P e Warlow C on behalf of the UK TIA collaborative group: Blood pressure is an important predictor of future stroke in individuals with cerebrovascular disease. Br Med J 1996; 313: 147.

Tanne D, Yaari S, Goldbourt U. Risk profile and prediction of long-term ischemic stroke mortality: a 21-year follow-up in the Israeli Ischemic Heart Disease (IIHD) Project. Circulation 1998 Oct 6; 98(14): 1365-71.

Watson LD; Quinn DA. Stages of stroke: a model for stroke rehabilitation. Br J Nurs 1998 Jun 11-24; 7(11) :631-40.