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Parte IV – Problemas clínicos
4.6. Abordagem do paciente com problemas neurológicos
263. Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF)
Emília Teixeira
Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

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Fernandes, C 

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Breve História da Doença
Pensa-se ter ocorrido, na Póvoa do Varzim, há cerca de 300 anos, a primeira mutação genética que deu origem à doença. O facto de se tratar de uma população piscatória com relações comerciais e movimentos migratórios frequentes explica a distribuição da doença pela costa portuguesa, bacia mediterrânica, Suécia, Irlanda, Japão, Brasil, França e Alemanha. 
Quando em 1939 o Dr. Corino de Andrade observou uma doente de 37 anos, natural da Póvoa do Varzim, com um quadro clínico neurológico complexo associado a perturbações digestivas e que referia existirem outros familiares e vizinhos com quadros semelhantes, ao qual chamavam a «Doença dos Pezinhos», iniciou um longo processo de investigação «in loco» que culminou em 1951 com a publicação na revista «Brain» da descrição de uma nova entidade clínica, uma polineuropatia mista (sensitiva, autonómica e motora) que viria a ser designada em 1956, por Mello, como Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF), Tipo I ou de Andrade.
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Descrição
A Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) é uma amiloidose sistémica de transmissão autossómica dominante. Em 1970 Costa PP et al. identificam o marcador genético da doença, sito no cromossoma 18, e que consiste numa substituição do AA Valina pelo AA Metionina na posição 30 da proteína Transterrina dando origem a uma proteína anómala a TTR met 30, cuja síntese é efectuada no fígado em cerca de 90%. Histopatologicamente caracteriza-se pela deposição de substância amilóide a nível vascular: capilares e arteríolas, a nível do sistema nervoso periférico, e em menor grau a nível dos rins, coração, fígado e cérebro: meninges e plexos coroideus.
A idade do início da doença varia entre os 17 e 78 anos, sendo mais frequente entre os 25 e os 30 anos. A idade média situa-se nos 33,5 anos com um desvio padrão (d.p.) de 9,4 anos. 87% sofrem as primeiras manifestações da doença antes dos 40 anos. Existe predomínio de homens com idade de inicio da doença mais precoce (28,9a / d.p. 6,4a) que as mulheres (33,8/d.p.5,9).
O tempo de duração da doença varia entre 4 e 31 anos com uma média de 10,9a / d.p. 3,9a.
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Manifestações Clínicas
A doença inicia-se mais frequentemente por parestesias das extremidades (43,7%) e perturbações digestivas (44,2%). Estas, ao precederem em alguns casos a sintomatologia neurológica, implicam um diagnóstico diferencial cuidadoso nos doentes com história familiar sugestiva de PAF. Mais raramente são a perda de peso, a fadiga ou a impotência sexual que anunciam a doença. Em alguns casos o conjunto destes sintomas surge em simultâneo. Dado o caracter hereditário da doença um grande numero de indivíduos afectados conhece tão bem os sintomas que são levados a sobrepor as suas manifestações de doença com as de familiares próximos, dificultando o diagnóstico.

Quadro Neurológico: Polineuropatia mista

Sensitiva
Inicia-se com parestesias seguidas de sensações térmicas e dolorosas nas extremidades dos membros inferiores que progridem centrípeta e simetricamente, em «dying back», para os membros superiores e tronco, sem atingimento da cabeça. 

Motora
Surge cerca de um a dois anos após as manifestações sensitivas com igual progressão. Apresenta diminuição da força muscular com atrofia dos músculos na fase terminal. A paresia e paralisia dos músculos extensores produz uma marcha característica com os doentes a apoiarem-se na extremidade anterior dos pés. Os reflexos mantêm-se inicialmente conservados, o 1º a ser atingido é o reflexo aquiliano, depois o patelar e posteriormente os das extremidades superiores. 

Autónoma
Problemas digestivos: alternância obstipação/ diarreia, disfagia alta, vómitos, xerostomia, aerocolia e distensão abdominal, incontinência fecal por perda do controle de esfíncteres. A fisiopatologia destas manifestações não se encontra ainda bem estabelecida.

Quadro Cardiovascular:
Alterações electrocardiográficas com falso quadro de enfarte e perturbações da condução por deposição de substância amilóide e disautonomia, obrigando com frequência ao implante de «pace maker». Ausência de sinais e sintomas de insuficiência cardíaca congestiva. Hipotensão (80% em fase avançada) por desregulação do reflexo barorreceptor e baixos valores de noradrenalina.

Quadro Oftalmológico:
Abolição do reflexo de acomodação à luz, anisocoria, secura ocular e chanfradura do bordo ocular. Opacidade do vítreo e glaucoma secundários surgem por deposição de substância amilóide.

Quadro Dermatológico:
Lesões tróficas da pele e ulcerações das extremidades, na fase avançada da doença, com grande dificuldade de cicatrização, chegando a aparecer necroses ósseas com mutilação das extremidades. São também frequentes lesões traumáticas por hipostesia térmica e dolorosa.

Quadro Renal:
Fraca deposição amilóide. Inicia-se por microalbuminúria com progressão para proteinúria, frequentemente nefrótica e posteriormente insuficiência renal crónica terminal (IRCT). A hematúria e cilindrúria estão geralmente ausentes e o tempo médio de evolução para a insuficiência renal é de 5 anos. A hemodiálise é a técnica de substituição renal mais indicada.

Quadro Sexual e Esfincteriano:
Impotência precoce, o orgasmo, a libido e a ejaculação são preservados inicialmente acabando por desaparecer na fase final.
As alterações esfincterianas, vesical e anal são pouco frequentes e tardias podendo em alguns doentes resultar em incontinência.
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Diagnóstico
História familiar de PAF sugestiva de hereditariedade autossomica dominante
Quadro clínico típico (descrito)
Achado de substância amilóide (biópsia de nervo da pele)
Identificação da TTRMet30 no sangue
Electromiografia 
Avaliação da condução motora e sensitiva periféricas e do Sistema Nervoso Autónomo
Potenciais evocados (arco reflexo sagrado)
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Tratamento
Doença incurável
Reequilíbrio das funções com perturbações: musculares, digestivas, urinárias, vasculares, respiratórias e outras
Transplante hepático (longa lista de espera)
Imunodepuração: filtração do sangue, retirando a TTRMet30 através do uso de anticorpos monoclonais.
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Prevenção
Dado o carácter hereditário e incurável da PAF só o impedimento da procriação de indivíduos infectados trava a sua disseminação.
Desde a descoberta do marcador genético, em 1978, tornou-se possível identificar precocemente os indivíduos portadores quer por amostra de sangue/biópsia, que por imperativos éticos só é efectuada a indivíduos de risco, com mais de 18 anos que a requeiram expressamente, quer por análise do liquido amniótico, cujo resultado deve ser obtido na fase precoce da gravidez para permitir aos pais optar pela interrupção voluntária da mesma se assim o desejarem. Dada a grande susceptibilidade destes pacientes e da problemática em si, o desafio que o médico de família enfrenta ao abordar esta questão exige não só uma sólida preparação técnico-científica como uma boa relação médico-doente que inspire confiança e respeite as decisões tomadas.
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Aspectos Sociais e Psicológicos
A PAF atinge de forma progressivamente incapacitante indivíduos em plena maturidade, 3ª/4ª décadas da vida, já com compromissos conjugais, económicos e profissionais assumidos, criando problemas em todas as vertentes existenciais do doente, com um impacto emocional e psicológico muito negativo, em que o papel do médico de família se torna muitas vezes fundamental como gestor, quer dos recursos terapêuticos, quer dos apoios sociais e familiares que o doente tanto necessita.
Desde muito cedo os filhos dos doentes com PAF são vítimas indirectas da doença ao serem: criados em ambiente de grande sobrecarga psicológica, frequentemente privados dos cuidados parentais; potenciais portadores; sujeitos precocemente a tomada de decisões difíceis quanto à estruturação da vida. Este quadro vivêncial, sejam as crianças e os jovens portadores ou não, exige uma atenção especial do médico de família que lhe permita actuar precocemente e detectar pequenos desvios na funcionalidade e bem estar destes indevidos. Ao criar, desde cedo, uma boa relação médico/paciente o médico de família está a criar condições para minorar as consequências nefastas da doença no futuro.