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Parte V - Situações de urgência ou de crise
5.1. Urgências e emergências médicas

510. Cetoacidose diabética
Rosa Gallego

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Robalo, J.


Situação de emergência evitável, com mortalidade que ronda os 10%, ainda demasiado frequente em Portugal (fig. 1).
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Figura 1
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Definição
Situação de emergência resultante de uma carência absoluta ou relativa de insulina. Surge, em geral, devido a intercorrência, por suspensão de insulina ou, ainda, no início do quadro clínico da diabetes do tipo 1, especialmente na criança, e das quais resulta um quadro clínico que assenta nas seguintes alterações:
1. Hiperglicemia
2. Cetose (presença de acetoacetato e hidroxibutirato)
3. Acidose metabólica, com ou sem acidemia
4. Desidratação
5. Alterações celulares
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Fisiopatologia
A carência de insulina conduz à hiperglicemia e à “fome intracelular” com consequente produção hepática de corpos cetónicos que, por sua vez, irão provocar as náuseas e os vómitos. A glicosúria consequente à hiperglicemia, leva ao aumento da espoliação de água, e de iões Na e K. A desidratação ocorre primeiro no espaço intracelular pela acção osmótica da glicose – que determina a ausência de saliva – tornando-se depois global pela espoliação renal, agravada pela náusea e vómito, que por sua vez bloqueiam a polidipsia compensadora, observando-se então prega cutânea.
A desidratação com hipovolemia e a acidemia condicionam a perturbação da consciência e também da perfusão tecidular, nomeadamente cardíaca podendo determinar o choque.
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Causas
Pode surgir em qualquer diabético do tipo 1, mas também no diabético do tipo 2 sujeito a intenso stress.
As causas mais frequentes são:
1. Intercorrências: 
gastroenterite
infecção grave
acidente vascular – coronário, cerebral, mesentério, etc.
2. Forma de apresentação da diabetes do tipo 1, por atraso do diagnóstico em doente já com sintomas (“polis”).
3. Omissão da injecção de insulina (erro mais frequente na adolescência)
4. Grave erro alimentar
5. Mais de 50% têm causa desconhecida na maioria dos estudos.
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Diagnóstico

A clínica impõe o diagnóstico!


Sintomas e sinais:
1. Astenia progressiva
2. Anorexia
3. Náuseas e vómitos
4. Presença de “Polis” (poliúria e polidipsia)
5. Polipneia (dispneia de Kussmaul)
6. Boca seca (sem saliva) 
7. Dor abdominal, pode estar presente (também torácica ou outras localizações) 
8. A suspeita de íleos paralítico sugere grave prognóstico
9. Temperatura normal ou baixa (se alta suspeitar de infecção subjacente)
10. Prega cutânea em fases mais tardias, já com desidratação global grave

Confirmar o diagnóstico de imediato:

Glicemia ≥ 200 mg (11 mmol/l)
Glicosúria e cetonúria positivas (++, +++) – se o diabético não consegue urinar testar na secreção lacrimal ou deve fazer-se determinação de cetonémia (betahidroxibutiratos) utilizando as tiras teste do Precision Extra ®. (se apenas + com glicemia < 200 suspeitar de hipo) . A concentração da glicemia não está relacionada com a gravidade da cetoacidose, pelo que se deve tratar esta situaçção com todo o cuidado.

O laboratório poderá ainda mostrar:
(Como se trata de uma emergência actue perante a suspeita e não espere por testes de laboratório)

Leucocitose – constante (devida à acidose)
Neutrofilia – se houver infecção
Acidose – mais tarde acidemia
K+ – normal ou, mais frequentemente, elevado devido à saída do potássio celular com a acidose
Na+ – baixo, face à modesta concentração osmolar (se marcada descida, artefacto por hipertrigliceridemia ou devido aos vómitos intensos), mas pode estar normal ou elevado. 

A atenção precoce aos sintomas já referidos permite o diagnóstico, quer na diabetes tipo 1 inaugural, quer em diabéticos conhecidos em fase de descompensação.
 
O diabético deve estar educado para fazer a pesquisa de cetonúria ou cetonémia, sempre que suspeitar de desequilíbrio (glicemia> 300 mg/dl ou > 16.5 mmol/l).
Se há cetonúria deve efectuar de imediato a sua correcção.
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Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico diferencial tem de se fazer com as situações de acidose metabólica com produção aumentada corpos cetónicos:

1. Cetoacidose alcoólica -neste caso a história de jejum prolongado e de vómitos intensos, com valores normais ou moderadamente elevados de glicemia, associada à ingestão aguda ou crónica de álcool, fará a suspeita diagnóstica.

2. Cetoacidose da fome
– em geral ligeira, pode ocorrer após fome prolongada

3. E outras causas de acidose metabólica com aumento da produção de ácido láctico

Acidose láctica secundária a falência respiratória ou circulatória

Acidose láctica associada a outras alterações


Acidose láctica induzida por drogas e toxinas – A provocada pelas biguanidas (lembrar que a induzida pela metformina, embora mais rara que pela fenformina, pode ocorrer)

Acidose láctica devida a defeitos enzimáticos


Acidose pós envenenamento por salicilatos, metanol e glicol de etileno. 
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Tratamento

Cetose ligeira 
1. sem intercorrência ou intercorrência ligeira:
Dar insulina cristalina (quadro 1)
Rever regime alimentar – restringir ração lipídica
Aumentar ingestão hídrica de, preferência com fluidos com sal, como caldos sem gordura (ex.: Maggi® ou Knorr®)
Rever parâmetros de diagnóstico ao fim de 2 h (glicemia e cetonúria)

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Quadro I
-Insulina Cristalina (Actrapid®, Isuhuman Rapid®, Humulin Regular®) subcutânea ou IM), consoante o valor da glicemia. Se:

< 250 mg/dl (13.7 mmol/l) dar 6 U

> 250 mg/dl < 350 mg/dl (19,3 mmol/l) dar 8 U

> 350 < 450 (24.8 mmol/l) dar 10 U

> 450 dar 12 U (± 0,2 /kg/peso)

cada 2 h rever a cetonúria e glicemia, até corrigir a cetonúria e obter valores de glicemia < 200 mg/dl (11 mmol/l).


Se corrigido:
Diabetes do tipo 2

Parar biguanida, e reavaliar a terapêutica.

Nota: Quando se suspeita de cetoacidose metabólica num diabético tipo 2, para além de um quadro hiperosmolar, aquele deve ser avaliado de preferência com o apoio da equipa de diabetes hospitalar
Diabetes do tipo 1

Aumenta dose de insulina habitual

Propor reforço de auto vigilância com glicemias às 3 refeições e insulina cristalina sempre que necessário até que a causa desapareça, as necessidades diminuam e consequentemente as doses também 
Se não corrigido:
Repetir o procedimento terapêutico e entrar em contacto com a equipa de urgência hospitalar

2. com doença inter-corrente grave: (quadro II)

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Quadro II
Insulina Cristalina (Actrapid®, Isuhuman Rapid®, Humulin Regular®) – 0,2 U/kg/peso IM. ou subcutânea

Soro fisiológico 40/50 gotas/minuto IV (2 l nas primeiras 4 h. (Seja mais cauteloso no idoso e em diabéticos com insuficiência cardíaca ou enfarte do miocárdio).


Dar insulina cristalina

Iniciar hidratação. Se consciente e sem vómitos pode tentar-se a ingestão de caldos de carne ainda em casa, mas se está inconsciente ou a vomitar deve iniciar-se IV de imediato.

Enviar de imediato ao serviço de urgência hospitalar
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Cetose Moderada ou Grave
A actuação do médico de família deve centrar-se por forma a garantir o envio ao serviço de urgência hospitalar com:

Informação da situação clínica do doente

Início hidratação e terapêutica com insulina por via IM (intramuscular) (quadro II)

A cetoacidose diabética é uma emergência médica para cuja prevenção o médico de família deve preparar o diabético e a sua família, em colaboração com a equipa de diabetes dos cuidados secundários, reforçando a educação terapêutica sobre as suas causas mais frequentes, o diagnóstico e o seu tratamento em fases precoces. Na eventualidade de cetose moderada ou grave, a sua identificação e a referenciação atempada do diabético sob hidratação e insulinoterapia pode, não só diminuir o risco de morte, como de duração do internamento.
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A reter:
Perante uma suspeita de cetoacidose há que:

1. Averiguar causa mais provável 

2. Evitar desidratação

3. Corrigir a glicemia se diabética

4. Referenciar adequadamente ao hospital se moderada ou grave, ou em caso de dúvida
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Bibliografia
Duarte R. Diabetologia Clínica. 1ª ed. Lidel, Lisboa: 1997.

Harrisson’s Principles of Internal Medicine. 14th edition: 1998.

Joslin Textbook of Diabetes; 1996.