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Parte V - Situações de urgência ou de crise
5.3. Intoxicações e envenenamentos

527. Cuidados gerais na suspeita de intoxicação
Maria Felisberta Pinto Leal

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Robalo, J.


"Todas as substâncias, sem excepção, são venenos, somente a dose distingue um veneno de um medicamento"
Paracélsio
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Introdução
As intoxicações voluntárias e involuntárias continuam a ser um problema. De acordo com as estatísticas da Associação Americana de Controlo e Acompanhamento de Intoxicações em 1994, ocorreram 1,93 milhões de intoxicações. Em Portugal, em 1996, foram referidas, na totalidade, 300 mortes por intoxicações, in "Elementos Estatísticos da Saúde/96", publicados em Novembro de 1998. Os grupos etários mais atingidos foram as crianças com idades compreendidas entre 1 e 4 anos e os adultos com idades entre 20 e 49 anos, desconhecendo-se o número total de intoxicações.

Define-se como tóxico ou veneno toda a substância que tem, potencialmente, a capacidade de provocar lesão no organismo, quer prejudicando-o no seu normal funcionamento, quer destruindo reversível ou irreversivelmente as suas funções vitais. Contudo, há substâncias, como os medicamentos que, não sendo consideradas como tóxicos, podem provocar, em determinadas condições, lesões graves ou mesmo a morte. 

As intoxicações podem ser agudas ou crónicas de acordo com o período de tempo que decorre entre a introdução do tóxico no organismo e o aparecimento da sintomatologia. O diagnóstico clínico de uma intoxicação aguda baseia-se geralmente na história de ingestão da substância, bem como nos sintomas ou sinais clínicos. Por vezes, o diagnóstico é ajudado pela medicina legal e pela toxicologia forense e só é possível após a morte.

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Prevenção das intoxicações
A frequência cada vez maior de intoxicações acidentais leva-nos a concluir que é necessário reforçar as medidas preventivas. 
As intoxicações domésticas têm como principais vítimas as crianças entre um e cinco anos de idade, pelo que a educação dos pais é fundamental. Eles devem ser informados acerca da toxicidade dos produtos químicos de uso diário e da necessidade de os guardar fora do alcance das crianças. Recomenda-se: 

1. Identificar as embalagens com rótulos que possam ser facilmente compreendidos, recorrendo aos sinais de toxicidade.

2. Fechar bem as embalagens e guardar em armários ou gavetas altas.

3. Os produtos de limpeza e lacas nunca devem ficar na cozinha ou na casa de banho em prateleiras baixas ou no chão.

4. Não colocar produtos tóxicos em copos ou garrafas, para evitar a ingestão involuntária.
Os produtos químicos usados na agricultura requerem determinados cuidados: 

5. Não devem ser armazenados junto de alimentos.

6. Os recipientes, após a utilização dos produtos, devem ser queimados.

7. O vestuário utilizado no manuseamento desses produtos deve ser adequado e ser limpo e guardado fora do alcance das crianças.

Igualmente as intoxicações profissionais se podem prevenir:

1. A informação sobre os perigos inerentes ao manuseamento de determinadas substâncias, bem como sobre as medidas de actuação face às mesmas deve ser fornecida aos manipuladores dos produtos.

2. Deve ser obrigatório o uso de equipamento de protecção.

3. A ventilação deve ser adequada aos locais de trabalho.

4. As instalações devem ter bons meios de evacuação.

5. Exames médicos periódicos devem ser feitos aos trabalhadores expostos aos tóxicos.

Consideremos também a intoxicação suicida que ocorre sobretudo em doentes do foro psiquiátrico a fazer uma medicação no ambulatório e que, carenciados de apoio, ultrapassam as doses terapêuticas de forma voluntária. Nestes casos, parece-nos útil o conhecimento das tendências suicidas do doente por parte dos familiares, para que estes possam contactar o médico quando surgirem os primeiros sintomas de descompensação do quadro clínico. Sabe-se que esta tentativa suicida ocorre habitualmente entre as 23 horas e a 1 hora. A observação pelo psiquiatra é obrigatória antes da alta. 
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Primeiros cuidados perante o intoxicado
Perante qualquer quadro tóxico importa saber qual a via de absorção e o tempo decorrido desde o momento da intoxicação. 
A terapêutica assenta em quatro princípios básicos:
1. Identificação do tóxico,
2. Cálculo da quantidade ingerida
3. Remoção e/ou neutralização do tóxico
4. Manutenção das funções vitais
A identificação do tóxico pode ser feita pelo rótulo do recipiente, pelo interrogatório, por sintomas e sinais característicos, pela análise química ou por uma consulta aos fabricantes ou ao centro de intoxicações. (217 950 143)

Há elementos na anamnese que nos podem orientar quanto ao tipo de intoxicação em causa. Contudo, esta informação pode não ser fácil de obter por o doente se encontrar em estado de confusão mental ou até em coma ou, então, deliberadamente querer omitir uma tentativa de suicídio, colaborando mal no interrogatório. É importante saber o local onde foi encontrada a vítima por exemplo, se foi no local de trabalho, poderá tratar-se de um tóxico que exista no ambiente profissional. Devemos pesquisar os antecedentes pessoais, como o passado psiquiátrico, a farmacodependência, eventuais comportamentos de adição, bem como os medicamentos de consumo habitual. Convém igualmente tentar saber há quanto tempo o doente foi visto consciente pela última vez.
Entre os cuidados a prestar à vítima, há uns que são mais urgentes do que outros. Assim podemos falar em:

1. Cuidados imediatos: são um conjunto de medidas a serem prestadas nos momentos que se seguem à intoxicação, preferencialmente no próprio local da intoxicação. Têm como objectivo manter as funções vitais, prevenir a absorção do tóxico, eliminar o tóxico.

2. Cuidados subsequentes: são geralmente prestados no centro médico e incluem as medidas de suporte de vida, o uso de antídotos específicos, se os houver, e o acompanhamento clínico do doente.

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Prevenção da absorção do tóxico
Sabe-se que 75% das intoxicações são por via oral, pelo que importa impedir ou diminuir a absorção intestinal do tóxico.

Uso de eméticos ou medidas emetizantes:
Algumas medidas usadas na década de 70, como o uso de claras de ovos, água com mostarda, água e sal, estimulação posterior da faringe, mostraram-se não só não efectivas como susceptíveis de causar complicações.
O xarope de Ipecacuanha não deve ser dado por rotina. Em 1994, só foi usado em 2,4% das vítimas de intoxicações porque só parece trazer benefícios se o vómito ocorrer dentro de 60 minutos após a ingestão do tóxico e não houver contra-indicações. São recomendadas 5 a 10 ml de xarope em crianças com menos de um ano, e 15 ml nas crianças acima de um ano e até aos 12 anos. Para os adultos, preconiza-se a dose de 15 a 30 ml. Um copo de água, de cerca de 200 ml, deverá ser dado antes ou depois da ingestão. A dose deve ser repetida depois de 20 a 30 minutos e não deve repetir-se mais de duas vezes.
O leite, embora não interfira com a absorção do xarope de Ipecacuanha, não deve ser dado porque está contra-indicado nalgumas intoxicações e dificulta a visualização do tóxico no vómito. 
As complicações possíveis do vómito são a pneumonia por aspiração, a ruptura diafragmática, as erosões esofágicas e a hemorragia cerebral.
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A lavagem gástrica
Actualmente a lavagem gástrica não deve ser encarada como um procedimento de rotina pois, a sua eficácia depende do tempo que decorreu entre a ingestão do tóxico e a sua realização. É útil na primeira hora (remove cerca 30% do conteúdo gástrico), e até nas primeiras quatro horas, quando se suspeite de uma intoxicação por antidepressivos cíclicos ou salicilatos que permanecem no estômago por mais tempo. Deve-se preferir a técnica da gravidade em vez da tradicional introdução do líquido de lavagem seguido de aspiração devido à possibilidade de, em vez de estarmos a diminuir a absorção do tóxico, contribuirmos para a sua passagem para o intestino delgado e acelerarmos a sua absorção.

Nos adultos usa-se 300 ml de uma solução salina isotónica de cada vez até que o líquido de saída se apresente limpo e sem detritos. Os adolescentes e as crianças deverão receber cerca de 10 a 15 ml/kg. 

As complicações, embora raras, são o laringo-espasmo e a perfuração do esófago. Está contra-indicada quando se suspeita de uma substância cáustica, dado o efeito corrosivo a nível do esófago, e deverá ser feita com muito cuidado quando o líquido ingerido for petróleo destilado devido ao risco de pneumonia de aspiração.
Embora actualmente a sua importância se mantenha tem vindo a ser substituída pelo uso de carvão activado.

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O carvão activado
A eficácia do carvão activado consiste em prevenir a absorção do tóxico, funcionando como uma esponja e adsorvendo tóxicos com moléculas de peso molecular entre os 100 e os 1000 daltons. Moléculas como o ferro e o lítio não são adsorvidas pelo carvão activado devido ao seu baixo peso molecular. O carvão activado é inerte, não tem efeitos farmacológicos e, por isso mesmo, pode ser usado com antídotos, agentes farmacológicos ou outros medicamentos que melhorem a hemodinâmica. Pode ser usado mesmo quando já decorreu algum tempo após a ingestão do tóxico devido ao seu efeito adsorvente ao longo tubo digestivo.

A preparação comercial do carvão activado deve ser vigorosamente agitada, porque o carvão activado não forma uma boa suspensão com a água, e pode-se administrar por via oral, voluntariamente, ou por sonda nasogástrica. Normalmente é suficiente uma única dose, mas pode repetir-se a dose. A administração em doses múltiplas é particularmente útil para a absorção das substâncias que entram na circulação entero-hepática como a digoxina, ou que têm absorção intestinal como o fenobarbital, a carbamazepina e a teofilina. Como efeitos adversos do carvão activado são referidos o vómito, mais devido ao sorbitol da preparação, e a diarreia. A aspiração de pequenas partículas de carvão activado geralmente não constitui problema, salvo se for uma quantidade apreciável que pode provocar asfixia. Está contra-indicado quando há ausência de ruídos intestinais, sinais de peritonite ou oclusão intestinal, choque ou má perfusão tecidual. Nas hematémeses deve ser utilizado com precaução.

A Colestiramina pode ser útil (4 mg de 8 em 8 horas) para aumentar a eliminação da digoxina, do fenobarbital, da varfarina, do lorazepam, do metotrexato e do lindano.

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Clister de limpeza

Praticamente não se usa e não tem interesse, excepto na intoxicação por lítio ou por ferro, em altas doses, onde o carvão activado não revela qualquer eficácia.
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Antídotos
Um antídoto é um agente que reverte ou neutraliza um agente tóxico. Apesar da sua importância, o uso de antídotos é limitado a cerca de 1% das intoxicações devido à especificidade dos tóxicos nos quais a sua administração é eficaz.
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Administração endovenosa de fluidos
A administração endovenosa de fluidos não tem sido referida na literatura como eficaz e necessita que o tóxico seja hidrossolúvel e ionizável. Está associada a aumento do risco de edema pulmonar e de hiponatremia e a aumento da pressão intracraneana, em especial nos doentes que têm insuficiência renal ou secreção inapropriada de hormona antidiurética.
A alcalinização da urina para um pH acima de 7.5 só se revelou eficaz para a intoxicação com salicilatos e fenobarbital e deverá ser prevenida a hipocaliemia.
Dado o risco de acidose metabólica, a acidificação da urina não está muito aconselhada, sobretudo se ocorrer insuficiência renal e rabdomiólise. No entanto, promove a eliminação de algumas substâncias como anfetaminas, bismuto, efedrina, nicotina e estricnina.

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Hemodiálise
O seu uso nas intoxicações tem sido limitado, podendo ser útil nas intoxicações por salicilatos, teofilina, lítio, metanol, etanol e etileno glicol.
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