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Parte V - Situações de urgência ou de crise
5.4. Urgências psiquiátricas/crises emocionais

531. Crise conversiva
Idalmiro Carraça

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

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A crise conversiva constitui uma manifestação da clássica histeria, desenvolvendo-se a partir da adolescência / início da vida activa, sendo mais frequente na mulher que no homem (2:1). Habitualmente os sintomas são de instalação súbita e temporária, como na crise conversiva, mas também podem ser insidiosos e evoluir para a cronicidade. As formas de apresentação do distúrbio de base podem variar entre a «belle indiférence»“, em que se constata uma desproporção notável entre a gravidade dos sintomas e a postura tranquila e indiferente do sujeito, e o dramatismo histriónico. Actualmente a crise conversiva enquadra-se no distúrbio somatoforme (DSM IV) ou no distúrbio dissociativo (ICD 10). Na verdade podem ocorrer, em momentos distintos, sintomas conversivos e dissociativos neste tipo de patologia, quando o período de observação se alarga a vários anos.
A crise conversiva constitui um motivo de urgência, outrora mais frequente mas ainda comum, manifestando-se tipicamente com um ou mais sintomas pseudo-neurológicos de tipo motor (esfera voluntária) ou sensorial – paralisia, cegueira, surdez, mutismo, parestesias, etc., de instalação súbita e frequentemente aparatosa. 
Pode encarar-se a crise como uma tentativa de resolução simbólica de um conflito inconsciente, anulando a ansiedade e o próprio conflito (ganho primário). Como afirma Debout, trata-se de uma tentativa de resolução na realidade (corpo) com possível passagem ao acto suicidário (ou outro). Os sintomas servem não apenas um fim inconsciente mas também, frequentemente, um fim externo, uma vantagem na esfera relacional ou profissional (ganho secundário). A crise representa sempre uma chamada de atenção, um pedido de ajuda, e traduz uma perda da eficácia das defesas psicológicas até ali capazes de suster a ansiedade. Os conflitos / factores de stress despoletam a crise.
Cerca de um terço da população pode apresentar, em qualquer altura da vida, uma crise conversiva isolada, frequentemente sem consequências futuras em termos de estabelecimento de um diagnóstico psiquiátrico.
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Diagnóstico diferencial
Faz-se primeiramente com doenças neurológicas, responsáveis por erros diagnósticos comuns (25 a 50% dos casos), embora possam coexistir os dois diagnósticos (30% dos casos): esclerose múltipla, «miastenia gravis», distonias idiopáticas ou medicamentosas, epilepsia, demências, tumores cerebrais e doenças sistémicas com compromisso neurológico.
Contrariamente a estes quadros constatam-se incongruências no exame neurológico: os sintomas são inconsistentes, não conformes com as vias anatómicas. O tónus e os reflexos são normais. O EEG, EMG e os potenciais evocados são negativos. Por exemplo, a ”disfagia” é igual para sólidos e líquidos. Pode observar-se, consoante os casos, ausência de resposta a estímulos dolorosos, resistência à abertura passiva dos olhos ou a movimentos passivos dos membros, posturas bizarras. No “coma” o reflexo oculovestibular (administração de água fria no ouvido) determina nistagmo, dado que o doente não está em coma. Na “cegueira” as pupilas reagem à luz e o paciente evita choques traumáticos com os obstáculos. As “quedas” ocorrem na presença de terceiros e habitualmente não trazem consequências. As “convulsões” não se acompanham de mordedura de língua ou de emissão de urina. Pode observar-se uma “anestesia” em luva ou em meia. Distúrbios psiquiátricos como a esquizofrenia, os distúrbios afectivos e os distúrbios de ansiedade têm manifestações bem diferenciadas, no entanto, podem ocorrer crises conversivas em qualquer deles. Quando a crise conversiva se limita à dor ou à esfera sexual os diagnósticos adequados serão, respectivamente, distúrbio de dor psicógena e disfunção sexual. Contrariamente aos distúrbios factícios, os sintomas da crise conversiva não são intencionalmente produzidos.
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Tratamento
O objectivo consiste em resolver a crise no âmbito de uma só intervenção, o que nem sempre é possível.
Dada a motivação inconsciente do distúrbio e grande sugestionabilidade do sujeito afectado, o tratamento baseia-se, uma vez obtida suficiente convicção diagnóstica, na desdramatização do quadro e na condução firme da observação e interrogatório. O afastamento dos acompanhantes, público de uma crise inconscientemente encenada, é frequentemente uma primeira e importante medida. Ignorar os sintomas quanto possível, não os valorizando, é igualmente útil. Devem ser evitados comentários negativos que induzam sentimentos de humilhação, vergonha ou culpa. Nunca confrontar o comportamento do doente com eventuais ganhos secundários.
A administração de benzodiazepinas, per os ou injectável, acrescenta convicção à abordagem relacional descrita e reduz a ansiedade que desencadeou a crise.
Após a reversão dos sintomas da crise, estes pacientes necessitam de acompanhamento e apoio psicológico, sendo importante ajudá-los a relacionar os factores de stress com a eclosão ou agravamento dos sintomas, estimulando novas formas de lidar com o stress e os problemas do dia-a-dia. Tratar os sintomas acompanhantes quando presentes (depressão nomeadamente). Na persistência dos sintomas, dúvidas ou gravidade, referenciar consoante o caso para despiste de patologia neurológica ou para seguimento psiquiátrico.
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Prognóstico
Na maior parte dos casos os sintomas regridem espontaneamente em poucos dias ou semanas. São elementos de bom prognóstico o início agudo, a identificação de factor de stress, o tratamento precoce e um bom nível de inteligência. Pelo contrário, evolução arrastada dos sintomas, inteligência abaixo da média, tremor / convulsões constituem habitualmente factores de mau prognóstico.
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Bibliografia
Associação Americana de Psiquiatria: DSM IV – Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais. APA 4º ed. 1996.

Cline DM, John Ma U. Emergency Medicine, 4ª ed. McGraw-Hill, 1997. 

Debout M. Psychiatrie d’Emergence – Médicine de la Crise. Masson, 1981.

Griffith HW, Dambro MR. The Five Minute Clinical Consult. Lea e Febiger, 1994: pg. 306 – 307.

Kaplan & Sadock’s. Synopsis of Psychiatry, 8ª ed. Lippincott Williams & Wilkins, 1998.

Linford Rees WL. A Short Textbook of Psychiatry. Hodder and Stoughton, 1976: pg. 210 – 215.

Stein, J.H. Internal Medicine. 4ª ed. Mosby, 1994: pg. 1023.