índice parcial
Parte V - Situações de urgência ou de crise
5.4. Urgências psiquiátricas/crises emocionais

535. Situação de «overdose»
Idalmiro Rocha Carraça
José Fragoso de Almeida

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Carraça, Idalmiro


A maioria dos toxicodependentes estão canalizados para as estruturas psiquiátricas onde são seguidos habitualmente. No entanto, muitos são seguidos pelo clínico geral que pode ter que lidar, sobretudo na urgência, com quadros de «overdose». Justifica-se assim a abordagem diagnóstica e terapêutica dos principais quadros relativamente às drogas ilícitas mais comuns. Os procedimentos de reanimação e suporte comuns às várias situações de intoxicação aguda estão desenvolvidos no capítulo sobre intoxicação etanólica aguda.
1
Opiáceos
Os opiáceos são depressores do SNC que fixam os doentes pelo efeito euforizante e de bem-estar que induzem. A dependência física e psíquica é grave aumentando a tolerância rapidamente com os consumos repetidos. Por essa razão e como a pureza do produto é muito variável, a ocorrência de «overdoses» é uma realidade a ter em conta. Surge habitualmente por acidente mas também no contexto do reinício dos consumos (a abstinência diminui a tolerância).
Atitude do Doente: Agitado, sonolento, estuporoso ou comatoso
Sintomas e Sinais: pele pálida, cianosada, húmida, miose, hipoestesia, hipotensão arterial grave (ou hipertensão), bradicardia, pulso filiforme, bradipneia ou apneia, náuseas / vómitos, trismo dos maxilares por vezes (por hipoxia).
A morte ocorre na sequência de depressão respiratória, edema agudo do pulmão (não cardiogénico) ou por complicações: pneumonia de aspiração, septicemia.
Procurar estigmas de consumo intravenoso.
Tratamento:
Manter uma boa função respiratória. Realizar os processos habituais de reanimação de urgência. Se ingestão oral realizar lavagem gástrica. Encaminhar com urgência o doente para instituição hospitalar com serviço de reanimação. Entretanto administrar medidas específicas, se possível: naloxona (antagonista opiáceo) IM ou EV lento, na dose de 0,01 mg/kg de peso. Reverte o coma e a depressão respiratória. Repetir se necessário 5 a 10 minutos depois. Se não houver resposta à 3ª dose rever o diagnóstico e considerar a hipótese de associação com outras drogas. (em alternativa pode utilizar-se naloxona na dose de 4 mg em 1000 cc de dextrose a 5%, EV gota a gota - 100 ml/hora). Uma vez desperto o doente, confirmando o abuso opiáceo, reduzir a naloxona ao mínimo para prevenir o síndrome agudo de privação, que poderá ocorrer em minutos se houver dependência física, pois o efeito do antagonista é de cerca de 2 horas enquanto o da heroína é de 4,5 horas 2,3. Por esta razão vigiar o doente de 15 em 15 minutos durante 4 a 8 horas. Quando a naloxona é administrada pela via EV, é possível que o doente acorde e queira abandonar o serviço de urgência por sua iniciativa correndo risco de recair pela mesma sobredosagem. Resolvida a emergência o doente deve ser sempre encaminhado a um centro especializado.
2
Coca
Estimulante do SNC como as anfetaminas e euforizante como a heroína condiciona dependência física e psíquica. Tem acção rápida e de curta duração pelo que quando o doente é observado raramente está em crise. Em sobredose deprime o centro respiratório, estimula o simpático e tem acção directa sobre o miocárdio – risco de arritmia.
Atitude do Doente: Eufórico ou agitado, logorreico, com labilidade emocional, ansioso ou em pânico, com delírio persecutório, eventualmente agressivo, estuporoso ou comatoso.
Sintomas e Sinais: taquicardia (a que sucede eventualmente bradicardia e colapso), palpitações, arritmias, hipertensão, taquipneia, respiração tipo Cheynes-Stokes ou paragem respiratória, midríase, febre, suores profusos, insónia, tremores, espasmos musculares, convulsões (por vezes) cefaleias, xerostomia, vómitos, excitação sexual, necessidade imperiosa de urinar / defecar. A morte ocorre geralmente por fibrilhação ventricular, hipertensão, depressão respiratória ou convulsões.
Tratamento: Fundamentalmente sintomático: Reduzir estímulos externos – luz, ruído. Acalmar o doente de forma firme e confiante. Se ingestão oral recente (até 2 horas) lavagem gástrica ou provocação do vómito. Se convulsões administrar diazepam 5 a 10 mg EV lento. Se hipertermia arrefecer o doente. Se hipertensão grave e taquicardia administrar propanolol 1 mg EV lento e repetir, se necessário, até 8 mg. Se sintomas psicóticos administrar haloperidol 5 mg IM até 4 vezes / dia ou clorpromazina 25 mg IM até 4 vezes / dia. Estar alerta para o risco de suicídio durante a síndrome de privação que pode sobrevir.
3
Cannabis
Os cannabinóides alteram a percepção da realidade e nas pessoas sensíveis podem provocar paranóias ou alucinações, desorientação no tempo e no espaço, despersonalização, ideação persecutória ou estados de pânico. Condiciona dependência psíquica mas não física. A intoxicação aguda pode provocar uma crise de ansiedade que geralmente diminui ao fim de poucas horas.
Atitude do Doente: Ligeiramente ansioso ou em pânico, logorreico, com labilidade emocional, irritável, confuso, com desprezo pelo perigo, alternando a atitude vigil com a atitude sonolenta.
Sintomas e Sinais: taquicardia, taquipneia congestão conjuntival, xerostomia, incoordenação motora, reacções psicóticas (por vezes) e reacções de «flash-back» (mesmas vivências tempo depois).
Tratamento: Ambiente tranquilo. Atitude firme e securizante. Se pânico administrar diazepam 10 mg, per os, e repetir se necessário. Se sintomas psicóticos administrar haloperidol 5 mg IM ou clorpromazida 25 mg IM.
4
Anfetaminas
Estimulantes do SNC usados no tratamento da narcolepsia e como anorexígenos. Podem conduzir rapidamente a dependência física e psíquica.
Atitude do Doente: Eufórico ou agitado, logorreico, com labilidade emocional, ansioso ou em pânico, com delírio persecutório, eventualmente agressivo, estupuroso ou comatoso.
Sintomas e Sinais: Quadro típico de hiper-estimulação simpática: taquicardia (a que sucede eventualmente bradicardia e colapso) taquipneia, respiração tipo Cheynes-Stokes ou paragem respiratória, hipertensão arterial, midríase ou pupilas normais, ansiedade, irritabilidade, agitação, insónia, euforia, desinibição, confusão, desorientação temporo-espacial, febre, suores profusos, insónia, tremores, espasmos musculares, convulsões (por vezes) cefaleias, xerostomia, vómitos, excitação sexual, necessidade imperiosa de urinar / defecar.
Tratamento: Fundamentalmente sintomático: Reduzir estímulos externos – luz, ruído. Acalmar o doente de forma firme e confiante. Se ingestão oral recente (até 2 horas) lavagem gástrica ou provocação do vómito. Se convulsões administrar diazepam 5 a 10 mg EV lento. Se hipertermia arrefecer o doente. Se hipertensão grave e taquicardia administrar propanolol 1 mg EV lento e repetir, se necessário, até 8 mg. Se sintomas psicóticos administrar haloperidol 5 mg IM até 4 vezes / dia ou clorpromazida 25 mg IM até 4 vezes / dia. Estar alerta para o risco de suicídio durante o síndrome de privação que pode sobrevir. 
5
Alucinogénios
Estes estimulantes do SNC provocam vivências psicóticas, distorção das percepções e percepções sem objecto, despersonalização e desrealização. Podem induzir dependência psíquica mas não física. A intoxicação aguda provoca um quadro alucinatório ou delirante (as alucinações são referidas como muito coloridas - psicadélicas), desorientação temporo-espacial e grande perturbação psicomotora. Cede espontaneamente em 10 a 12 horas.
Atitude do Doente: Ansioso, isolado, ou agitado ou em pânico, eventualmente agressivo, ou muito deprimido: «bad trip».
Sintomas e Sinais: taquicardia, hipertensão, taquipneia, midríase, hipertermia, tremores, náuseas, alucinações, confusão mental, fuga de ideias, risos imotivados. O quadro psíquico pode repetir-se algum tempo depois, mesmo sem a ingestão da droga – reacção de «flash-back».
Tratamento: Ambiente calmo e sem estímulos sensoriais. Se pânico ou «bad trip» tranquilizar o paciente, por exemplo chamando para junto dele alguém em quem ele confie. Pode recorrer-se ao diazepam: 10 a 30 mg, per os. Excepcionalmente haloperidol 5 mg IM ou clorpromazida 25 mg IM, repetindo se necessário.
6
Voláteis e inalantes
Grupo de substâncias heterogéneas, voláteis à temperatura ambiente, com efeito eufórico inicialmente e em doses elevadas com efeito depressor do SNC. Habitualmente inaladas de dentro de um saco ou de um pano embebido, por indivíduos muito jovens e de baixos recursos económicos. A intoxicação aguda imita um estado de etilismo agudo, sendo frequentes os seguintes sintomas: Tosse, epistáxis, congestão nasal e conjuntivite, diplopia, vómitos, cefaleias, convulsões. 
O tratamento, pelo risco de arritmia e morte súbita, deve realizar-se em urgência hospitalar, incluindo eventual reanimação cardio-respiratória e monitorização cardíaca.
7
Ecstasy
Substância alucinogénica e anfetamínica, actua por 2 ou mais horas, provocando um aumento da sensibilidade ao tacto e ao ouvido. Produz secura de boca, anorexia, sensação de calma, aproximação emocional. Com a repetição dos consumos, e elevação da dose, podem surgir ataques de pânico, insónia, confusão, náuseas, depressão (depleção da serotonina) e graves problemas cardíacos (sobretudo nos hipertensos). Pode condicionar dependência psíquica. A «overdose» exige tratamento em unidade de cuidados intensivos, sendo sintomático e de suporte, com máxima incidência nas primeiras horas após o consumo. Os sintomas mimetizam um síndrome serotoninérgico: instabilidade autonómica, hipertermia («golpe de calor»), hipertensão, agitação psico-motora, mioclonias, convulsões, delirium e coma. O tratamento exige o controlo dos sinais vitais, rehidratação com soros hidrosalinos e controlo da hipertermia, hipertensão (ß-bloqueantes ou nitroprussiato), convulsões (diazepam, fenitoína) e agitação (haloperidol ou diazepam).
8
Sedativos e hipnóticos
O uso ilícito e / ou abusivo de ansiolíticos ou hipnoindutores, em altas doses, por vezes no contexto de tentativas de suicídio ou da poli-toxicodependência, pode conduzir a situações de «overdose», que, no geral, evocam a embriaguez alcoólica: doente confuso, atáxico, desinibido, falador, disártrico, agressivo, estuporoso ou comatoso. O quadro completa-se com reacção pupilar lenta, bradipneia, bradicardia (ou taquicardia), hipotensão (ou hipertensão), pele pálida e seca, hipoestesia e relaxação muscular.
O tratamento inclui a lavagem gástrica, se indicado, hidratação e indução da diurese (ex. manitol). O antagonista flumazenil reverte os sintomas da intoxicação, numa dose cumulativa entre 1 e 3 mg habitualmente. O paciente deve recuperar a consciência gradualmente pelo que o melhor procedimento é administrar inicialmente 0,2 mg (2 ml) EV lento (30 segundos) e, ao fim de 1 minuto, 0,3 mg, se o nível de consciência obtido não for o desejado. Podem repetir-se doses de 0,5 mg, com intervalos de 1 minuto, até uma dose cumulativa total de 3 mg. Se o paciente não responde nos 5 minutos após a administração de uma dose cumulativa de 5 mg, a causa da sedação deve ser reavaliada: outra substância ou associação de substâncias, nomeadamente álcool, antidepressivos, etc.? Doses adicionais de flumazenil serão inúteis.
9
Barbitúricos
A introdução das benzodiazepinas e de outros psicotrópicos, a partir da década de 50, levou à diminuição do abuso dos barbitúricos, hoje em dia restringidos à terapêutica da epilepsia. A «overdose» constitui uma emergência, podendo ocorrer como forma de suicídio ou no contexto da poli-toxicodependência. O quadro é semelhante ao descrito para as benzodiazepinas, embora geralmente mais grave e, também, em função da semi-vida do barbitúrico utilizado, com risco de apneia súbita e de hipotermia grave.
O tratamento inicial inclui entubação traqueal e, se hipotermia, aquecimento do doente, enquanto se promove o transporte urgente para o hospital.
10
Bibliografia
Associação Americana de Psiquiatria: DSM IV: manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais. Climepsi ed. Lisboa 1996.

Kaplan HI, Sadock BJ: Kaplan & Sadock's Synopsis of Psychiatry. Lippincott illiams & Wilkins. 1998.

Patrício LDB: Face à droga: como (re)agir? Colecção Projecto Vida. 1991.

Sub-Região de Saúde de Lisboa, Divisão de Cuidados de Saúde: distúrbios mentais em cuidados de saúde primários – inquérito de um dia à população utilizadora dos centros de saúde do distrito de Lisboa. (monografia) 1999.

Wodak A: Situações urgentes produzidas pelo consumo de drogas e álcool. Pathos Jan 1: 34-40. 2000.