índice parcial
Parte I – Relação, Comunicação e Consulta
1.1. Relação e comunicação médico-paciente e médico-família

6. Obstáculos à comunicação médico - paciente
João Gabriel Rodrigues

Documento de trabalho
última actualização em Dezembro 2000

Contacto para comentários e sugestões: Brandão, Jorge


Uma mensagem pode ter vários significados, conforme o plano em que a informação é interpretada. Em primeiro lugar, temos o plano do conteúdo e o plano da relação.
O plano do conteúdo diz respeito apenas ao significado dos sinais comunicados. O plano da relação exprime o significado para a relação com o interlocutor da mensagem transmitida.
«Tenho uma pontada aqui» e aponta para o lado direito do tórax. O médico ausculta e diz que não é do pulmão, a dor deve vir da coluna. «Uma tia minha teve uma pleurisia». «Não é o seu caso» insiste o médico. A doente desconfiada pergunta: «Não é melhor fazer uma radiografia?.»
Há também os planos da linguagem verbal, não-verbal e para verbal ou vocal. Normalmente as informações são transmitidas paralelamente em vários níveis e a qualidade da comunicação sofre com as limitações à sua expressão.
1
Erros na técnica do diálogo que dificultam a comunicação
Perguntas pouco abertas ou directas que não permitem ao doente dar a informação das suas percepções da doença. Perguntar «porquê?» pode levar o doente a pensar que fez qualquer coisa errada.
Perguntas sugestivas - «Não se cansa quando sobe as escadas?» - a resposta está dentro da pergunta, o doente aceita os sintomas oferecidos pelo médico de modo que, por fim, já não é possível distinguir se ele realmente sente as queixas que refere. Em doentes muito sugestionáveis, devem-se fazer perguntas de controlo afim de separar as queixas sentidas das sugeridas.
Perguntas de «sim» ou «não».
Mudanças de tópico não sinalizadas, por exemplo, por uma pausa: o doente fica com a impressão que o entrevistador não tem um plano claro de acção.
Escrupulosidade excessiva e selectiva, com perda da visão de conjunto, como seja insistir num dos muitos sintomas referidos, talvez o menos importante.
Controlo exagerado sobre a narrativa do doente, interrompendo-o frequentemente para delimitar as suas respostas com perguntas muito especificas.
Consolação inadequada ainda que bem intencionada como «você vai ficar bom», «não deve levar isso tanto a sério» ou «não precisa de ter medo, isso não é nada de especial, muita gente sofre disso». Ou então observações irónicas ou cínicas de desvalorização: «eu também tenho isso» ou «é tudo imaginação sua» ou «são os seus nervos». As queixas do doente e a forma como as percebe devem ser levadas a sério. Dizer a certos doentes que «não têm nada», é o mesmo que insinuar que estão a simular uma doença, adicionando sentimentos de culpa e vergonha aos que já traziam para a consulta.
2
Descodificação deficiente da sinalética da postura, do movimento e da palavra
Distância corporal - É ao mesmo tempo espelho e mecanismo de regulação da relação médico-doente. Numa relação de confiança mútua é mais fácil aproximar-se de um paciente ou tocar nele. Uma aproximação significa um sinal para intensificar a relação. O médico deve averiguar se o doente aceita a aproximação ou se ela está de acordo com a situação.

Postura - Certas posições do corpo, como o cruzamento das pernas ou dos braços, podem significar resistência ou defesa. Se não se identificar a sua causa, o médico perderá informações importantes e é improvável que o doente siga os seus conselhos.

Mímica - Muitos doentes avaliam a atenção que o médico lhes dá pela sua expressão facial. Daí que o médico deva ter muito cuidado com a sua mímica, que deve ser adaptada às necessidades do paciente. Deve-se mostrar pena quando ele falar sobre os seus problemas, ou alegria quando falar sobre progressos. Pode-se descobrir na mímica do paciente o seu desespero e insegurança.

Contacto visual - Através do contacto visual o médico pode informar o doente que está a seguir atentamente as suas explanações. No entanto, em certas situações o doente pode não suportar o contacto visual, devido à excessiva proximidade que ele permite. O médico deve estar atento às tentativas de contacto visual do paciente e deve também respeitar os momentos em que ele não o deseja.
O comportamento para verbal ou vocal expressa-se através do volume e modulação da voz ou entoação, bem como rapidez da fala (rápida, lenta, hesitante), suspiros, vocalizações, inflexões e ritmo da frase. Urgência, sinceridade, confiança, hesitação, solicitude, jovialidade, tristeza e apreensão podem estar contidas na entoação. Tão importante como o que diz o doente, é o modo como ele o diz.
A interpretação dos silêncios e pausas também tem muito valor. No doente, a mudança de tema é sempre reconhecida por uma pausa, que deve ser respeitada pelo médico, a menos que seja exageradamente prolongada. Há silêncios que traduzem embaraço ou vergonha. Há também o silêncio do desinteresse agressivo e ostensivo e o que resulta de obstáculos à intervenção.
Não saber ouvir é um problema sério na comunicação. Ouvir atentamente requer uma concentração intensa na expressão do doente em todas as suas manifestações e «nuances» verbais, não verbais e vocais, procurando ler o significado de qualquer palavra, gesto ou movimento.
3
Papeis de médico e papeis de doente
Constelações específicas de características da personalidade tanto do médico como do doente permitem a categorização de papéis.
O papel do médico pode ser o de paternal crítico, rigoroso ou de protector que ajuda e apoia. Há também o papel de médico esclarecedor, compreensivo, que dá coragem.
O papel de doente pode ser o de dependente ansioso que tem medo e necessita de apoio e consolação. Ou o de interrogador, que deseja ser informado, cioso dos seus direitos ou o cumpridor, equilibrado emocionalmente.
O sucesso ou insucesso de uma comunicação dependem de quais os papeis de ambos os interlocutores que se encontram numa dada situação. Uma troca de mensagens eficazes é possível entre o papel de doente ansioso, desprotegido e o de médico protector e compreensivo.
Os conflitos surgirão se não se atender ao papel do emissor, por ex., o médico reage através de um papel paternal crítico quando o que o doente necessitava era que ele reagisse através do papel de protector, a dar coragem e serenidade.
O cruzamento das mensagens entre o emissor e o receptor impede a comunicação. Ao doente com uma atitude exploratória, a pedir explicações e conselhos, o médico deve reagir com compreensão, esclarecendo, isto é, paralelamente. Se a reacção for através do paternal crítico, haverá activação dos mecanismos de defesa do receptor que se sentirá desqualificado como interlocutor. Houve aqui um cruzamento de mensagens. A sua frustração - principalmente se as sucessivas tentativas de apelo ao papel de esclarecedor do médico continuarem a ser por este ignoradas - será expressa através de um comportamento agressivo ou passivo/agressivo. Em qualquer altura do devir relacional vão surgir retaliações encapotadas, será manifesta a resistência à comunicação.
4
Atitudes do médico que dificultam a comunicação
Quando o médico dá a perceber ao doente que tem pouco tempo, este escolhe as queixas que julga mais importantes sendo preferidos os sintomas que lhe provocam medo. Omitirá também alterações corporais que só poderia transmitir ao médico durante uma entrevista mais longa.
A falta de tempo pode ser devida a muitos doentes para atender ou a tarefas múltiplas do médico durante o tempo de consulta. As interrupções frequentes pelo telefone ou pelos colaboradores podem irritar ou confundir o doente.
Se o modo de estar perante o doente não for basicamente empático, ele sente que o seu sistema de valores não é tomado em consideração. O médico não vê e sente o mundo do doente como se fosse o seu próprio mundo.
Para o fim da consulta diminui a atenção e concentração do médico.
Utilização de termos técnicos ou eruditos desajustados ao nível de instrução do doente.
Preconceitos ou parcialidade com formação de um juízo apenas na base das primeiras impressões, fixação a ideias adquiridas anteriormente e aceitação de criticas de terceiros (familiares, profissionais de saúde).
O decurso do diálogo é determinado pelo doente: o médico segue passivamente a narrativa do doente. Este dá um peso subjectivo aos sintomas cujo significado, para ele, depende dos seus conhecimentos médicos e das suas crenças. O médico não faz nada para esclarecer as suas hipóteses sobre a origem das queixas, através de elementos adicionais.
O médico não se certifica do verdadeiro sentido das expressões do doente: ele não descodifica a sinalética que o doente usa para exprimir o seu sofrimento. Os sintomas são, assim, interpretados em sentido literal e a sua exploração, sem compreender qual possa ser o seu significado na vida do doente, sem descobrir o factor emocional que ele encobre, leva inevitavelmente a erros de diagnóstico e a atitudes terapêuticas inadequadas.
Atitudes de desresponsabilização e evasão: o doente pode despertar no médico sentimentos negativos e é provável que este os manifeste inconscientemente no seu comportamento: pode ser rude, agressivo ou despeitado. Outra forma de exprimir inconscientemente os seus sentimentos é a evasão. Em vez de reconhecer os seus sentimentos negativos, o médico responde ao doente evadindo-se deste. O doente apercebe-se rapidamente que o médico está a esquivar-se quando este se retira do papel de interlocutor activo para o de alguém que apenas ouve ou regista ou quando ignora as iniciativas de diálogo do doente.
Exploração excessiva: o ganho informativo do diálogo sofre quando o médico toca em temas que são evitados pelo doente. Uma preocupação exagerada de aprofundar o diálogo leva a que sejam ultrapassadas resistências sem o consentimento do doente, a que não seja respeitada a sua opção de ficar calado. Antes de abordar temas de carácter íntimo, como conflitos sexuais ou familiares, é necessário que o médico de família esteja seguro que o doente aceita com naturalidade discutir estes assuntos. Um tema desagradável pode ser sempre adiado para outra consulta, em ocasião mais favorável. Uma possibilidade é tratar o tema/problema com a ajuda de um modelo, por exemplo: em vez de falar nos erros de educação dos pais presentes, referir-se-ão os erros de um modelo construído de pais.
5
Outras barreiras à comunicação
Ninguém pode ignorar o progresso científico e tecnológico da medicina. Os utentes querem a prova de que não estão doentes através de «exames e análises», as palavras deixaram de ser instrumentos de tranquilização e segurança.
A espiral de custos devido à utilização cada vez maior da tecnologia nos actos diagnósticos e terapêuticos leva a um controlo apertado dos gastos em saúde e tanto o médico como o doente sentem tal pressão económica.
A estrutura e as regras de funcionamento dos centros de saúde criam um contexto muito complexo de interacções pessoais. É frequente verificar a nível urbano e suburbano a existência de entraves burocráticos e administrativos que dificultam a acessibilidade. Surgem, assim, as longas esperas para a marcação de consultas e também na sala de espera. Quando finalmente surge o desejado contacto com o médico, que o utente nem sempre teve a liberdade de escolher, é muito provável que a comunicação se ressinta.
Pelo lado do médico de família, por muito que ele deseje investir numa abertura relacional, tal não é, muitas vezes, possível, devido à dificuldade em gerir o tempo de consulta de que dispõe.
6
Bibliografia
Neubig N, Schmidt-Schaun P. Technik der aerztlichen Gespraechsfuehrung: Modelle-Beispiele-Uebungen (Técnica da entrevista médica: modelos-exemplos-exercicios).Mainz: Kirchheim; 1996

Pacheco JCCS. Bases Psicoterapêuticas na Prática Clinica. Porto: Lab. Bial, 1989
Rakel RE. Textbook of Family Practice. 5th edition. Philadelphia: W.B. Saunders Company; 1995

Rev Port Clinica Geral 1987; 4(27): 12-14

Rev Port Clinica Geral 1990; 7: 216-20

Rodrigues JG. A comunicação na consulta de clinica geral/medicina familiar.

Rodrigues JG. A entrevista médica em clinica geral/medicina familiar.

Smith S, Norton K. Counselling skills for doctors. Buckingham: Open University Press; 1999
.