A tatuagem dos números

“Num computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada através do número de contribuinte e dos poderes discricionários da Autoridade Tributária.”

José Pacheco Pereira  in Publico,16.02.2013 

 

 

José Pacheco Pereira, numa excelente crónica  publicada no Jornal Público,  no dia 16.02.2013, intitulada “O número que está tatuado nos braços dos portugueses: o número de contribuinte”, aborda de uma forma muito incisiva a questão das liberdades individuais e a cruzada relacionada com a emissão das facturas, dando vários exemplos sobre como, através dos computadores do fisco se pode devassar a vida dos cidadãos. E isso já é sentido pelos Portugueses. Com muita frequência os nossos pacientes nos referem que não querem o número de contribuinte na factura emitida na farmácia, “pois o fisco não precisa de saber  os medicamentos que eu tomo todos os dias”. E têm razão. E por isso é muito recomendada a leitura do artigo do José Pacheco Pereira.

E vem isto a propósito da Plataforma de Dados da Saúde (PDS) que entrou em funcionamento em 2012.

Durante muito tempo a ARS Norte trabalhou para que fosse possível disponibilizar os registos clínicos dos pacientes  que tivessem recorrido a  cuidados hospitalares. Isso tornou-se realidade em 2011, já com muitos Centros de Saúde a terem acesso aos dados dos seus pacientes internados no hospital de referência.

De facto a articulação e continuidade de cuidados também tem a ver com esta múltipla utilização dos serviços, disponibilizando informação que de outra forma não estaria acessível. O objectivo desta funcionalidade é estar ao serviço dos cidadãos e ser utilizada  para melhorar as respostas dos serviços às suas necessidades percepcionadas/sentidas.

Devo no entanto confessar que, apesar de ver muitas vantagens nesta ligação, sempre tivemos a consciência de que estávamos a entrar em terrenos algo preocupantes, sob o ponto de vista da privacidade. A disponibilização da totalidade da informação clínica dos cidadãos, sem o seu prévio consentimento informado, e à distância de um click, parece-me ser merecedora de uma cuidadosa análise e ponderação. Aqui não se trata da utilização do número de contribuinte, mas do número de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS). E esta preocupação tem sido manifestada por muitos profissionais, nomeadamente em fóruns da Medicina Geral e Familiar.

Apesar destes avanços nos últimos anos, ainda não conseguimos aceder ao  processo clínico electrónico de todos os Hospitais na Região Norte, e em alguns casos deixamos mesmo de ter acesso.  Mas se isto é verdade, não há dúvida que continuamos a ter ainda muita burocracia e muito papel na nossa actividade clínica diária, que nos obriga a gastar muito do tempo que deveríamos ter para os pacientes a fazer registos de actos e de resultados de MCDT no processo clínico. E ninguém contabiliza o tempo que se perde – sim, o tempo que se perde, pois deveria ser feito de forma simples e automática – a registar no SAM exame a exame que o doente tenha realizado, inclusive em instituições do SNS. Isto significa que há muito a fazer para tornar a PDS uma verdadeira Plataforma de Dados de Saúde do Cidadão, com uma integração total da informação clínica,  como aliás parece estar a fazer-se com os meios complementares de diagnóstico nos locais em que é feita a sua internalização. E isso seria fácil de levar à prática, do ponto de vista informático. Estou certo que os Convencionados também agradeceriam, até porque o manifestaram por diversas vezes.

Depois temos o Portal do Utente que disponibiliza informação aos cidadãos colocando e bem, quanto a mim, a seguinte questão: Autorizo que os profissionais de saúde credenciados consultem a minha informação clínica registada nos diversos sistemas de informação do Serviço Nacional de Saúde: pedindo-lhes para assinalar sim ou não. Quantos cidadãos conhecem esta possibilidade? E quantos sabem que a sua informação está disponível e generalizadamente aberta na instituição que recorreram?

Com a publicação recente do Despacho nº 2784/2013, do Senhor Secretário de Estado da Saúde,  a partir de 1 de julho de 2013, as notas de alta médica e de enfermagem, bem como as notas de transferência das unidades de cuidados intensivos, contemplam uma série de informação definida legalmente, devendo as mesmas estar em condições de ser acedidas, em formato digital, pelos profissionais de saúde habilitados para o efeito, através da Plataforma de Dados de Saúde (PDS). Apesar de não estar terminado este trabalho, espero que os cuidados continuados integrados também sejam envolvidos.

Já não é só o número de contribuinte que está cada vez mais tatuado. Temos também o nosso número de utente do SNS cada vez mais tatuado nos computadores do Estado. Por isso se torna necessário garantir a confidencialidade e a privacidade dos nossos dados. E informar os nossos pacientes sobre esta situação para que possam, de forma responsável e esclarecida, decidir sobre a tatuagem que desejam ter no computador.

Pimenta Marinho, Médico de Família, USF +Carandá

pimentamarinho@gmail.com

 

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