Desígnio: Médico de Família para todos

 

 

Um erro clássico e recorrente de quem tem governado o SNS ao longo dos anos é o de achar que os médicos são todos iguais e, sendo todos iguais, que todos têm de trabalhar de igual forma.

 

Olhando para a realidade do nosso país e para o momento difícil que atravessamos, no geral, mas em particular no que concerne ao nosso serviço nacional de saúde, uma das perguntas que me tem ocorrido é: Como chegámos até aqui? Que caminho percorremos que nos conduziu a esta situação difícil em que temos os médicos esgotados, em que temos os serviços de saúde em ruptura e com tanta dificuldade resposta? Em que temos tantos dos nossos cidadãos sem acesso a um médico de família? Todos reconhecemos que não existem respostas fáceis, mas sermos capazes de nos questionar é em si mesmo um exercício que pode trazer frutos.
Um erro clássico e recorrente de quem tem governado o SNS ao longo dos anos é o de achar que os médicos são todos iguais e, sendo todos iguais, que todos têm de trabalhar de igual forma. Na prática, esta falta de flexibilidade traduz-se numa gestão de recursos humanos ineficiente. Por exemplo, na área da Medicina Geral e Familiar, nem todos os médicos de família querem ter uma lista de 1750 utentes. Há médicos de família que preferiam ter uma lista de utentes de menor dimensão, de forma  a poder ocupar parte do seu tempo noutras atividades, por exemplo em atividades de investigação, hobbies pessoais, ou ter simplesmente mais tempo para estar com a sua família. Mesmo em relação à organização da prática clínica, existem diferentes formas de trabalhar em Cuidados de Saúde Primários e de exercer a profissão de médico de família. Vemos isso quando contactamos com médicos de família de outros países. Há médicos de família que preferiam organizar-se de uma forma mais autónoma e cuidar na mesma de um grupo de utentes do SNS. A sociedade evoluiu. Os jovens médicos de família de hoje não são os jovens médicos de família de quando o SNS foi criado, nem aquando da reforma dos Cuidados de Saúde Primários. A sociedade evoluiu, mas o SNS não evoluiu na forma como se relaciona com os seus recursos humanos.
A luta e as reivindicações dos sindicatos médicos no momento presente são, sem dúvida, uma causa justa. Contudo, temos que reconhecer que mesmo que venham a ser atendidas, não irão resolver alguns dos principais problemas do presente. Dou dois exemplos:  o problema da exaustão dos médicos de família e, outro exemplo, o problema dos milhares de cidadãos sem médico de família.

 

Fomos nós que, no âmbito da reforma, criámos a sobrecarga de indicadores que hoje temos e os programas de saúde que conduzem tantos utentes bem controlados às nossas consultas médicas sobrecarregando desnecessariamente as agendas dos médicos de família.


Em relação à exaustão dos médicos de família, mesmo que se chegue a acordo entre os sindicatos e o governo, os médicos de família continuarão a ter listas sobredimensionadas, continuarão enredados na enorme carga de burocracias e indicadores que lhes é exigida. A este respeito também é pertinente uma certa auto-reflexão. Seremos capazes de reconhecer que errámos nalguns aspectos do desenho da implementação da Medicina Geral e Familiar e dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal? Fomos nós que, no âmbito da reforma, criámos a sobrecarga de indicadores que hoje temos e os programas de saúde que conduzem tantos utentes bem controlados às nossas consultas médicas sobrecarregando desnecessariamente as agendas dos médicos de família. Tornámo-nos muito bons a gerir doentes com algumas doenças crónicas, a fazer consultas de vigilância de cidadãos que estão bem, quando, ao mesmo tempo, há doentes com doença aguda que não têm acesso a cuidados.
Frequentemente, no discurso político ouvimos dizer que queremos um SNS que seja um “verdadeiro serviço de saúde, que aposte mais na prevenção do que na doença”. Seria bom que os políticos pensassem bem quando pronunciam estas palavras. Quem precisa de um médico? O cidadão que está bem, ou o cidadão que está doente? O mito de que tudo é possível prevenir, de que múltiplas consultas de rotina e de vigilância de saúde conseguem evitar a doença, é apenas isso: um mito. Um mito que nos sai caro, que despoleta muitas vezes cascatas de cuidados desnecessários, e que causa dano aos nossos cidadãos.
Aqui chegados, seremos nós, médicos de família, capazes de iniciar o debate para construir um modelo diferente de prestação de cuidados? Um modelo mais eficiente, mais flexível e que vá ao encontro das reais necessidades dos nossos cidadãos? Seremos capazes de começar o debate sobre uma profunda remodelação dos indicadores e do sistema de pagamento por desempenho?
Tal como aconteceu e bem com os RRE’s, unidades de saúde precursoras das USFs, criem-se modelos experimentais, testem-se modelos diferentes, avalie-se o impacto através de marcadores relevantes orientados para o paciente.

 

Na região de Loures/Odivelas existem mais de 100.000 cidadãos sem médico de família. Imaginemos que em Loures existe um colega nosso, especialista em MGF, que tem um consultório privado. Este colega está disponível para cuidar no seu consultório de 500 desses utentes sem Médico de Família. A ARSLVT sabe quanto custa, em média, per capita, um utente com médico de família. A ARSLVT podia contratualizar com esse colega pagando esse mesmo valor.


Em relação ao segundo exemplo, um eventual acordo também não vai resolver o problema dos milhares de cidadãos sem médico de família. Face aos desequilíbrios que se vivem no presente, entre recursos humanos disponíveis no SNS versus procura de cuidados de saúde, será também altura de revermos alguns dos preconceitos ideológicos que têm contribuído para um subaproveitamento dos recursos disponíveis no país. Dou um exemplo muito concreto. Na região de Loures/Odivelas existem mais de 100.000 cidadãos sem médico de família. Imaginemos que em Loures existe um colega nosso, especialista em MGF, que tem um consultório privado. Este colega está disponível para cuidar no seu consultório de 500 desses utentes sem Médico de Família. A ARSLVT sabe quanto custa, em média, per capita, um utente com médico de família. A ARSLVT podia contratualizar com esse colega pagando esse mesmo valor. A ERS e a ERA poderiam monitorizar a qualidade do trabalho deste colega e, desse modo, haveria mais 500 cidadãos que passariam a ter médico de família. Ou seja, aquele mito de que tudo o que é privado é mau, de que o privado só vê o lucro, serve apenas para criar muros, em vez de soluções. Um colega nosso, especialista em MGF, mesmo no seu consultório privado poderá trabalhar de acordo com aquilo que for regulado e controlado pelo próprio SNS, mas com mais autonomia do que se estivesse inserido na carrreira ou numa USF. Hoje em dia, o próprio SClínico pode estar instalado no computador do consultório privado de cada médico de família e, por essa via, até mesmo os indicadores de atividade clínica poderão ser remotamente controlados.
Mesmo a ideia de que as USF Modelo C vão permitir a privatização do SNS é um argumento que não faz sentido. Permitir que um grupo de médicos tenha mais autonomia, se organize numa clínica ou numa cooperativa, e cuidem de um grupo de cidadãos, sendo a sua atividade devidamente monitorizada e regulada não constitui de forma alguma a privatização do SNS. Isso só sucederá se for essa a intenção do regulador ou, então, por falta da devida regulação.
Mais, a coexistência de diferentes modelos organizativos faz parte da tal flexibilidade necessária face à diversidade do ser humano, neste caso, dos recursos humanos, dos médicos de família. Cada médico de família poderia enquadrar-se no modelo da sua preferência. E assim deixaríamos de ter um SNS a considerar que os médicos são todos iguais mas, provavelmente, teríamos médicos mais felizes e que permaneceriam mais tempo no SNS. E, por outro lado, acredito que poderia contribuir para aquele que deveria ser sempre o nosso grande desígnio: queremos um médico de família para todos os cidadãos que residem no nosso país. Esta é uma bandeira que vale a pena elevar bem alto em todas as nossas lutas: 

“Um médico de família para todos.”

Por Carlos Martins
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2 Comentários. Deixe novo

JOAO PAULO REINA MOREIRA
9 de Dezembro, 2023 14:25

Fiquei chocado com este podcast.
Eu sempre pedi à ARSLVT e ao ministério da saúde, que colocasse no meu talão de vencimento, o valor líquido que me paga para ver um utente.
FICARIA MUITO FELIZ, SE TAL ACONTECESSE E DESAFIO TODOS OS POLÍTICOS HONESTOS (SE É QUE EXISTEM), A FAZER TAL COISA SIMPLES E EM NOME DA CLAREZA E TRANSPARÊNCIA. SE TAL NÃO ACONTECE É PORQUE NÃO EXISTE POLÍTICOS COM CLAREZA E CONHECIMENTOS DOS FACTOS.
Assumindo que recebo 1800 euros líquidos por mês e uma média de 20 consultas presenciais por dia, ou seja, por baixo 450 consultas presenciais por mês, fora as consultas não presenciais.
1800/450=4, seria cerca de 4 euros por consulta. Isto por baixo…..A isto tenho que somar todo o trabalho burocrático, e contatos indiretos, e mil e uma coisas extra. Os privados e companhias de seguros a praticarem estes valores?? Dá-me vontade de rir…..
Ou seja, o valor que se paga ao médico líquido por utente/ato médico é de cerca de 2 a 4 euros.
Sim, podem recorrer ao privado, mas comparando vencimentos. JÁ FICAVA MUITO FELIZ SE NA MINHA FOLHA DE VENCIMENTO COLOCASSEM O VALOR LÍQUIDO POR CONSULTA PRESENCIAL E CONTACTOS NÃO PRESENCIAIS. Imaginar os privados a aceitarem esses valores????? Era um feito extraordinário. Nem as empresas com médicos indiferenciados conseguem esses valores.
Eu pedi ao meu ACES para me pagar ao sábado 50 euros por hora, para ver utentes sem médico de família e tal foi categoricamente recusado. Ou seja, em 3 utentes por hora significaria cerca de 8 euros por utente. (líquido, assumindo que metade vai para impostos). Mas o valor da vida humana no SNS vale muito menos.
Mas opiniões, valem o que valem. O que pretendo é coragem política, para colocarem no meu talão de vencimento o valor líquido por consulta, para eu informar os meus utentes. JÁ FICARIA MUITO FELIZ.
Assistente de MGF numa USF modelo A-ACES.OESTE SUL.

Ana Sacramento
8 de Dezembro, 2023 16:36

Não seriam os constrangimentos financeiros semelhantes nesse tipo de modelo?
Se o orçamento de uma USF modelo C for sistematicamente subestimado, ou o valor pago por ato médico ao médico fora do SNS for irrisório, não caíriamos exatamente na mesma situação.
Seja qual for o modelo, se a escolha for o desinvestimento e não aceitar que o envelhecimento da população vai gerar inevitavelmente mais custos, podemos continuar a tentar fazer tetris com peças insuficientes.
É urgente estabelecer prioridades de investimento enquanto país, gerir de forma franca as expectativas da população e educar na procura de acesso.
O modelo que for mais eficiente nessa gestão é o que terá mais sucesso.

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