Nuno olhou para o relógio com um misto de apreensão e alívio. Apenas trinta minutos para a meia-noite e o balcão de cirurgia parecia relativamente calmo. Mas, tal como ele previa, o ruído lancinante da sala de emergência ecoou novamente relembrando que o turno ainda estava no início.
O jovem interno do Ano Comum tentou vencer o cansaço (há quanto tempo tinha sido a última refeição e dormida decente?) e corresponder aos pedidos áridos do cirurgião: “Aspira. Corta”.
Absolutamente indiferente a este esforço, o espectro implacável da Morte regressou a um dos seus locais de eleição resgatando para o abismo o jovem condutor embriagado.
Apesar da carreira de Nuno estar apenas no início, o jovem médico tinha já criado uma armadura protectora perante a perda.
Bem cedo tinha percebido que não se vislumbra o glamour tantas vezes repetido no grande e pequeno ecrã. Não se encontra nenhuma beldade de estetoscópio a segurar a mão do doente. Não há nenhuma banda sonora a embalar quem parte.
Apenas silêncio, que naquela madrugada tinha sido prontamente interrompido por uma série de perguntas do operador que submergiram o interno na sua própria ignorância.
Algumas horas depois, o jovem médico acompanhou o cirurgião até uma sala de estar bafienta: um casal de idosos esperava ansiosamente por notícias do neto.
O cirurgião surpreendeu Nuno com a delicadeza das palavras e a coragem do olhar. “Nunca me vou habituar a isto”, confessou.
E naquela noite ele percebeu que a tentativa (por vezes desesperada) de aprendermos com a morte é apenas uma das muitas formas de lidarmos com aquilo que nos une: a nossa inevitável e inadiável fragilidade.
Por Luís Monteiro, Médico de Família