Estratégia de futuro para a Medicina Geral e Familiar – Sete princípios prospectivos para inovar

Sou dos que comungam que o acordo entre os Sindicatos Médicos e o Governo, foi o acordo possível num momento de enorme adversidade social, laboral e política.

Ao contrário da generalidade dos outros sectores profissionais, conseguimos impedir o desmantelamento da estrutura da profissão (carreira médica) e dos mecanismos da sua diferenciação técnico-científica (graus e categorias).

Mas, infelizmente este acordo, não me deixa dormir descansado.

“Tenho de dar um desconto nas declarações que vêm do Governo e em especial do Ministério das Finanças, porque tem-se verificado que um dia é uma coisa e no dia seguinte já é outra”. As palavras, são de Mota Amaral e podem ser aplicadas ao processo negocial entre o Governo e os Sindicatos Médicos.

Mota Amaral, ainda consegue dar um desconto, mas é muito difícil para um qualquer cidadão a quem este Governo se prepara para retirar mais uma parte dos seus rendimentos ou mandar para o desemprego, como por exemplo, os profissionais precários das USF, compreender tanta desorientação, tanta incompetência e tanta irresponsabilidade.

Também a título de exemplo, analisemos a aplicação imediata do acordo entre os Sindicatos Médicos e o Governo. Os Sindicatos dizem que “As listas de utentes serão objecto de uma metodologia clara de actualização com a participação dos médicos de família e sem a existência de supostos utentes “adormecidos” como subterfúgio para aumentar indiscriminadamente o seu número global”.

O Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, ainda antes de ocorrer a primeira reunião da Comissão de Acompanhamento do Acordo, corre a publicar um Despacho em DR, datado de 24 de Outubro, criando a nova categoria de “Utente inscrito no ACES (?!) sem contacto nos últimos três anos”, criando-se, assim, a abertura de vaga na lista de utentes do médico de família respectivo (artigo nº3  do Despacho n.º 13795/2012).

Outro aspecto muito caro à Medicina Geral e Familiar (MGF), é a dimensão da lista de utentes; os Sindicatos afirmam que “as listas de utentes dos médicos de família no regime das 40 horas terão 2358 unidades ponderadas a que correspondem no máximo 1900 utentes” e o Sr. Ministro da Saúde, informa a comunicação social de que as listas de utentes irão passar de 1550 para 1900 utentes, sem a respectiva ponderação!

Em que ficamos? Nos 1900 utentes ou nas 2358 unidades ponderadas?

Não querendo limitar-me à discussão do acordo e acreditando, como sempre acreditei, que o futuro não é adivinhável, mas é configurável, existindo um mundo de tarefas que estão nas nossas mãos, sugiro que se reflicta sobre o que directa ou indirectamente, podemos fazer que aconteça nos próximos anos porque, segundo Vítor Ramos, estamos apenas a meio do 4º ciclo (2007-2019).

Temos pela frente vários desafios, que resumo nestes próximos sete pontos:

1. Ensino e Investigação: desenvolvimento da disciplina académica.

Deve ocorrer um reforço inevitável dos departamentos de MGF nas Universidades, visando um aumento da influência e impacto do ensino da medicina geral e familiar, nos seis anos da licenciatura e na pós-graduação.

É cada vez mais importante valorizar as funções de ensino e investigação nos centros de saúde, apostando em redes ou comunidades práticas, com envolvimento de todos os intervenientes: faculdades, internatos, orientadores, internos, médicos e equipas.

Necessitamos, por isso, de reforçar quantitativamente e qualitativamente o ensino da MGF na licenciatura, para podermos atrair cada vez mais o jovem médico à livre escolha da MGF e desenvolvermos cientificamente a própria especialidade.

2. Criação de mais USF’s com mais Jovens Especialistas em MGF– normalização do recrutamento de Jovens especialistas para as USF, pequenas unidades com autonomia funcional e técnica e com um contrato claro e aceite por todas as partes (Administração, profissionais e utentes) onde a tónica da acessibilidade é central e onde existe um sistema retributivo inteligente e justo, que continue a aperfeiçoar a discriminação positiva.

3. Trabalhar numa equipe multiprofissional coesa e dinâmica (USF como Organização Positiva): ter a mesma linguagem, missão, valores e os mesmos objectivos com um processo de contratualização transparente. O que implica reuniões regulares e discussão de casos clínicos, formação em serviço, discussão de problemas de organização e um sistema de incentivos.

3.1- Motivar a Equipa e auto-responsabilizá-la, participar e criar um ambiente organizacional estimulante, que permita aos profissionais crescerem como pessoas, bem como criar uma cultura de serviço.

3.2- Equipa alargada e em rede: consultadoria de médicos hospitalares, psicólogos clínicos, nutricionistas, dentistas, assistentes sociais, fisioterapeutas, professores de educação física, entre outros.

4. Informatização global e integrada dos cuidados de saúde: instituição do processo clínico único, permitindo a discussão interespecialidades (CSP e C. Hospitalares), trocas de opiniões e poupança de gastos em com exames e consultas desnecessárias, além de monitorizar o desempenho individual e colectivo.

5. Implementar instrumentos de auto-avaliação e de creditação da qualidade: desenvolvendo programas de melhoria contínua da qualidade, baseados na auto-avaliação interpares, visitas inter-unidades, qualificação da despesa médica, avaliação da satisfação dos utentes e dos profissionais; implementação de auditorias e acesso de todas as USF aoprograma nacional de acreditação.

6. Ser mais “resolutivo” com melhoria do acesso aos CSP para todos, com equidade e qualidade, prestando cuidados de excelência de forma igual, a qualquer cidadão, independentemente do local ou tipo de unidade de saúde: trabalhar para dar resposta aos problemas apresentados, discutir casos clínicos antes de serem referenciados, trocando opiniões e optimizando recursos, em benefício do utente, sem perder os seus atributos basilares de ouvir, centrar-se no utente e na sua família, cuidar e ter a sua confiança.

Para tal, são necessárias mais competências em MGF, alargamento da carteira básica (p.ex., dar resposta às doenças do comportamento alimentar e às novas dependências) e mais equipamento, adequado a este nível de cuidados, como a “telemedicina”, possibilitando a telecardiologia, a teleradiologia e a teledermatologia, como exemplos imediatos; implementação da prática corrente da Espirometria, etc.

7. O MF, como líder comunitário, deve participar activamente na integração das vertentes de saúde pública, da enfermagem comunitária e  de outros profissionais da URAP, alimentando o desenvolvimento de unidades funcionais de MGF, abertas e viradas para a comunidade onde se inserem. Vários exemplos: parcerias com instituições da comunidade, apoio a associações de doentes crónicos, atendimento a jovens, incentivos ao voluntariado, etc. A colaboração entre CSP e Secundários deve ser incentivada, a partilha deve ser alargada, o terreno onde cada um actua deve ser bem delimitado.

Em resumo: sozinhos não fazemos nada, não somos nada. Mas, juntos, poderemos continuar a fazer a mudança e ir até onde a nossa imaginação nos levar.

Sejamos ousados, imaginativos e arrojados. Lutemos pela melhoria da MGF.

“Receio o que quero, mas quero o que receio”  T. Corneille

João Rodrigues, Coordenador da USF Serra da Lousã

smzcjnr@gmail.com

 

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