Será apenas azar? Uma reflexão sobre genética

Durante a prática clínica, tenho ouvido frequentemente a palavra “azar”, algumas vezes proferida pelos doentes, outras pelos profissionais de saúde. Após ter aceite a palavra, em diferentes contextos, questionei-me se este azar se trataria de uma mera fatalidade da vida ou teria algum fundamento probabilístico por detrás.

Num episódio observado em contexto hospitalar, ouvi transmitir a uma doente jovem que “teve mesmo azar porque é muito raro ter dois cancros com a sua idade”. Foi aí que me soou o alarme da genética. Contudo, a doente foi orientada para tratamento e esta possibilidade não foi equacionada. No momento, eu próprio não descortinei se existiria alguma alteração genética que justificasse este “azar”, mas a dúvida surgiu posteriormente e impulsionou-me para o estudo e, efetivamente, a doente tinha critérios para despiste de uma síndrome genética. Será que ela tinha história familiar de cancros? Não sabemos, porque não foi questionado! Será que, neste momento, já abordaram com ela a possibilidade de a causa para os seus cancros ser genética e não apenas um “azar da vida”? Penso que não, e esta possibilidade diagnóstica seria importante, uma vez que a tal síndrome é autossómica dominante, ou seja, se a doente tiver a mutação, há um risco de recorrência de 50% na descendência.

Durante o percurso académico, senti que é dada muita importância à genética molecular e pouca relevância à genética clínica. No currículo académico da universidade onde fiz o curso não existe uma cadeira de genética clínica. As síndromes genéticas eram abordadas ao longo de diferentes unidades curriculares mas muitas vezes ouvíamos que “esta parte não é tão importante porque é mais rara”. Apesar da maioria das síndromes genéticas serem raras, algumas são relativamente comuns. A síndrome hereditária de cancro da mama e ovário é responsável por cerca de 5 a 10% dos casos diagnosticados de neoplasia da mama. Tendo em conta a incidência e prevalência do cancro da mama, esta situação é frequente mas está muito subdiagnosticada.

Para a colmatar a minha falha formativa, estudei algumas alterações genéticas e, desde então, já referenciei múltiplos doentes a genética médica. História de cancros em vários elementos da família, múltiplos cancros no mesmo doente, cancros e eventos cardiovasculares em idade precoce fizeram-me soar o alarme da possibilidade genética estar presente. Será que têm alguma alteração? Independentemente dos resultados, fiquei com a sensação de “dever cumprido” como futuro médico de Medicina Geral e Familiar. Porém, fiquei assustado pela quantidade de possíveis alterações genéticas que não tive o discernimento de orientar, por não estar tão sensibilizado para esta área. A Medicina Geral e Familiar é a especialidade mais privilegiada para a possível sinalização destes doentes. Enquanto médicos de família, além de observarmos o doente, temos a oportunidade única de conhecer a família na qual se insere. Através da abordagem abrangente e holística e, sobretudo, do acompanhamento longitudinal, temos a possibilidade de suspeitar de alterações genéticas.

É fulcral uma aproximação entre a Medicina Geral e Familiar e a Genética Médica. É um caminho longo, mas que está já em construção através do Grupo de Estudos de Genética da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Este grupo irá certamente diminuir as lacunas formativas nesta área nos cuidados de saúde primários e, principalmente, sensibilizar para esta temática.

Por Filipe Costa, Interno de Medicina Geral e Familiar, USF S. Nicolau, ACeS Alto Ave

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