Novas orientações clínicas sobre hipertensão arterial geram controvérsia



Enquadramento: As últimas orientações clínicas relativas à abordagem da hipertensão arterial publicadas pela Joint National Committee (JNC8) datam de 2014. Recentemente, o ensaio clínico conhecido como SPRINT Trial, demonstrou benefícios do controlo intensivo da pressão arterial em doentes hipertensos. Este estudo contribuiu para relançar a questão dos valores alvo a atingir no controlo dos hipertensos. Neste contexto, duas importantes associações médicas americanas, o American College of Cardiology e a American Heart Association, publicaram recentemente novas orientações para a abordagem da hipertensão arterial em adultos que gestão ser alvo de considerável controvérsia.

Resumo: O documento, com cerca de 200 páginas, aborda, entre outros temas, a definição de hipertensão arterial , a técnica correta de medição da pressão arterial, a hipertensão arterial secundária e a abordagem do doente hipertenso com outras comorbilidades.

A alteração mais cabal ao status quo começa logo nas primeiras páginas do documento, na definição de hipertensão arterial. As novas categorias de hipertensão arterial incluem: pressão arterial elevada (pressão arterial sistólica, 120–129 mm hg e pressão arterial diastólica <80 mm hg); hipertensão arterial  estadio 1 (pressão arterial sistólica 130–139 mm hg ou pressão arterial diastólica 80–89 mm hg) e hipertensão arterial  estadio 2 (pressão arterial sistólica  ≥140 mm hg ou ou pressão arterial diastólica ≥90 mm hg). De acordo com o proposto nestas orientações. o tratamento iniciar-se-á a partir do limite 130/90mmHg, em vez do limite 140/90 mmHg atualmente em vigor.

  

   


Com as novas definições de hipertensão arterial, vêm também novos objetivos terapêuticos. Qualquer que seja a condição clínica (idoso, diabetes, doença renal crónica, insuficiência cardíaca, doença cardiovascular, ou outra…) os valores alvo são: valores inferiores a 130/80 mmHg. Porém, a “linha que separa” hipertensão arterial  de pressão arterial elevada variará de acordo com as variadas patologias, assim como a terapêutica aplicada (recomenda-se a leitura do documento original ou da sua versão simplificada).

Alguns dos aspetos positivos destas orientações incluem a importância que é atribuída à medição da pressão arterial pelos pacientes no domicílio como forma de minimizar fenómenos como o efeito da bata branca ou a hipertensão mascarada. Neste contexto, é recomendado o uso pelos pacientes de aparelhos de medição validados; em cada avaliação, o registo da média de duas a três medições; e, pelo menos, duas avaliações por dia. Quanto à técnica de medição, destaca-se a indicação de, na primeira avaliação, medir a pressão arterial nos dois membros superiores, fazendo as medições posteriores sempre no braço com valor mais elevado de pressão arterial. No contexto da medição no consultório, o paciente deve ter acesso ao resultado da medição de forma verbal e escrita

Outro aspeto positivo é o ênfase que é colocado nas intervenções de estilo de vida, como a redução do excesso de peso e obesidade, redução do consumo de sal e álcool, a ingestão adequada de potássio e o aumento da atividade física. As causas de hipertensão secundária são destacadas de forma exaustiva, bem como a investigação necessária para cada uma delas – muito útil!

Comentário crítico: Estas novas orientações necessitam uma análise crítica e um debate aprofundado. É de salientar que a Academia Americana de Médicos de Família não apoia estas orientações e defende que a norma da Joint National Committee (JNC8) tem um rigor científico superior a este novo documento.

Uma das fragilidades destas orientações reside no facto de as mesmas não terem sido fundamentadas numa revisão sistemática da evidência. Outra fragilidade que vem sendo apontada relaciona-se com o facto de ser dado um peso excessivo aos resultados do SPRINT Trial (recorde aqui uma meta-análise anterior com conclusões diferentes…). O  SPRINT Trial incluiu pacientes com idade superior a 50 anos que já eram hipertensos e já eram previamente medicados. Ora, considerar que os benefícios do controlo intensivo verificado nestes pacientes hipertensos serão generalizáveis para pacientes mais jovens que passarão a ser novos hipertensos devido à diminuição do limiar de diagnóstico proposta nestas orientações, está longe de ser consensual  e certamente não é medicina baseada na evidência.

De acordo com estimativas da própria American Heart Association, com estes novos limiares de diagnóstico, a prevalência de hipertensão arterial aumentará de 31% para 48% nos homens e de 32% para 43% nas mulheres. Nos homens adultos mais jovens, com idade inferior a 45 anos, a aplicação destes novos limiares de diagnóstico triplicariam(!) a prevalência de hipertensão. Ora, muitos destes novos hipertensos são pessoas de baixo risco cardiovascular e, tal como noutras intervenções de prevenção de doença cardiovascular (por exemplo, as estatinas), o benefício da farmacoterapia em pessoas de baixo risco é muito inferior ao benefício das intervenções das pessoas em alto risco.

Outro aspeto negativo: as orientações propõem que se use uma ferramenta de cálculo de risco cardiovascular que não está validada e, como tal, não é baseada na evidência.

Finalmente, um outro aspeto muito negativo destas orientações prende-se com facto de não abordar os potenciais danos das intervenções que propõe. O paciente tem o direito de ser informado sobre o potencial benefício do tratamento que lhe é proposto, mas também sobre o potencial malefício. Os fármacos usados no controlo da pressão arterial não são isentos de efeitos adversos. Ainda mais se pensarmos que serão muitos milhões de pessoas que, caso estas orientações venham a ser aplicadas, passarão a ser adicionalmente medicadas de novo e outros milhões de pessoas que sendo já hoje medicadas, necessitarão de reforço do seu tratamento.

Estas orientações, não sendo baseadas em evidência científica, se viessem a ser aplicadas contribuiriam de forma muito considerável para o sobrediagnóstico e sobretratamento, com potenciais consequências negativas relevantes. Contudo, devemos reconhecer que a evidência científica é mutável e salvaguardar que novos estudos poderão, no futuro, ajudar a esclarecer a controvérsia agora instalada.

Versão integral das Orientações clínicas: J Am Coll Cardiol

Versão resumida (e prática) das Orientações clínicas

Por Mariana Rio, Luís Monteiro, Carlos Martins 


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