Medicina Geral e Familiar: a especialidade do passado, do presente e do futuro

 


 

No século XIX Júlio Dinis trouxe para o imaginário português a figura de João Semana, médico octogenário da aldeia retratada no seu romance “As Pupilas do Senhor Reitor”. Nesta época o tratamento da maioria das doenças era muito elementar e pouco eficaz, desempenhando o alívio de sintomas e o consolo dos doentes um papel muito importante na prática médica. Para além disso, durante esse século a assistência médica competia às famílias, instituições privadas e à benevolência de médicos como João Semana. Apenas no final, em 1899, é iniciada a organização dos serviços de saúde pública, pela iniciativa do Dr. Ricardo Jorge, que apenas foi regulamentada já no início do século XX.
Nestes últimos dois séculos, muitos foram os marcos históricos para a melhoria das condições de saúde dos portugueses, desempenhando os Cuidados de Saúde Primários um papel fundamental.
A reforma sanitária de Trigo Negreiros, que permitiu a criação de institutos de saúde pública dedicados a problemas específicos como a tuberculose e a saúde materna, a criação da Federação das Caixas de Previdência, em 1946, como entidade de prestação de cuidados médicos em regime de seguro-doença para diversos grupos de trabalhadores e suas famílias e o aparecimento dos Centros de Saúde de Primeira Geração em 1971 são alguns dos exemplos prévios à criação do Serviço Nacional de Saúde em 1979.
Os indicadores de saúde materno-infantis e a incidência de doenças transmissíveis evitáveis melhorou substancialmente. No entanto, até esta altura a cobertura da população era fragmentada e com grandes dificuldades de coordenação.
Em 1976 é aprovada a nova Constituição, cujo artigo 64º dita que “todos os cidadãos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”. Mais tarde em 1978, a Organização Mundial de Saúde expressava a “necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do Mundo”, na Conferência Internacional dos Cuidados de Saúde Primários em Alma-Ata. É, deste modo lançado o mote para a criação do Serviço Nacional de Saúde pela Lei nº 56 de 1979.
A partir desta data, a organização dos cuidados de saúde em Portugal sofre uma enorme transformação e, os Cuidados de Saúde Primários não são exceção. Desde logo, em 1982 surge a carreira médica de Clínica Geral, no ano seguinte, surgem os Centros de Saúde de Segunda Geração, sendo o elemento novo introduzido o Médico de Família.
No início dos anos 90 houve um amplo debate sobre a reorganização e reorientação dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal. Nesta altura, para além do financiamento insuficiente na área da saúde, havia também a necessidade de criar modelos de prestação de cuidados que conseguissem responder ao acréscimo das necessidades de saúde geradas pela evolução social e da saúde.
Mais tarde, já no início do século XXI, foi iniciada a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, baseada em princípios como a descentralização, auto-organização, avaliação e responsabilização pelos resultados.
A Medicina Geral e Familiar enquanto especialidade médica reconhecida no nosso país é recente, no entanto a sua origem é antiga e as suas características fundamentais mantêm-se inalteradas, tendo sido uniformizadas e compiladas na Europa em 2002 pela World Organization of Family Doctors (WONCA). O Médico de Família continua a ser o médico da pessoa como um todo, englobando toda a sua complexidade e dimensões, assim como assegurando um acompanhamento longitudinal, em todas as fases da vida da pessoa, desempenhando deste modo um papel não apenas curativo, mas também preventivo e paliativo.
Nos dias de hoje as ameaças à saúde da população são muito diferentes das existentes aquando da criação do Serviço Nacional de Saúde, e muitos defendem que podem por em causa a sua própria existência. Hoje os principais problemas de saúde pública devem-se sobretudo a aspetos comportamentais e de estilo de vida, assim como à melhoria da qualidade de vida, aumento da longevidade e cronicidade das doenças proporcionada pelos avanços cientifico-tecnológicos alcançados pela medicina. Acresce a estes novos desafios o facto de haver cada vez mais informação amplamente disponível de forma imediata através das redes sociais, o que pode ser extremamente útil pois é um auxílio na educação para a saúde da população, mas também perverso, pois nem toda a informação transmitida é fidedigna. Assim todos os profissionais de saúde em particular, e o Serviço Nacional de Saúde como um todo, têm de se adaptar a esta nova realidade.
A Medicina Geral e Familiar encontra as respostas a estas ameaças na sua essência e torna-se uma vez mais fundamental para a implementação da mudança. Esta é a especialidade na qual se baseia a coordenação da prestação de cuidados, de forma a assegurar a eficaz utilização dos recursos de saúde, admitindo sempre um papel de advocacia do doente e baseando a sua tomada de decisão na prevalência e incidência da doença na comunidade. Esta é a especialidade que presta cuidados personalizados e centrados na pessoa, tendo em consideração o seu contexto pessoal, familiar, comunitário e cultural. Este contexto em que o indivíduo está inserido em muito se relaciona com as grandes epidemias deste século, sendo também influenciado pela doença do mesmo. Esta é a especialidade que promove a saúde e o bem-estar da comunidade em que se insere, através da implementação de medidas preventivas e da mudança de comportamentos, que se irão tornar a pedra basilar de um Serviço Nacional de Saúde sustentável no futuro. Deste modo, esta é a especialidade do passado, do presente e do futuro.
Por Inês Torrinha Leão
Referências Bibliográficas
1.   Wonca Europe. “A Definição Europeia de Medicina Geral e Familiar (Clínica Geral/Medicina Familiar)”. Documento da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
2.   Direção da APMGC. “Livro Azul – Um Futuro para a Medicina de Família em Portugal”. APMGF – Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Edição de 2016
3.   World Health Organization. “Declaration of Alma Ata”. International Conference on Primary Health Care, Alma-Ata, USSR, 6-12 September 1978
4.   Ministério da Saúde, Governo de Portugal. “História do Serviço Nacional de Saúde”. Disponível em: https://www.historico.portugal.gov.pt/pt/o-governo/arquivo-historico/governos-constitucionais/gc19/os-ministerios/ms/quero-saber-mais/quero-aprender/historia-sns.aspx. Consultado em 25 de Junho de 2019

 

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