Incidência e causas de morte súbita cardíaca em jovens atletas




Pergunta clínica: Qual a incidência e quais as causas de morte súbita cardíaca em jovens atletas?

Enquadramento: A morte súbita cardíaca em jovens atletas aparentemente saudáveis é um acontecimento devastador, e leva a repensar as estratégias preventivas, nomeadamente o papel do rastreio cardíaco nesta população. A ausência de um registo sistematizado destes casos constitui um entrave à determinação da sua incidência. A associação de futebol britânica implementou um programa de rastreio para jovens atletas. O objetivo deste estudo foi determinar a incidência e as causas de morte súbita cardíaca nos jogadores de futebol adolescentes do Reino Unido.

Desenho do estudo: Estudo prospectivo longitudinal, com 20 anos de seguimento. Entre 1/1/1996 e 31/12/2016 foram submetidos a rastreio cardíaco 11168 jovens atletas de 92 clubes, com idade entre os 15 e os 17 anos, com elevada performance nos últimos 5 anos (todos tinham recebido bolsas de estudo, tendo em vista a progressão para uma carreira profissional). A avaliação incluiu história clínica, exame objetivo, eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações e ecocardiograma. De acordo com o rastreio, cada atleta foi classificado como “normal”, “doença cardíaca detetada”, ou “avaliação adicional requerida” (anomalias que implicavam a investigação de doença cardíaca). A investigação adicional foi levada a cabo em centros especializados, com critérios de diagnóstico bem definidos. Após categorização da amostra, os atletas com anomalias associadas a morte súbita cardíaca foram aconselhados a abandonar o desporto competitivo de acordo com as orientações da European Society of Cardiology e da American Heart Association. O registo das mortes foi assegurado através de relato voluntário à associação de futebol pelos clubes. Foi ainda enviado um pedido aos profissionais de saúde dos clubes para reportar as mortes por todas as causas, e desde 2005 foi feita pesquisa informática para eventual deteção de casos não reportados. Foram obtidas todas as certidões de óbito, e todos os casos de morte súbita cardíaca foram submetidos a autópsia, com confirmação diagnóstica.

Resultados: Durante um período de 20 anos, 11168 atletas (95% meninos) foram rastreados através da anamnese, exame físico, ECG e ecocardiograma. Um total de 820 atletas (7%) necessitou de avaliação adicional que pode ter incluído a prova de esforço, o Holter de 24 horas, a ressonância magnética cardíaca ou um estudo eletrofisiológico. Em 42 atletas, detetou-se anomalias normalmente associadas à morte cardíaca, destacando-se o síndrome de Wolff-Parkinson-White (n = 26) e a cardiomiopatia hipertrófica (n = 5). Em 225 (2%) atletas, detetaram-se outras patologias cardíacas, destacando-se a válvula aórtica bicúspide, comunicação interauricular, regurgitação aórtica, prolapso da válvula mitral ou persistência do canal arterial.  Enquanto que, no global, o ecocardiograma foi o teste que mais anomalias detetou (237 dos 267 problemas cardíacos totais), o ECG detectou 36 dos 42 casos de anomalias normalmente associadas à morte cardíaca. Contudo, apenas em dois casos o ecocardiograma foi o único exame a detetar a anomalia, isto tendo em consideração a restante avaliação que incluiu a história clínica, o exame físico e o ECG.  Os atletas com anomalias normalmente associadas à morte cardíaca foram aconselhados a efectuar o respectivo tratamento, se possível, antes de voltar a jogar, e, se não fosse possível, foramaconselhados a abandonar a competição desportiva. Durante os cerca de 118.000 pessoas-ano de acompanhamento, verificaram-se 8 mortes cardíacas súbitas. Duas destas mortes ocorreram em atletas com cardiomiopatia detectada, mas que, contrariando o aconselhamento recebido, se mantiveram a jogar futebol. Uma destas 8 mortes deveu-se a uma arritmia súbita e as restantes 5 tinham uma cardiomiopatia que não estava presente ou não havia sido detectada nos rastreios efectuados. A taxa de morte súbita cardíaca foi de aproximadamente 7 por 100.000 pessoas-ano. Embora a morte súbita cardíaca tenha sido responsável por 35% das mortes nestes jovens atletas, os acidentes automobilísticos foram responsáveis ​​por 30% das mortes, doenças oncológicas por 22% e a overdose de drogas e o suicídio por 13% das mortes. 

Comentário: Apesar de muito pertinente, este estudo apresenta algumas limitações. Os dados relativos à mortalidade dependeram essencialmente do reporte dos casos pelos clubes. O único outcome avaliado quanto ao desfecho foi a mortalidade, sem menção de casos de miocardiopatia detetados após o rastreio inicial ou de sobreviventes de paragem cardiorespiratória. Por último, a população estudada era formada por atletas muito jovens e com excelente capacidade física, o que pode subestimar a carga das doenças cardíacas e a prevalência de morte súbita cardíaca em atletas mais velhos ou com menor capacidade. No que toca à aplicabilidade do rastreio realizado, os resultados em saúde podem parecer modestos, nomeadamente pela elevada incidência de casos de morte súbita cardíaca em atletas com rastreio prévio normal (dos 8 casos de morte súbita cardíaca, 6 tinham rastreio normal), além dos elevados custos. O ECG teve elevada sensibilidade na deteção de algumas anomalias. O rastreio limitado à história clínica, ao exame físico e ao ECG detectará aproximadamente 90% ou mais dos atletas com risco de morte súbita cardíaca.

Artigo original: N Engl J Med

Por Sara Coelho, USF Mondego




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