O culpado é o Carlos Martins

Quando regressei a um activo médico empenhado, depois de anos de intensa dedicação sindical, recebi, como prenda da minha cidadania associativa uma colocação em extensões de saúde rurais que se situam geograficamente entre 50 a 70 Kms de minha casa. Além disso, a tortuosidade orográfica e o respeito pela serrania abrupta transforma o caminho numa aventura de sobe e desce e num teste intenso á consistência em borracha dos pneus.
Claro que confesso, agora volvidos 6 meses de recomeço assistencial, que este me deixou algum desconforto pela possibilidade de desadequação, empedernimento de conceitos técnicos, quiçá degradação relacional, sobrecarregada de confronto político e sindical com alguns borjeços e indivíduos de mau porte ético e social.
Além disso, os primeiros dias de trabalho apelaram ao meu sentido prático pois tentar ser médico de família de 1600 utentes espalhados por cinco extensões de saúde em três dias da semana (os restantes fazem-se numa estúpida Consulta Aberta, suportada pela cega política autárquica e sede de gastos absurdos e de má Medicina) não se revelou
nada fácil.
Claro que há um jovem de muita estima e de muito préstimo de que me lembrei assim que soube do meu recomeço assistencial numa novíssima realidade – o “nosso” Carlos Martins, brilhante Médico de Família e com o raro dom de partilha. Armadilhei-me com um MacBook Pro e um Iphone e contei com um magnífico site para me acomodar as dúvidas, me tapar os buracos de raciocínio e de me indicar pistas e caminhos.
O que eu não contei, num esplendor de tecnologia, é que as minhas extensões de saúde estivessem situadas fora do raio de acção civilizacional que nos invade via antenas de telemóvel.
Mais grave, não contava com um cuidado salazarento de não permitir distracções aos malandros dos funcionários de Estado, barrando-lhes acesso via ADSL no seu lugar de trabalho ao mail e ao demoníaco Facebook e a esse mundo de perdição da web.
Foi assim que o malandro do Carlos Martins, que me deveria suportar os defeitos, os tremedores e as angústias perante doentes que já navegam mais do que nós na net, me falhou redondamente, recusando-se a invadir o Pinhal Interior com as suas dicas tão úteis.
Foi assim que percebi que tinha que pedalar por mim, espremendo o miolo na procura das melhores soluções, dedicando tempo a ouvir o doente, servindo-me da semiologia passada por Mestres e da racionalidade ética da nossa classe bem expressa na frase primum non nocere.
Agora o meu Iphone mantém-se mudo mas o meu computador do local de trabalho já me permite saltar destas margens do Zêzere para o mundo, incluindo a escrita deste texto, na minha hora de almoço, antes de rumar de Janeiro de Cima a Bogas de Cima, comendo o meu frugal almoço trazido na lancheira – uma pequena dose de tortilha fria, uma sandocha com queijo da serra, uma garrafinha com chá preto sem açucar e uma maçã desta encantadora Beira Baixa.
No fundo devo ao Carlos um agradecimento pois a sua “ausência” tornou os meus dias mais reais levando-me a pensar em tantos e tantos colegas que, com honra e sacrifício, mantêm viva a Medicina Familiar por esse Portugal profundo e difícil na sua autenticidade.

Carlos Arroz

Janeiro de Cima, UCSP do Fundão, ACES Cova da Beira

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