O SNS, o copo e o fole de um acordeão

 


 

O SNS é rígido e não dispõe da elasticidade necessária para ajustar a sua resposta às mudanças que se vão verificando do lado das necessidades.

 

Por estes dias, voltamos a viver uma agudização do desajustamento entre necessidades e respostas no Serviço Nacional de Saúde. Vivemos o pico sazonal da época gripal e de outras infeções respiratórias, voltamos a ter um pico de procura de consultas por doença aguda nas USFs e UCSPs, congestionamento dos Serviços de Urgência com tempos de resposta que vão para além do aceitável e observamos também picos de mortalidade, com valores acima do esperado durante alguns dias. E trago este tema ao nosso editorialblog porque me parece pertinente refletirmos sobre a ausência de flexibilidade do SNS e como pode ser esse um dos fatores que contribui para o problema que estamos a viver.

Primeiro, interessa questionar:
– Era este pico sazonal de aumento das necessidades deste tipo de cuidados de saúde esperado ou não?
A resposta parece bastante óbvia: sim, era esperado. Ele acontece todos os anos.  Ano após ano, assistimos a estes picos de necessidades e, infelizmente, assistimos também aos picos de mortalidade excessiva. Uns anos podem ocorrer mais em Dezembro, noutros no princípio de Janeiro, noutros mais no final de Janeiro, mas quase todos os anos ocorrem e também por isso se fala de sazonalidade. Ora, se temos, do lado das necessidades de cuidados de saúde, algo que não é estático, algo que é variável, o que é que precisamos do lado da resposta dos serviços de saúde? Precisamos de uma capacidade de ajustamento às necessidades. Precisamos de flexibilidade da resposta. Mas aqui é que temos um grande problema. O SNS é rígido e não dispõe da elasticidade necessária para ajustar a sua resposta às mudanças que se vão verificando do lado das necessidades. 

Dou-vos um exemplo concreto. Imaginem uma USF com 8 médicos de família que cuidam de uma população de 14000 pessoas. A equipa tem a sua atividade planeada, nomeadamente em termos de slots de marcação de consulta programada e slots para atendimento a consultas de doença aguda de forma a atingir as metas dos indicadores que foram contratualizados. Como as metas não são flexíveis, e são idênticas quer para o mês de Junho, quer para o mês de Dezembro ou Janeiro, a equipa não consegue ajustar a proporção de consultas programadas vs consultas de doença aguda de acordo com as necessidades.  E o motivo é simples de entender: é que se a equipa diminuir os slots de marcação de consultas programadas para fazer mais consultas de doença aguda, vai colocar em causa o atingir das metas contratualizadas e com isso coloca em causa a remuneração e o sucesso da equipa. E este acaba por ser um mecanismo de bloqueio ao ajuste necessário da resposta dos serviços de Cuidados de Saúde Primários às variações das necessidades de cuidados de saúde da nossa população. 

Imaginemos agora uma USF que funciona como o fole de um acordeão.  Um fole que se expande e encolhe conforme a evolução das necessidades de saúde da população. Grande parte do tempo expande-se mais no sentido da realização de consultas programadas. Mas, depois, nos picos sazonais, expande-se mais no sentido das consultas de doença aguda. Só que para isto resultar, é necessário que os mecanismos que avaliam as equipas dos serviços de saúde, ou seja, as metas e os indicadores, também sejam aplicados com essa mesma elasticidade. Isto seria o ideal. Contudo, em vez desta elasticidade, na prática o que temos assemelha-se mais a um copo. E imaginemos uma USF que durante todo o ano, tem 75% desse copo ocupado com as consultas programadas, e os restantes 25% estão reservados para a consulta de doença aguda. E, por norma, em qualquer mês do ano, o copo está sempre cheio. Quando chegam os picos sazonais o que é que ocorre? O copo transborda. E este transbordar do copo significa que vamos ter pessoas sem acesso a médico quando estão doentes, e muitas delas acabam por recorrer aos serviços de urgência. A verdade é que muitas equipas no terreno acabam por se sacrificar e “esticar” um pouco esse copo criando mais alguma disponibilidade para tentar dar resposta nos picos sazonais. Mas essa não é uma solução estrutural, é mais uma tentativa de tapar buracos e que gera tensões na equipa, desgaste emocional e fadiga nos membros das equipas.

Mais: esta necessidade de flexibilidade não é um exclusivo dos Cuidados de Saúde Primários. Se pensarmos numa lógica de Unidades Locais de Saúde, também aí será necessário um ajustamento flexível das respostas às necessidades de cuidados de saúde.

 

 

 

Por Carlos Martins
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