Ouvi dizer que agora não se pode ir ao centro de saúde…

 

Além do medo, a pandemia à doença COVID-19 trouxe consigo a necessidade de adaptação que ocorre ao ritmo das descobertas feitas sobre este novo vírus. A cada segundo surge uma nova e premente informação, por vezes contradizendo o que até ontem era uma certeza. Torna-se difícil acompanhar e assimilar todo o conhecimento que se vai gerando. Sabíamos que podia acontecer, não é inédito. Estudámos outras pandemias e epidemias, algumas até recentes, mas que não tiveram as repercussões da situação atual. Mas aconteceu. Não sabemos com certeza qual a origem deste vírus, em muito parecido com outros, mas sabemos ser suficientemente diferente para que se torne um perfeito desconhecido. Numa era de globalização o vírus viajou a uma velocidade perturbante, afetando hoje 188 países. Quase tão rápido como o vírus, foram os media na divulgação de acontecimentos e “factos” sobre esta doença: quantos países afetados, quantas pessoas infetadas, quantos mortos, quantos recuperados… A cada hora, cada minuto, cada segundo… Instalou-se o medo, a dúvida… “Fica em casa!” era a ordem do dia. Era preciso tomar decisões, mas como, se pouco se sabia? Empirismo. Foi-se fazendo, olhando para os outros e vendo o que acontecia.

Na unidade onde estou a fazer a minha formação, ainda antes de determinado o confinamento, iniciaram-se as diligências no sentido de dar resposta a mais este desafio. O principal objetivo era garantir a prestação de cuidados aos nossos utentes, em especial àqueles pertencentes a grupos vulneráveis e de risco sem, no entanto, os expor a riscos desnecessários. De igual modo, era necessário encaminhar os utentes com situações agudas que poderiam, ou não, apresentar quadros suspeitos da nova doença. Simultaneamente, não podíamos, em hipótese alguma, descurar a proteção dos profissionais de saúde para que estes pudessem continuar a desempenhar a sua atividade e a dar resposta às necessidades da população. Dividiu-se a equipa em duas equipas espelho, definiram-se novos circuitos, criou-se uma sala de isolamento, reforçou-se o atendimento telefónico no secretariado, a teleconsulta passou a ser um recurso diário, fez-se um esforço adicional para que a resposta ao email fosse o mais rápida possível. Todas estas medidas foram sendo enquadradas com as diretrizes da Direção Geral da Saúde e melhoradas de acordo com as experiências que íamos tendo. Inevitavelmente, a prática do dia-a-dia modificou-se, a adaptação foi tanto para nós como para os utentes. Se antes a nossa prática assentava nos contactos presenciais, atualmente a teleconsulta ocupa a maior parte da nossa atividade. Foi preciso adaptarmo-nos a este modelo de consulta, tão estranha para os utentes como para muitos de nós. Não é infrequente ligar aos utentes no dia em que a sua consulta de vigilância está agendada, para a realizar neste novo modelo, e ouvir: “Pois, a consulta foi desmarcada”, ou “Ouvi dizer que agora não se pode ir ao centro de saúde, quando é que vamos poder ter uma consulta a sério?”.

A prática do médico de família baseia-se na relação de proximidade que se estabelece com o utente. Assim, é compreensível que, com este novo modelo, o utente sinta esta relação comprometida pela ausência de contacto presencial e pela distância criada pelo fio do telefone. Por outro lado, perde-se a linguagem não verbal, frequentemente tão informativa e útil no contexto da relação terapêutica. A dotação dos serviços de saúde de equipamentos que permitissem a videoconsulta seria útil para contornar esta dificuldade, embora não possamos esquecer que há também limitações do lado do utente como a impossibilidade de acesso a estes meios tecnológicos ou incapacidade de os utilizar. Apesar disso, a teleconsulta é um recurso muito útil e tem permitido garantir a vigilância dos utentes saudáveis ou com doença crónica estável, não os expondo a riscos desnecessários. O teletrabalho, que complementa as horas assistenciais na unidade, na tentativa de dar resposta a todas as solicitações e a que se acrescem novas tarefas como a vigilância dos utentes inseridos na plataforma TRACE-COVID, faz com que a atividade diária se estenda muito além do horário estabelecido, com um número de contactos superior ao que que tínhamos anteriormente. Por outro lado, como médica sinto que tenho uma responsabilidade acrescida, como se por ser profissional de saúde, constituísse um risco acrescido para aqueles que me rodeiam. Se não pertencemos a um grupo de risco, certamente que temos na nossa família quem se enquadre neste grupo: avós, pais, filhos, cônjuges. Na fase inicial da pandemia, foram muitos os relatos que ouvimos de profissionais que se afastaram dos seus, na tentativa de não lhes causar dano.

Tudo isto, a incerteza dos tempos que correm e a incompreensão de alguns daqueles a quem assistimos, contribui para o burnout de profissionais assoberbados, até porque, ser-se médico não é uma espécie de vacina que nos torna imunes ao medo, ao cansaço ou à tristeza. Porém, vejo o empenho dedicado dos profissionais com quem trabalho, no esforço coletivo necessário para responder às exigências destes novos tempos. Diariamente, sou recordada da importância da resiliência e do trabalho de equipa que permitem gerir o medo e garantir a prestação de cuidados de saúde aos nossos utentes.

Por Sara Carmona

 

 

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