Sonho de Natal de um médico de família





8 horas da manhã de um dia normal de trabalho…

Liguei o computador, abri o SCLINICO e nada falhou. A rede suporta perfeitamente a exigência de um sistema de informação clínica único que integrou valências como RNU, SINUS, SICO, SISO, SGTD, SCLINICO, SIMA rastreios, ALERT P1/CTH – Consulta a Tempo e Horas, RNCCI, PEM, MIMuF, PDS, SINAVE,… Tudo isto acabou.
O Sistema de Informação é só um e tem múltiplas funcionalidades. Permite uma gestão integrada do Utente, do seu ficheiro clínico, das suas informações pessoais e dos diferentes níveis de cuidados de saúde utilizados. Permite acesso a esta informação em toda a parte…até no estrangeiro! Permite o acesso aos outros prestadores de cuidados de saúde, com as devidas limitações e adaptações relativas às funções de cada prestador. Os laboratórios de análises descarregam directamente os resultados no processo do doente. As clínicas de imagiologia também. O processo clínico único é acedido nos cuidados de saúde primários, nos hospitais, na RNCCI… A discussão de casos clínicos é uma realidade. As respostas aos pedidos de pareceres dos especialistas hospitalares acontecem e são imediatas. O número de referenciações hospitalares reduziu-se, as reuniões de discussão multidisciplinar são periódicas com a participação dos doentes. A confiança dos Médicos de Família na tomada de decisões é cada vez maior. As listas de espera não existem! O desperdício de gastos financeiros na duplicação de MCDT´s acabou.

O tão anunciado “fim do papel” aconteceu!

Hoje, não liguei para o número da PEM onde tradicionalmente me atende um jovem colaborador, com sotaque nortenho, que no fim da minha questão me diz: “Dr., se não se importar envie agora um email para darmos início ao processo!”, processo que fica concluído passados 4-5 dias, talvez mais…. Ficava sempre na dúvida se o problema se resolveu porque alguém desligou e ligou uma tomada, ou se foi só de o tempo ter passado (há um informático escondido em cada um de nós).
Hoje, não liguei para a informática do ACES. Aliás liguei, mas foi para enviar as sugestões de melhoria que haviam sido solicitadas. O envolvimento dos profissionais foi o sucesso desta realidade.
Hoje, não fiz consultas de ampulheta em cima da mesa. Geri o tempo à minha maneira, à maneira das necessidades do doente, da doença e das minhas necessidades de tempo para elaboração de um plano terapêutico e de intervenção adequado. Gastei 5 minutos com o Sr. Manuel que estava com uma amigdalite “de livro”; estive uma hora com o casal Silva que passa por uma situação difícil de doença, agravado pelo despedimento dos dois que trabalhavam na mesma empresa. Reunimos com a Assistente Social, procurámos encontrar uma solução provisória, mas urgente. Gastámos tempo…ninguém cobrou!
Hoje, não veio nenhum Utente pedir-me para fazer a transcrição de MCDT´s do Dr. X. Não gastei tempo a explicar que não posso fazê-lo, que não devo fazê-lo, que nem sequer me deveria ter sido pedido.
Também não vieram pedir declarações para ir à piscina, para não ir à piscina, para ir à escola, para não ir ao ATL, para não ir ao ginásio…às vezes pensava que me pediam declarações até para autorizar o doente a respirar! 
Hoje, a minha USF iniciou funções. A mobilidade dos profissionais foi célere, objectiva e responsável. Os concursos são rápidos, justos e permitiram corresponder aos anseios dos profissionais. Não há falta de profissionais. Não há falta de material. A autonomia responsável das Unidades é inquestionável! O doente é parte integrante e fundamental no processo de decisão. 
Hoje, o tamanho do meu ficheiro está adaptado à realidade da minha população. Não trabalho mais horas para renovar receituário e fazer outras tarefas. Aliás, deixei de renovar receituário. Apenas defino a prescrição crónica e a posologia, às quais o farmacêutico tem acesso. Numa autonomia responsável gerida pelo farmacêutico, o doente dirige-se apenas à farmácia para adquirir as quantidades adequadas e necessárias até à próxima consulta.

6:30 – toca o despertador

São horas de me levantar. A realidade? Essa, vocês conhecem! 
Infelizmente… tudo não passou de um sonho…
Citando Pedro Chagas Freitas
“A chave é sonhar”
“E escolher para estar contigo quem saiba sonhar contigo. Quem não te corte as asas pela raiz. Quem não te impeça o voo antes de haver pelo menos uma tentativa de voar”.

Esta noite vou sonhar outra vez … Um dia vou voar…

Por Bruno Moreno



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