Vasco Queiroz

Leituras médicas: “Follies and Fallacies in Medicine” por Petr Shrabaneck (Médico Endocrinologista e Oncologista) e McCormick (Presidente do Colégio Irlandês de Clínicos Gerais), Editora Tarragona Press, 1989

Não hesitei na escolha deste livro porque ainda me recordodas deliciosas insónias que me induziu, por alturas do final do meuInternato Complementar da Especialidade, ao abalar tremenda edefinitivamente alguns dogmas para mim até então inquestionáveis. Já omesmo havia acontecido algum tempo antes, pelos meus 15 anos, quando aleitura de “Porque Não Sou Cristão” de Bertrand Russell me tirou daconfortável Fé Cristã e me lançou num perturbador agnosticismo que otempo tem vindo a serenar.

O livro de Shrabanek e McCormick, escrito num registo algoiconoclasta e muito bem humorado e de uma luminosa clareza (passe oquase pleonasmo) pondo em destaque e de início a importância do efeitoplacebo, disseca a causalidade e as suas determinantes bem como anatureza do erro e do enviesamento dos raciocínios, a argumentaçãofalaciosa e as conclusões espúrias ou abusivas, por vezes fraudulentas,que suportam grande parte da informação técnica que nos chega.

A Medicina Preventiva e alguns dos seus tabus sãoquestionados e a chamada “Medicina Alternativa” é colocada no seu devidolugar, fora da ciência. Um livro que deveria ser obrigatório em todasas escolas médicas, recomendado a todos os médicos mas igualmenteacessível a leigos cuja exigência intelectual esteja um pouco acima dosprogramas da manhã dos canais generalistas da tv.

 

 

 

Outras leituras: “D. Quixote de La Mancha” por Miguel de Cervantes Saavedra, com prólogo e tradução de Aquilino Ribeiro, Edição – Público Comunicação Social SA, 2005

Ainda hoje me penitencio por ter passado tantos anos sem terlido esta obra monumental em grandiosidade e talento e ter finalmentecompreendido porque é considerada uma obra-prima da literaturauniversal. Julgava eu erradamente tratar-se de uma historieta de 2pataratas montados em pilecas investindo pateticamente contra moinhos devento numa simples metáfora de idealismo picaresco e que devia a fama àantiguidade e a ter sido escrito por um espanhol na altura em que eramdonos do mundo. Coro de vergonha ao confessar a minha ignorância. Em2005 o jornal Público, associando-se às comemorações dos 400 anos da 1ªedição, proporcionava aos leitores a possibilidade de adquirir com ojornal e o pagamento de um acréscimo que se me revelou absolutamenteirrisório em função da qualidade da obra uma excelente reedição em 2volumes com prólogo e tradução de Aquilino Ribeiro e ilustrações deGustave Doré. Um luxo!

A genial história que Cervantes ofereceu à humanidade éconsiderada a primeira novela moderna e foi publicada em Madrid pelaprimeira vez em 1605.

Ao longo de 126 delirantes capítulos (que lamento não serempelo menos 1260) Cervantes relata as peripécias de um decadentefidalgote a quem a leitura obsessiva de romances de cavalaria acabariapor toldar o juízo levando-o a ele próprio se considerar cavaleirocarregado de responsabilidades éticas inerentes à condição e destinadoportanto a deambular em busca de aventuras com o firme propósito decombater o mal, repor a justiça aonde ela fosse deficitária e, claro,realizar a suprema ambição de satisfazer a amada Dulcineia, que elesabia senhora de uma beleza esfuziante e delicadíssimas qualidades, narealidade uma campónia robusta e desajeitada.

Determinado a levar a inadiável e imperiosa missão pordiante consegue convencer um seu criado, campónio, gordo e analfabeto aacompanhá-lo no périplo que haveriam de cumprir por terras de La Mancha,Aragão e Catalunha. Continuamente se sucedem incríveis episódios em quedesfilam todo o género de personagens num esplendoroso mosaicoretratado com um humor somente ao alcance dos génios.

Ao longo da novela Cervantes conta uma história, retrata umpovo, recria um género literário, critica todo o mundo, desde nobres areligiosos, de cristãos velhos a judeus, de boçais a eruditos, decampónios a aristocratas. O contraste permanente entre o idealismo doQuixote e o bom senso de Sancho conduz-nos ao eterno dilema entre oidealismo e a realidade, entre o que é e o que queremos que seja ougostaríamos que fosse.

Emocionantes os momentos em que, embriagados nosacontecimentos, o “cavaleiro de triste figura” se chega a “Sanchizar”enquanto o criado se “Quixotiza”. Finalmente e de volta a casaD.Quixote, febril e moribundo recupera o tino pouco antes de faleceralgo arrependido mas satisfeito por voltar à lucidez numa clara inversãodo normal fim dos heróis épicos que geralmente deliravam no últimosuspiro. Se as obras geniais também se avaliam pelas suas sequelas tudo oque já foi escrito sobre esta e os filhotes que gerou nas artes, naliteratura, no teatro, na ópera, no cinema, na poesia, e em todo oimaginário de todos os povos aí estão para o sublinhar. O meu grandedesgosto é saber que nunca, nunca mais vou ter o enorme prazer de ler oD. Quixote pela primeira vez como alguns felizardos que agora lêem estearrazoado.

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