
“Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?”
Álvaro de Campos
Há um ano e picos, este vosso criado especulava sobre a possível existência duma linha em J na relação entre literacia em saúde e status socioeconómico. Conjeturava então que o nível cultural ir-se-ia acompanhando de mais literacia até um certo ponto a partir do qual a crendice voltava a aumentar, justamente entre os mais cultos e sofisticados. Como imaginarão os meus leitores, foi com um sorriso de satisfação que tropecei nos trabalhos de Dan Kahan, que, de forma cientificamente fundamentada, afirma algo semelhante. Professor de Direito na Universidade de Yale, resvalou para a sociologia, acabando por desembocar na epistemologia. Interessado na credibilidade da ciências junto do grande público e como ela é afetada pelas crenças e valores, demostrou que, perante a discrepância entre factos científicos e crenças, estas têm uma força inusitada e sobrepõem-se frequentemente às revelações científicas. Ou seja, o obscurantismo é ubíquo.
A obra deste autor provocou um borbulhar de reflexões breves, embora cada uma delas justificasse, só por si, uma crónica.
1. Estamos perante mais um exemplo da relevância da interdisciplinaridade. As disciplinas não são estanques e a sua porosidade pode abrir janelas de oportunidade de progresso verdadeiramente espantosas e inusitadas. Neste caso foi um advogado, convertido em sociólogo que, por mero acaso, diríamos, se torna num pequeno guru no domínio da saúde.
2. Deixando correr o pensamento, é tentador ver encadeadas as teses de Dan Kahan na obra de António Damásio, que realça a importância dos sentimentos no funcionamento da mente. Duma forma simplista podemos estabelecer um paralelo entre as investigações da sociologia e os achados da neuropsicologia, já que é no cérebro profundo em que coabitam, não só instintos primitivos e o sentir somático do corpo, mas também o corpus das crenças, valores e atitudes apreendidos em momentos marcantes da vida.
3. Podemos interrogar-nos se não estaremos perante mais um salto epistemológico. Da medicina fechada sobre si mesma, já tínhamos evoluído para a medicina centrada no doente ou na pessoa. E não ficamos por aí: passamos a olhar a pessoa inserida no seu meio social, que a influencia. Como tal, assume-se que, para levar a bom porto a missão terapêutica na pessoa doente, é preciso ter em conta os valores, crenças a cultura do seu meio social. Porém, será que a sociologia não nos propõem ir um pouco mais além? Para tratar a pessoa doente (e sobretudo fazer prevenção primária) não será imperioso focar a nossa atenção na própria sociedade para garantir uma eficaz ação sobre o individuo, e não o contrário? Será que não precisamos do reforço da componente de marketing na saúde publica e da incorporação de educação epistemológica junto do grande público?
4. As conclusões a que o estudo do comportamento dos grupos e da influência dos componentes não racionais na génese das opiniões chegaram têm como corolário que o médico/terapeuta, na sua condição de humano, não está isento de idêntico efeito. As múltiplas interrogações a que ciência não consegue dar resposta deixam porta aberta para soluções fornecidas pelo corpo de crenças e valores do profissional de saúde, porque a necessidade de agir não se compadece com niilismo filosóficos. Mas a que preço e com que riscos?
Por Acácio Gouveia, aamgouveia55@gmail.com
(artigo publicado também no Jornal Médico)