Doentes sob quimioterapia não apresentam maior risco de morte por COVID-19

 

 

Pergunta clínica: Os doentes com cancro sob tratamento têm maior risco de mortalidade pela COVID-19 do que os doentes com cancro sem tratamento ativo?

Enquadramento: Tem sido considerado que os doentes com cancro, particularmente os que recebem tratamento sistémico, apresentam maior risco de mortalidade por COVID-19 .

Desenho do estudo: Estudo de coorte prospetivo, entre 18/03/20 e 26/04/20, em 55 centros de cancro do Reino Unido. Foram incluídos os primeiros 800 doentes com cancro ativo e infeção por SARS-CoV-2 (RT-PCR de amostras da nasofaringe/orofaringe) com doença sintomática. A mortalidade por todas as causas foi o endpoint primário definido a priori. Foi analisado se os pacientes morreram ou tiveram alta clínica e observou-se o efeito dos tratamentos para o cancro nos outcomes, averiguando se os doentes tinham realizado tratamentos de quimioterapia, radioterapia, hormonoterapia ou imunoterapia nas 4 semanas prévias a testar positivo para COVID-19.

Resultados: 412 (52%) doentes tiveram um curso ligeiro de doença COVID-19. 53 (7%) foram internados em unidades de cuidados intensivos. 226 (28%) morreram, sendo que em 211 (93%) a causa de morte foi primariamente atribuída à COVID-19. O risco de morte associou-se significativamente à idade avançada (OR (odds ratio) 9,42 [IC (intervalo de confiança) 95% 6,56–10,02]; p<0,0001), ao sexo masculino (OR 1,67 [1,19–2,34]; p=0,003) e à presença de outras comorbilidades, como hipertensão arterial (OR 1,95 [1,36–2,80]; p<0,001) e doença cardiovascular (2,32 [1,47–3,64]). Quanto à realização de tratamento nas últimas 4 semanas, 34% não se encontrava sob tratamento ativo, 35% tinha realizado quimioterapia, 10% radioterapia, 8% hormonoterapia e 6% imunoterapia. Depois de se ajustar para a idade, género e comorbilidades, a quimioterapia não apresentou efeito significativo na mortalidade por COVID-19 (OR 1,18 [0,81–1,72]; p=0,380). Os doentes que haviam realizado radioterapia, hormonoterapia, terapia dirigida ou imunoterapia nas 4 semanas anteriores também não registaram risco adicional de mortalidade após os ajustes citados. Foi reportado que 172 (22%) doentes tiveram os seus tratamentos anticancerígenos interrompidos por causa da pandemia COVID-19, embora a natureza exata desta interrupção não tenha sido estudada.

Comentário: Este estudo é inovador, contrariando a ideia estabelecida de que os tratamentos anticancerígenos aumentam o risco de mortalidade por COVID-19, o que poderia levar à descontinuação de uma terapia eficaz nestes doentes, com risco de maior morbimortalidade associada ao cancro. Com efeito, nestes doentes, a mortalidade parece associar-se principalmente à idade, género e comorbilidades e não ao tratamento anticancerígeno. Não obstante, é importante reforçar a necessidade de continuar a proteger estes doentes do contacto com o SARS-CoV-2. A interpretação destes resultados deve ainda ter em conta algumas limitações: estudo observacional, possível viés de seleção e subnotificação de casos, entre outras.

Artigo original: Lancet 

Por Mariana Belo, USF Viriato

 

 

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