A foice, as searas, sinergismos e tolices

 

Nada mais assustador que a ignorância em ação.

Goethe

 

Daniel Kahnman, Nobel de Economia em 2002, psicólogo de formação, afirmou que nunca abrira um livro de economia. Poucos laureados com o Nobel de Medicina são médicos. Pasteur também não era médico. Luís Albuquerque, matemático, muito contribuiu para História dos Descobrimentos, aplicando os seus conhecimentos de astronomia. Já Pompeu Memória, matemático brasileiro, afirmava não ter ficado surpreendido ao tomar conhecimento que os  dois mais eminentes estatísticos britânicos não eram matemáticos: Ronald A. Fisher, professor de Genética e Harold Jeffreys, professor de Astronomia. Ele próprio era engenheiro agrónomo. Recentemente faleceu a Prof. Madalena Esperança Pina, que, sendo médica, se distinguiu como historiadora. Ainda no domínio da história, o nosso colega José Barata publicou uma notável biografia clínica dos monarcas da quarta dinastia.

Outros, e quiçá melhores, exemplos da interdisciplinaridade poderiam ser elencados, mas estes bastam para demonstrar que a foice em alheia seara nem sempre é sinónimo de disparate.

Contudo, é importante assinalar a diferença entre foicinhar em terreno alheio, mas com conhecimento de causa, e o simples opinar sobre matérias que nos são suficientemente estranhas para aconselhar um mutismo prudente.

Por exemplo: ultimamente, o Boletim da nossa Ordem toma semelhanças com o da Ordem dos Economistas, tantas são as intervenções sobre economia da parte de médicos. Temo que qualquer dia os economistas passem a debitar pareceres sobre saúde com a análoga ligeireza e estultícia.

Mas, enfim, o mais desbocado exemplo de “cagar sentenças” chega-nos do coletivo da Relação do Porto, que achou por bem condenar a empresa que despediu dois funcionários por, alcoolizados, terem causado um acidente em serviço, a readmiti-los. Como não gosto de manejar a minha foice em searas que não domino (não li o acórdão e, de qualquer forma, não tenho formação jurídica) não é sobre a decisão em si que pretendo alvitrar. Todavia, as desbragadas elucubrações com que os senhores juízes decidiram guarnecer o veredito merecem umas alfinetadas mais. (Sim! Porque, de norte a sul, os desastrados considerandos têm sido alvo de chacota e espanto). Que os meritíssimos sejam ignorantes em matéria de psicopatologia, ao ponto de enaltecerem a promoção do alcoolismo, é, por si só, inquietante e altamente censurável. Mas daí a quererem fazer jurisprudência psicofarmacológica é dum bacoquismo e irresponsabilidade arrepiantes.

Ao sentenciar que o álcool pode levar “o trabalhador (…) a empenhar-se” (sic!) no exercício da profissão, espalhando alegria entre os que assistam à faina do etilizado, somos levados a concluir que os autores desta alarvidade pensem que o que é verdade para cantoneiros de limpeza também o seja para todas as outras profissões. Houve já mesmo quem se interrogasse, e com razão, sobre a alcoolémia inspiradora dos autores destas estultas considerações que abrilhantaram o acórdão em causa.

Imaginemos um destes Doutores Juízes, jazendo na mesa de operações, deliciado com a visão do cirurgião e anestesista, unidos por amplexo compensatório das suas frágeis marchas atáxicas, botelha de licor beirão nas unhas, entoando desafinadamente o “fado do 31”. Ou outro elemento deste alegre coletivo, comovido com a bebedeira do motorista do Pulman, que é suposto conduzi-lo em segurança, lutando empenhadamente com a ranhura que insiste em fugir à chave da ignição.

E se um destes senhores juízes tiver o desgosto de ver um ente querido esborrachado por um dos alcoólatras cuja readmissão decidiu e cujo alcoolismo elogiou? Supomos que afogará as mágoas em Bloody Mary ou em tinto … côr de sangue.

Acácio Gouveia, aamgouveia55@gmail.com

(artigo publicado em simultâneo no MGFamiliar e no Jornal Médico)

MaisOpinião - Acácio Gouveia
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