(Sobre)viver


Aqueles metros até à paragem do autocarro pareceram a Maria léguas infindáveis. Assim que chegou sentou-se no único local vago e escondeu toscamente os fartos sacos sob o banco. Depressa percebeu porque tantos tinham preferido permanecer de pé. Ao seu lado estava o Sr. Alfredo, personagem bizarra já conhecida. Apesar do calor abrasador daquela tarde de Verão, ele insistia no casaco, suspensórios e gravata macilentos pelas noites ao relento. Tal indumentária combinada com a gesticulação frenética, obrigavam-no a limpar o suor constantemente, criando pausas dramáticas escolhidas entre as frases mais inflamadas. Vociferava contra o motorista “que é um bêbado” e a empresa “que sobe os preços todos os dias”. Rematou com um “no tempo do Salazar não havia nada disto” seguido das palmas apoteóticas de um público que só ele via e que nunca o deixava só.

Maria sorriu nervosa, deambulando o olhar entre os presentes. Será que alguém me viu? E se percebem o que aqui trago? O que respondo?

Passados breve minutos o autocarro chegou e ela suspirou de alívio. A cidade parecia adormecida pelo travo de Agosto, e o trânsito serpenteava livremente.

Quando entrou no bairro a ansiedade desapareceu. O seu lar começava ali, na sua rua, entre a sua gente. Tudo estava no local habitual excepto, claro, os cartazes que voltavam ciclicamente para povoar o cenário. Rostos sombrios ladeados por frases vazias.

Após subir os derradeiros cinco lances de escadas, recuperou o fôlego e entrou em casa.

A comitiva de recepção limitou-se a um “Então, mãe?! Estava a ver que não chegavas! Estou cá com uma fome.”

João permaneceu amarrado ao ecrã. O adolescente estava entusiasmado com mais um grupo de discussão sobre a crise. Teclava furiosamente a favor de uma tribo e contra todos os outros.

“Tens aqui umas bolachas enquanto faço o jantar” disse com um toque de doçura.

“Oh mãe: nunca acertas! Já sabes que não gosto destas” respondeu João, afastando o pacote com evidente desdém.

Maria regressou apressadamente para a cozinha. “Esta cebola é forte”, pensou, enquanto limpava o caudal que não conseguia conter.

No chão repousavam os quatro sacos repletos de comida oferecida pela associação.


Por Luís Monteiro, Médico de Família, Co-Editor MGFamiliar

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