A consulta domiciliária – uma caixa de pandora

Ontem acompanhei o meu orientador de formação naquela que foi a minha primeira consulta domiciliária como interno de Medicina Geral e Familiar.

Estava, confesso, algo expectante relativamente ao papel que iria desempenhar. Na faculdade sempre nos transmitiram, de uma forma quase romanceada, que a consulta domiciliária é uma prática fundamental nos cuidados de saúde primários. Que é realizada num contexto único, em que a equipa de saúde se aventura no mundo do utente. Mundo esse que não está acessível entre as quatro paredes de um gabinete e que se encontra associado a um ambiente de maior fragilidade e vulnerabilidade.

Trazia, portanto, toda a teoria comigo, mas faltava-me a realidade prática. Talvez por este desconhecimento, o que estava prestes a ver e sentir marcar-me-á para resto do meu percurso profissional.

Ao caminhar pelo trilho que se estendia desde o imponente portão verde da entrada até à pequena porta de madeira da habitação, assolaram-me pensamentos e expectativas. Que significado dar às peças de roupa e restos de comida dispersos pelo chão, com aparência de ali estarem há meses? Transposta a porta da habitação, o chão de terra permitia disfarçar outra qualquer sujidade que pudesse existir. O teto, suportado por vigas de madeira apodrecidas, davam um significado acrescido à ameaça da própria doença. Abastecimento de água potável, um dos grandes trunfos da modernidade na luta contra a doença e melhoria da qualidade de vida das populações, era algo aqui inexistente. Na verdade, o único acesso de água provinha de uma pequena torneira localizada no exterior da casa, a qual fornecia água de uma mina, sabe-se lá com que qualidade.

No quarto estava a utente. Encontrava-se acamada desde há uns dias e o motivo principal da nossa visita passava por averiguar o porquê. Orientada e consciente, afirmou-nos que no início ainda fazia levante para ir à casa de banho, atualmente já não. Todas as necessidades eram feitas na cama. Os odores que pairavam no ar eram disso a prova.

Tive que parar uns minutos para me consciencializar de tudo o que estava a ocorrer à minha volta, tantos eram os problemas ali conjugados e cuja descrição não faz jus ao vivenciado. Desde as condições precárias de habitação, às questões de higiene e sanitárias, à aparente incapacidade da senhora cuidar de si mesma… senti-me assoberbado, pensei que tinha de resolver tudo naquele momento e era difícil saber por onde começar. A sensação de impotência face à situação foi crescendo.

Foi necessário priorizar os problemas. No local, atuámos em equipa, juntamente com a enfermeira, de modo a ajudar no levante da senhora para perceber o seu estado geral de saúde. Dada a premência do cenário encontrado, mudámos os lençóis da cama e organizámos toda a medicação, que tinha suspendido voluntariamente. Simultaneamente, e num primeiro instante, contactámos a assistente social de modo a sinalizar o caso e agendar uma intervenção. Mas, acima de tudo percebi que, o que talvez tenhamos dado de melhor de nós próprios, naquele momento, tenha sido o valioso suporte emocional, bem denunciado por um sorriso emocionado da utente.

É verdade que o ensino universitário não me capacitou para lidar com este tipo de situações. Nem tudo pode ser teorizado, há aprendizagens que só estão ao alcance do vivenciado in situ. No entanto, foi algo que veio reforçar ainda mais a minha estima pela MGF. Como médicos de família, lidamos com muito mais do que apenas o doente. Lidamos com o contexto em que ele vive, com o seu mundo. Para ele, nós somos os seus confidentes, advogados, conselheiros ou simplesmente aqueles a quem recorre quando não há mais ninguém. Temos de estar preparados para desempenhar estes múltiplos papéis porque, tal como neste caso, o problema inicial traz muitos outros associados, qual caixa de pandora. Para se ser bem sucedido, temos de ser capazes de ter uma abordagem que vai muito para além do diagnóstico clínico. Acredito que devemos, cada vez mais, praticar uma medicina de proximidade e, paralelamente, ter sempre presente que há problemas que não são solucionáveis com a simples toma de um comprimido. É esta pluralidade que torna a nossa especialidade tão desafiante.

Por Carlos Castro, USF do Minho

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