“Cansaço e exaustão”: saúde mental dos médicos em tempo de pandemia

 

 

A pandemia Covid-19 pôs a descoberto as fragilidades da sociedade, exacerbando os problemas de saúde mental do indivíduo com reflexo na dinâmica familiar e sua interação com a comunidade. Os Médicos de Família são um elo fundamental na gestão desta problemática, com necessidade de se adaptarem a uma nova realidade, também para eles desconhecida. A saúde mental dos mesmos está a ser acautelada para que possam prestar cuidados de saúde de qualidade?
Já passou 1 ano desde o primeiro caso diagnosticado com Covid-19 na China, decorrendo mais de 6 longos meses desde que a OMS declarou este surto como Pandemia. Efetivamente, ao lidar com essa nova realidade temos a perceção do quão frágil é nosso estilo de vida atual! Assistimos às perdas irremediáveis de vidas humanas e, por outro lado, constatamos os efeitos deletérios sobre as economias exacerbando as desigualdades sociais já existentes, com um impacto devastador sobre as famílias e a respetiva saúde mental.
A OMS define saúde mental como “um estado de bem-estar no qual o indivíduo percebe o seu próprio potencial, é capaz de lidar com o stress normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e de dar um contributo para a sua comunidade” (OMS, 2005). O conhecimento da importância da saúde mental no bem-estar físico, mental e social do indivíduo deve, nos tempos atuais, ter um enfoque particular pelas entidades governativas, assim como pela comunidade em geral. Os médicos de Medicina Geral e Familiar, pelos cuidados de proximidade que prestam à população, são pilar basilar dos cuidados de saúde, assumindo desde sempre uma visão holística do indivíduo e da família! Mas, não estará a saúde mental do Médico de Família a ser beliscada com a exaustão causada pela pandemia?
Os profissionais de saúde encontram-se na linha da frente nesta luta, enfrentado o medo do desconhecido, muitas vezes separados das próprias famílias para as proteger e continuar a cumprir a sua missão. Apesar de inicialmente reconhecidos por todos como elementos essenciais neste combate, também rapidamente passámos para o outro extremo, com julgamentos depreciativos pela opinião pública em geral. Na USF Nós e Vós Saúde e na USF Fafe-Sentinela os médicos, e restantes profissionais, são o reflexo desse cansaço e exaustão que acreditamos ser comum a todos os profissionais dos cuidados de saúde primários. Este estado de espirito vivenciado é consubstanciado em factos que passamos a explicar. Durante as fases de desconfinamento – e seguindo as orientações do ACES e da Direção Geral da Saúde -, o número de consultas presenciais foi reduzido de forma a salvaguardar a segurança dos utentes, atendendo às limitações de espaço na sala de espera e de forma a dar cumprimento às recomendações emanadas pela DGS, relativamente ao distanciamento físico e evicção de ajuntamentos. Não obstante, as consultas telefónicas tiveram um crescimento exponencial, dando resposta atempada aos problemas de saúde que subsistem na nossa população. Porém fomos “acusados” de não querer trabalhar, não querer ver doentes! Nada mais injusto e longe da verdade! A realidade é que agora trabalhamos a dobrar, por vezes com mais de 30 contactos telefónicos para realizar no dia e muitas vezes, com as linhas telefónicas ocupadas, recorremos a telemóveis pessoais para conseguir dar resposta às várias solicitações. Como o tempo é limitado, por vezes, telefonamos de nossas casas e diga-se, sem receber horas extras! Lembrem-se que os médicos também têm família, mas sacrificam muitas vezes o convívio familiar numa atitude de abnegação perante a sociedade! Trabalhamos, pois, aos fins de semana e feriados, com ligações remotas aos computadores alocados ao centro de saúde, fazemos registos de exames, comunicação de resultados, orientamos utentes com Covid-19 ou com suspeita. Damos resposta a consultas de urgência, continuamos a vigiar os grupos de risco, diabéticos e hipertensos, mantivemos as consultas de saúde da mulher e infantil, os rastreios e continuamos a fazer domicílios…. A somar a tudo isto, a necessidade de cumprir indicadores, a prescrição e registo de exames, as baixas médicas, a emissão de atestados, relatórios e afins, a prescrição de medicamentos, encaminhamento para as equipas de cuidados continuados integrados e orientações para as especialidades hospitalares. Mas não ficamos por aqui! Esta pandemia veio trazer novas funções e necessidade de adaptação permanente ao médico de família. Referimo-nos às Áreas Dedicadas à COVID-19 (ADR) cuja resposta se tornou crucial num esforço de evitar sobrelotação dos serviços de urgência. Além disso, e não menos trabalhoso, temos a obrigação do registo no SINAVE (Doenças de notificação obrigatória) e no Trace COVID-19, uma plataforma informática criada para o seguimento diário de doentes suspeitos ou infetados com COVID-19. Como se não bastasse, cumpre-nos a tarefa inglória de gestão de conflitos onde tentamos apaziguar numa população revoltada, com medo, insatisfeita com o clima angustiante que se vive no país e que por vezes nos culpam de forma inadvertida. Tudo isto com menos recursos humanos, pois nós também adoecemos, somos vulneráveis e expostos a todos os riscos…Somos humanos, também temos medos, sobretudo de levar o vírus para as nossas casas e abafamos a inquietação de delegar nos outros os cuidados com os nossos filhos. Temos de ser fortes, não podemos confinar, mas por trás dessa muralha, por vezes, existe uma fragilidade imensa, mentes inquietas e carentes, às vezes tão desmotivadas…E quando lemos slogans de jornais que denigrem a nossa imagem, comentários depreciativos, injuriosos, sentimo-nos a ruir aos poucos…
Os doentes não sabem o cansaço e o desgaste que sofremos, muitos em burnout, outros a secar as lágrimas por entre a máscara ou viseira, onde ninguém nos vê! Recebemos os doentes sempre com um sorriso…sempre de esperança…embora por vezes estejamos tão tristes, bem cá dentro.
A pandemia trouxe e continua a provocar feridas na sociedade, nas famílias e no indivíduo, potenciadas pela incerteza no futuro. Com ela, o aumento do número de doentes com perturbações de ansiedade, depressão e medos e nós, os médicos, estamos entre eles…
Sim, nós os médicos, não somos imunes …

Por Davide Teixeira, Meylem Maestre, Susana Basto e Jorge Maestre

 

 

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