De dentro para fora: como foi ser interna de primeiro ano de MGF no primeiro ano de pandemia

 

 

Quando, em Novembro de 2018, completei as 100 questões daquele que viria a ser o último “Harrison”, estava feliz da vida. Conduzia para casa e entre as luzes dos carros com que me ia cruzando procurava luzes sobre como seria o meu futuro. No ano seguinte, sempre que a pergunta da praxe surgia, fugia ao desconforto causado pela ausência de resposta argumentando: “Já sou o que sempre quis ser: médica.”  Quando, uns meses depois, escolhi Medicina Geral e Familiar (MGF) sabia que dificilmente existiria uma especialidade onde me sentisse mais médica do que na minha.
Logo nos primeiros meses fui constatando que numa especialidade tão vasta, onde se pretende promover saúde, prevenir e/ou gerir doença e numa era em que os gestores insistem em reduzir-nos os períodos de consulta, são essenciais aptidões de comunicação bem desenvolvidas para que prevaleça aquilo que mais deveria importar a todos: o ganho em saúde para o utente. E prestar cuidados centrados no melhor interesse do utente transcende o simples citar as diversas linhas de abordagem terapêutica dos artigos da revista A ou B. Fui percebendo que, para influenciar os utentes tinha de chegar até eles e que, para isso, tinha que ter entendimento sobre o seu sistema de representação interna e uma plasticidade linguística que me permitisse adaptar-me a cada um deles para, deste modo, conseguir que a mensagem chegasse ao outro lado, fazendo sentido e gerando vontade de ajustar comportamentos. Nesta arte de compreender os utentes, de os ler nas entrelinhas, de perceber nas suas expressões se estão a compreender, a concordar ou a desconfiar, fui percebendo a importância da linguagem corporal na comunicação.

 

Uns meses depois, quando lhes conheci o olhar, percebi que falhei em pelo menos metade de todos os retratos que fui esboçando nos meses prévios mas também percebi, pelos gestos, pelo reconhecimento, pelas palavras e posturas que talvez não tenha falhado no mais importante:  na escuta, na empatia, na ajuda, no acompanhamento.

 

Em Março, quando me percebo privada da possibilidade de observar os utentes para os entender melhor dei por mim a pensar no quão duro seria fazer esta dança a dois ficando a minha interpretação do outro reduzida à audição. Entregue ao telefone e às teleconsultas aprendi a desenvencilhar-me desta “cegueira” provocada pela pandemia escutando: fui dando por mim atenta a detalhes como o tom de voz, as pausas, os sons das casas, as dinâmicas familiares. Assim, posso dizer que comecei por conhecer a grande maioria dos utentes da nossa lista pela voz, pela respiração, pelos sons das suas casas. A solidão e os problemas sociais criados pela pandemia foram-me aproximando de muitos deles. Sem fugir à minha essência, fui-me encontrando, dia após dia, a pintar-lhes rostos na minha mente. Uns meses depois, quando lhes conheci o olhar, percebi que falhei em pelo menos metade de todos os retratos que fui esboçando nos meses prévios mas também percebi, pelos gestos, pelo reconhecimento, pelas palavras e posturas que talvez não tenha falhado no mais importante:  na escuta, na empatia, na ajuda, no acompanhamento.

 

Não foram só rosas, mentiria a mim mesma e a todos os que me lêem se o escrevesse!  O caminho teve espinhos: o meu percurso de aprendizagem mais técnico-científica foi afetado pela diminuição do número de consultas presenciais, pelos atrasos nos estágios hospitalares, pelo aumento das tarefas burocráticas e repetitivas.

 

Não foram só rosas, mentiria a mim mesma e a todos os que me lêem se o escrevesse!  O caminho teve espinhos: o meu percurso de aprendizagem mais técnico-científica foi afetado pela diminuição do número de consultas presenciais, pelos atrasos nos estágios hospitalares, pelo aumento das tarefas burocráticas e repetitivas. A minha experiência com quadros respiratórios foi encurtada e enviesada se a compararmos com a dos colegas mais velhos quando estavam nos seus primeiros anos de formação. Ainda assim, sinto que tal como no romance de Saramago, a pandemia me fez cega para me forçar a ver numa nova perspetiva que me permitiu escutar, sentir e compreender os utentes de uma nova forma, percebendo as suas angústias e crenças com maior clarividência. A pandemia forçou-me a conhecer a pessoa antes do utente e do doente, no sentido inverso ao que o sentido da visão nos foi habituando: de dentro para fora! E estou grata pela generosidade dos utentes que partilharam comigo as suas realidades mesmo sem me conhecerem e pelo sentimento de préstimo e realização com que adormeci em muitos dos dias exigentes da pandemia.
O viés de memória vai, provavelmente, continuar a enaltecer os ganhos e o tempo e empenho ajudarão a colmatar os prejuízos.
O meu primeiro ano de especialidade cristalizou, para sempre, na minha memória, pelas lições sobre gestão de recursos, saúde pública, comunicação de incerteza, medo, coping e saúde mental mas, mais que isso, pelas lições sobre comunicação, empatia e medicina centrada na pessoa que me proporcionou.

Por Ana Filipa Moreira
Médica interna de Medicina Geral e Familiar, USF Gualtar

 

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